Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Golpe e farsa

Jornalistas, policiais, políticos e os outros todos, cidadãos ou especificamente leitores, não diferimos muito. É verdade que apenas ínfima parcela dos cidadãos, e fração um pouquinho maior dos leitores, minoria privilegiada da população, alcançam (ou sofrem) o grau de visibilidade das três primeiras categorias. Mas os jornalistas, para irmos ao ponto, não são hordas de janízaros aquartelados. São recrutados na mesma sociedade que produz seus críticos e nela permanecem mergulhados quando não estão nas redações.

Beira o impossível imaginar um sistema capaz de substituir a cultura jornalística das redações. Não dá para recrutar cidadãos prestantes, como fazem os tribunais do júri, e mandá-los para as ruas cobrir os fatos. Aumentariam catastroficamente a margem de erro, o facciosismo, a vulnerabilidade a influências de todo tipo. Notícia é diferente de boato, rumor: em contexto adequado, passa por uma cadeia de filtros (para o bem e para o mal).

Também já se constatou que soluções tipo mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) não são capazes de entregar o que seu nome promete (ver “Não é livre, não é jornalismo, mas vai ficar“).

Fonte indispensável

Estamos, portanto, até prova em contrário, condenados a receber da mídia jornalística – em qualquer de suas modalidades – as primeiras informações sobre fatos considerados relevantes pelas pessoas que decidem o que é ou não relevante. Contingência que está longe de representar o ideal. Daí, por exemplo, ter surgido um veículo como o Observatório da Imprensa, movido por utopia semelhante à descrita por Zygmunt Bauman como:

“(…) um horizonte em movimento constante, que recuasse perpetuamente, mas que guiasse a viagem; ou como um ferrão espetando a consciência, uma censura aborrecida que coloca a complacência e a autoadoração fora dos limites e fora de questão” (Bauman sobre Bauman – Diálogos com Keith Tester, Rio de janeiro, Zahar, 2011, pág. 59).

Trabalho perverso

É difícil encontrar categoria social mais acerbamente crítica do jornalismo do que a dos… jornalistas. H.L. Mencken, por exemplo, escreveu sobre seus colegas de profissão: “O trabalho de fazer jornal é perverso, assim como são perversos quase todos os que se deixam atrair por ele (…)”.

Cuidado, leitor com vocação para desqualificar os profissionais dos meios de comunicação. Você há de ter notado que a frase está interrompida. Ela continua assim: “mas a perversidade primária não está neles, e sim nos seus fregueses” (O livro dos insultos, tradução e prefácio de Ruy Castro, São Paulo, Companhia das Letras, 1988).

Fatos e interpretações

A narrativa dos fatos não esgota o trâmite dos significados. Em seguida à emissão ou publicação da notícia vem a interpretação. Como se sabe, nem a Bíblia, livro considerado sagrado pelas três grandes religiões monoteístas, está livre de interpretações às vezes tão antagônicas que levaram e levam os intérpretes a se matar e praticar as mais selvagens ignomínias contra os que pensam diferente.

Dentro do que prescreve a Constituição da República (sempre o bendito art. 5º do Capítulo I, “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”), cada um interpreta como lhe apraz. Refiro-me aos que prezam a democracia e aceitam a Constituição como seu fundamento, expressão legal do pacto social vigente.

Lula analisa

O ex-presidente Lula é crítico costumeiro da mídia jornalística, à qual tanto deve (mais uma vez: para o bem e para o mal). Registre-se, para fazer justiça, que a presidente Dilma Rousseff até hoje não se associou à cantilena antimídia (a candidata Dilma o fez, nesse ou naquele palanque), revigorada após a expedição de mandados de prisão para mensaleiros.

Lula fez em congresso de seu partido uma exegese do trabalho da imprensa segundo a qual houve desproporção entre o espaço dado ao “emprego do Zé Dirceu no hotel” e à “quantidade de cocaína no helicóptero” (referência ao uso por traficantes de um helicóptero do deputado estadual Gustavo Perrella, SSD-MG; O Estado de S. Paulo, 13/12). Talvez tivesse dado o mesmo destaque a uma e outra notícia se fosse editor de algum jornal, mas isso jamais saberemos. Será que o helicóptero dos Perrella é mais notícia do que o emprego putativo do preso José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil da Presidência da República?

Na mesma reunião petista, o presidente da agremiação, Rui Falcão, fez outra comparação, depois de falar em “tsunami de manipulação” no processo do mensalão: “Por que o tratamento diferenciado de certos setores da grande imprensa em relação ao ‘trensalão’ do governo tucano de São Paulo?”

O comentário mais piedoso que se pode fazer é, talvez: imagine o que seria de lideranças políticas reptadas a explicar o inexplicável (e inaceitável) se não houvesse um Judas para malhar e desviar a atenção.

Um partido politicamente saudável, num país politicamente saudável, discutiria provavelmente como evitar cometer o mesmo erro político que gerou o escândalo da mesada para deputados federais. No caso, nem pensar. Sem chance.

Jefferson não foi o primeiro

Digressão oportuna: o “delator” do mensalão, Roberto Jefferson, não foi o primeiro a revelar o esquema. Repito aqui:

“O primeiro jornalista a denunciar o esquema de mesada no Congresso Nacional foi Carlos Chagas, na Tribuna da Imprensa, em fevereiro de 2004 (a entrevista de Jefferson a Renata Lo Prete foi publicada na Folha de S. Paulo em junho de 2005). Chagas mencionava um personagem pouco conhecido do público, mas chegado a expoentes do PSDB de Minas Gerais e a dirigentes nacionais do PT: Marcos Valério Fernandes de Souza.

“Em setembro de 2004, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) denunciou formalmente a prática corruptora. O então presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP), posteriormente um dos condenados no Supremo Tribunal Federal, ‘mandou apurar’. Em outubro, informou que a investigação não constatara nenhum delito” (transcrito de “Alguns fatores de desnorteamento“; ver também “Palocci para editor-chefe“, texto publicado neste Observatório em agosto de 2005).

O ainda deputado João Paulo Cunha é daqueles indivíduos que levam a sério o preceito de que a melhor defesa é o ataque. Tem aproveitado as oportunidades possíveis nos estertores de sua notoriedade para jogar água no moinho da farsa que o PT montou para contrapor a fatos dolorosos (não só para o partido; para o país) do primeiro governo Lula.

A farsa

A farsa consiste em dizer que a denúncia de Jefferson (indivíduo em quem Lula, Dirceu e outros dirigentes não deveriam ter confiado tanto) fazia parte de um golpe de Estado tentado, mas não consumado.

Meu colega de Observatório Luciano Martins Costa se juntou ao coro em seu tópico para o programa de rádio do OI de sexta-feira (13/12):

“(…) a mesma estratégia utilizada para respaldar o golpe de 1964 foi aplicada a partir de 2006 para desestabilizar o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“O projeto de poder articulado pelos jornais só não foi bem sucedido porque, nesse período, a economia do Brasil já mostrava sinais de recuperação, após o ciclo negativo iniciado em 1999, e as políticas sociais de geração de renda davam início ao processo de redução da pobreza” (“Sexta-feira, 13“).

Trata-se de uma interpretação sem lastro na chamada realidade dos fatos. O direito de interpretar faz parte do direito à livre manifestação do pensamento (art. 5o, § IV) e à livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5o, § IX). Menos formalmente, Montaigne constata, em Da arte de conversar, que quem discorda das nossas ideias nos obriga a melhorá-las. “O acordo é, na conversação, qualidade bem aborrecida.”

Lula pediu desculpas

Diferentes argumentos poderiam ser alinhados em oposição à interpretação de Luciano Martins. O mais contundente é possivelmente a reação do então presidente Lula, que demitiu de seu governo José Dirceu, o “capitão do time”. Teria Lula colaborado com intentos golpistas, ou adotado uma posição politicamente suicida?

Em novembro de 2005, entrevistei para o programa de rádio do Observatório o então deputado José Eduardo Martins Cardozo, hoje ministro da Justiça. Sobre o mensalão, ele declarou:

“Evidentemente, existem fatos que infelizmente aconteceram, alguns comprovados, alguns até confessados. Entram numa linha de colisão com o que historicamente nós sempre defendemos no PT. Querer dizer que essa crise é fruto exclusivamente de um ataque ao governo e que nós não temos responsabilidade, nós não tivemos nada a ver com isso, é um equívoco, querer tapar o sol com a peneira” (ver “Mídia não forjou crise, diz deputado do PT“; a entrevista completa está em “Deputado do PT diz que mídia não forjou crise“).

O golpe de 1964, cuja preparação foi denunciada por meu saudoso colega de trabalho Plínio de Abreu Ramos em reportagem na Folha de S. Paulo comentada por Luciano Martins, foi urdido por inimigos da democracia (que falavam em nome dela) desde a vitória do ex-ditador Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de 1950. Atalhado em fase aguda pelo suicídio de Vargas, em 1954, percorreu o decênio seguinte em sucessivos espasmos, até sua organização final, civil-militar, desencadeada pela renúncia do golpista fracassado Jânio Quadros, em 1961.

O golpe imaginado por Luciano Martins é filho de uma farsa montada por dirigentes do PT para reduzir os prejuízos políticos causados pelo mensalão, escândalo que levou o então presidente Lula a pedir desculpas ao povo brasileiro (ver aqui).