Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Violência, farsa e limites do bom senso

Causa perplexidade, a quem tem bom senso, a opinião assinada por Rachel Sheherazade (http://youtu.be/nXraKo7hG9Y) no Jornal do SBT, em 04/02/2014, sobre a tortura, agressão e racismo sofrido por um jovem no Rio de Janeiro. O fato obscuro envolve um jovem negro suspeito de crimes na região que foi espancado e deixado nu e ensanguentado com a orelha cortada, preso pelo pescoço com uma trava de bicicleta a um poste. Ação é de um bando de jovens da Zona Sul do Rio, denominado justiceiros. Nessa perspectiva não se pretende verificar simplesmente o fato ou mesmo aprofundar-se na questão sociológica da tortura e linchamento do rapaz, mas especificamente destacar a questão ética-comunicacional e o posicionamento político-ideológico do texto e suas consequências possíveis em um cenário contemporâneo. Nessa perspectiva a opinião da jornalista fere o bom-senso e a busca de um Estado democrático de Direito, finalidade da prática do jornalismo.

O discurso de Rachel Sheherazade não é novo e está filiado à ideologia que modifica e se repete em diversas áreas, inclusive na política e instâncias conservadoras e reacionárias da sociedade brasileira. Tal discurso está presente em outros países, como Estados Unidos e Europa – em passado nem muito remoto foi política de Estado na Alemanha nazista e na África do Sul. O processo de tipificação dos crimes e dos criminosos faz parte do modus operandi das forças de segurança de Estado e está filiado à cultura e história social. No Brasil, a figura do pardo e negro é criminalizada e marginalizada. No entanto, em certas posições, na contramão dos processos democráticos, há a tipologia criminal e a ideologia de contenção social na forma de treinamentos dos policiais, nos meios sociais de classe média, na elite econômica e em certos movimentos de grupos conservadores. Nos meios de comunicação, por sua vez, fere ética profissional e distorce e desqualifica a qualidade do jornalismo, que perde a finalidade humanitária e democrática.

Em um trecho do vídeo, disse Rachel Sheherazade no SBT: “Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível”. Ela deveria saber que a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes, segundo a pesquisa “Participação, Democracia e Racismo“, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Quem mais morre é gente como o rapaz preso no porte. Em suma, criminoso é pardo, negro, pobre e mora na periferia, mal encarado, marginal e sem escolaridade. É o triunfo do racismo institucional, mas que tem raízes profundas na cultura e é constantemente reforçado pelo discurso da mídia que usa dos métodos mais asquerosos para ganhar audiência, satisfazer-se com o contínuo problema sistêmico da violência e discriminação nas suas mil e uma faces.

Criminosos heróis

O explícito da discriminação é camuflado em palavras de ordem e indignação em opiniões difusas, quase religiosas, mas que esconde o funcionamento da ordem estabelecida malvada da ausência dos serviços públicos, das oportunidades individuais e privilégios da concentração dos meios de comunicação social e da falta de liberdade de expressão. O desejo implícito é a segregação, a morte e o extermínio de certos tipos sociais e no caso do Brasil: o negro, bandido, pobre, favelado e menor. Esse estigma se perpetua e se amplia, tanto que as falas e os atos parecem continuar sem repercussão porque é um espetáculo bom, bonito e gostoso para se ver, traz lucro. É o exorcismo do demônio em nome da redenção pelas próprias mãos.

Para a apresentadora do telejornal, “O Estado é omisso. A polícia, desmoralizada. A Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite.” Tal perspectiva que acaba sendo politicamente incorreto em meios intelectuais e culturais, bem como em movimentos sociais progressistas acaba parafraseando a ideologia neoliberal, em tons menos óbvios, mas com o mesmo efeito do fascismo e o racismo institucional: ódio, discriminação, racismo, intolerância, violência, desprezo e rancor.

Este tipo de discurso tem uma consequência e reforça o que já está no cotidiano e nas relações interpessoais, incentivando atos de violência, alimentando ações brutais, inclusive por parte da polícia, principal agente de coação social dos marginais, calvário do pobre, alvo dos negros e pardos. O pelourinho continua funcionando, menos topográfico, mas sistematicamente funcionado e defendido na mídia. Com isso, surge ainda uma outra face da discriminação, a possibilidade de formação de grupos criminosos e paramilitares tidos como heróis da justiça, burlando o Estado Democrático de Direito, inclusive o mesmo Estado que permite a liberdade de imprensa.

Hipocrisia e ódio

A questão da violência endêmica dos centros urbanos se tornou prato cheio para o chamado jornalismo sensacionalista que explora elementos circunstanciais de tipos de crimes como assaltos, assassinatos, estupros, principalmente criminosos de baixo calão sem escolaridade e sem prestígio social. A exposição cria um clima atávico de bodes expiatórios, tipos criminais e justiceiros, fugindo da finalidade do fortalecimento da Justiça, dos direitos humanos e da democracia. O que importa é o lucro, o faturamento encima do grotesco e imoralidade do crime, bem como posições polêmicas, em nome do jornalismo de latrina.

Uma opinião (http://youtu.be/CxZ86Tp03ug) da mesma apresentadora é mais tolerante: “pega leve com Justin, o menino só está crescendo”, destaca a apresentadora do telejornal. O afável menino, não é o marginalzinho da favela, é o adolescente, uma fase. A farsa do cinismo, do preconceito, do racismo velado no discurso midiático. Com o Justin Bieber (rico, branco, ídolo, anglo-saxão) é um menino, “só está crescendo”, é amigo. Ao inimigo marginalzinho, a lei, além da tortura física e a tortura moral da hipocrisia.

A hipocrisia sem bom senso desse jornalismo cruel causa perplexidade. A crueldade que revela o desejo de extermínio, em que bandido bom é bandido morto, com apologia à vingança e à barbárie tem uma consequência a execução e ao linchamento social, público e midiático. Para a imprensa nem a cadeia só basta, só funciona com os marginais classificados pela ignorância, brutalidade e crueldade. Faltam direitos humanos e ética; e sobra o arroto do miasma de ódio e violência.

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Moisés dos Santos Viana é jornalista, Itapetinga, BA