Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Maré, ame-a ou deixe-a

Se todo megaevento tem seus patrocinadores oficiais, por que não as UPPs? A Rede Globo cumpriu exemplarmente esse papel na manhã de domingo (30/3), ao interromper a programação no município do Rio para passar a transmitir ao vivo a entrada dos militares no Complexo da Maré, uma região plana de 15 favelas e 130 mil habitantes, junto à Linha Vermelha, principal via de acesso entre o centro da cidade e o aeroporto internacional Galeão-Tom Jobim.

Havia conflito? Tiroteio? Não, nada. Tudo uma tranquilidade só.

Que as câmeras estejam ali alertas para qualquer eventualidade, é uma coisa. Que, só por estarem ali, tenham de transmitir ao vivo a banalidade da vida – já que não ousam insinuar que a tranquilidade é apenas aparente, que todos se recolheram às suas casas como fazem quando a polícia está na área –, vai uma grande diferença.

A vida sem sobressaltos, vista do alto do helicóptero, é notícia? É algo que justifique alterar a grade de programação?

Talvez sim, para efeitos de propaganda. A imposição da paz, as criancinhas passeando nos cavalinhos da PM, acenando para a câmera, ajudando os militares a hastear as bandeiras. Típica representação da harmonia do país que vai pra frente. Ainda mais às vésperas da Copa. Pra frente, Brasil. Ame-o ou deixe-o. Como nos velhos tempos.

Como no pior dos tempos.

Nada de novo

A transformação do jornalismo em propaganda, flagrante nesse apoio incondicional à política de “pacificação” a que os veículos das Organizações Globo aderem, já foi criticada aqui inúmeras vezes. Não há espaço para o contraditório. Nenhuma discussão sobre a legalização das drogas como forma de desarmar a luta sanguinária pela ocupação de territórios para o comércio ilegal: apenas mais do mesmo, o eterno discurso sobre a dificuldade e mesmo a impossibilidade de se fiscalizar as fronteiras desse país continental, por onde entram drogas e armas. E a repetição dos argumentos a favor de mais intervenção policial.

Nenhuma crítica, tampouco, aos mandados coletivos de busca e apreensão, que autorizam os militares a entrar em qualquer residência, sob qualquer pretexto. Façam isso em áreas nobres da cidade para ver a reação da mídia.

Nem precisaria muito. Bastaria lembrar a famosa declaração do secretário de Segurança, num tempo anterior ao das UPPs: “Um tiro em Copacabana é uma coisa. Um tiro na [favela da] Coreia é outra”.

Pois é.

O contraditório existe

Só para mostrar que não faltam fontes muito qualificadas para contra-argumentar, o coronel aposentado Jorge da Silva, ex-chefe do Estado-Maior da PM, ironizou em seu blog a justificativa da procuradora ouvida pelo Globo (26/3) para os mandados coletivos, que decorreria da “dificuldade de se localizar endereços em meio ao aglomerado de casas erguidas em becos, sem numeração definida”:

“(…) não sei se [a lei] mudou, mas tanto o Código de Processo Penal comum (CPP) quanto o Código de Processo Penal Militar (CPPM) vedam ao juiz, sob pena de abuso de poder, a expedição de mandados genéricos, coletivos (o bairro da Maré possui cerca de 40 mil domicílios…). O CPP exige que o mandado indique, ‘o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência’ e o CPPM, além de exigir o mesmo, manda o executor exibir e ler o mandado.

“Bem, é possível que a posição da procuradora reflita as representações distorcidas sobre aquele e outros locais similares. Ela não deve ter lido o Guia de Ruas Maré 2012. Saberia que todas as ruas possuem CEP e quase a totalidade das casas possui numeração”.

O coronel conclui o parágrafo com mais uma ironia, entre parêntesis: “(vale a dica para os repórteres…)”.

Repórteres deveriam ser bem informados para questionar as fontes. Mas isso quando fazem reportagem. Quando são postos a serviço de uma causa, não têm muita saída.

Um papelão

Apesar dos acontecimentos recentes que evidenciaram a crise nas UPPs, com as sucessivas mortes de policiais, toda crítica é silenciada em nome do sucesso do projeto.

Igualmente, nada de novo no destaque às declarações das autoridades de que “este é um dia histórico para o Rio”. Exatamente o mesmo que disseram quando “retomaram” o Alemão e a Rocinha. Sempre a mesma e monótona cartilha, sem contestação. Mas o que aconteceu no domingo é mais aberrante porque, evidentemente, não havia notícia que justificasse a transmissão ao vivo daquelas cenas. Só, exclusivamente, imagens de propaganda.

A maior rede de TV do Brasil ofereceu ao espectador um release audiovisual do governo do Estado do Rio, quem sabe para melhorar a imagem da Polícia Militar, tão desgastada após a atrocidade cometida por um sargento e dois suboficiais contra a faxineira Cláudia Ferreira, há duas semanas, em Madureira.

Como é possível que uma concessão pública de TV faça esse papelão?

“Essa matéria é minha”

Muito interessante também foi ver o comentário de um repórter da EBC em sua página no Facebook: ele conta que estava no 22º Batalhão da PM, na Maré, quando viu entrar um pelotão do Bope com óculos equipados com câmeras digitais. Pensou: está aí a matéria. Mas foi impedido de gravar por um coronel que estava no grupo e avisou: “Esta matéria é minha”.

Um policial agora faz “matérias”?

De certa forma, sim, porque as cenas exclusivas apareceram no RJTV e, depois, no Jornal Nacional.

Não é exatamente uma surpresa essa aliança entre a mais poderosa rede de televisão e os poderes públicos, conforme a conjuntura. Basta lembrar o privilégio de “exclusivas” à Globo em inúmeros episódios, como o do Plano Collor, ou a atuação de repórteres acolhidos pela Polícia Federal que se disfarçam para flagrar em primeira mão a prisão de empresários.

No caso recente das UPPs, não são poucas as reclamações de repórteres e âncoras de programas de empresas de menor porte diante da dificuldade em entrevistar o secretário de Segurança: a justificativa é de que agenda está sempre cheia, como se a autoridade não tivesse a obrigação de atender igualitariamente os jornalistas.

O teatro de sempre

Mas a exclusividade das cenas produzidas pelos policiais com seus óculos filmadores foi importante também porque revelou o teatro montado para benefício das câmeras, exatamente como ocorre rotineiramente nos momentos de guerra em que nada acontece mas alguma cena de ação precisa ser produzida para a TV. Então os soldados se esgueiram por becos silenciosos, apontam suas armas em prontidão e mostram como estão preparados para enfrentar o inimigo e documentar tudo o que se passa. Para que nada escape, para que mesmo os abusos de autoridade fiquem registrados, como disse singelamente uma repórter no RJTV.

Isso, claro, se em momentos cruciais o equipamento não falhar, como ocorreu com as câmeras da UPP da Rocinha quando o pedreiro Amarildo desapareceu.

Mas lembrar dessas coisas é muita impertinência. Falta de patriotismo, até.

Vamos pra frente, Brasil.