Wednesday, 29 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1289

Um dos heróis de Repórteres Sem Fronteiras

Um turbilhão de sentimentos tomou conta de mim ao saber, no dia 29/5, por e-mail, que a organização Repórteres Sem Fronteiras, com sede em Paris, me incluíra na lista dos “100 heróis da informação”. E que, de 65 países dos quais foram selecionados nomes, do Brasil apenas eu fora indicado. Senti o peso de uma responsabilidade enorme. Ao mesmo tempo, uma honra singular e uma vasta alegria.

A escolha do nome de um jornalista que se expressa através de um pequeno jornal alternativo quinzenal, publicado na remota Belém do Pará, era o atestado da preocupação dos dirigentes de RSF de vascular pelo mundo profissionais que estão em lugares fora do eixo central de seus próprios países e do mundo. Para dar-lhes apoio e estímulo em suas empreitadas, caracteristicamente únicas e frequentemente isoladas.

Com um recado – dirigido ao destinatário e ao público em geral: a persistência num trabalho digno, honesto, dedicado à busca da verdade, comprometido com o interesse coletivo e independente pode, exercendo até seus limites extremos a liberdade de imprensa, um dia, ser reconhecido e destacado. Para, em seguida, retomar seu curso normal, certo de que a solidão foi quebrada e reforça o prosseguimento do trabalho.

Mas a premiação também me deu uma tristeza profunda. Os jornalistas brasileiros deviam refletir com coragem e consequência sobre esse fato: o vigoroso país emergente só forneceu um nome para a escolha dos Repórteres Sem Fronteiras. Será que estamos deixando de lado os compromissos éticos, morais e políticos – mas não os partidários, que constituem um compromisso negativo, embora em expansão – para apenas exercer a profissão? Será que não estamos contribuindo para que o país corrija suas inacreditáveis distorções e paradoxos, sobretudo a concentração da riqueza, a violência indiscriminada, a segregação social, o populismo educacional e cultural, a corrupção e outros itens mais, que todos os dias ocupam a agenda da imprensa sem provocar indignação?

Evidentemente, nenhum dos 100 “heróis” pode se considerar ocupante do topo do ranking da sua profissão. O critério não pretende chegar aos 100 melhores e disso tenho plena consciência. Interpreto a seleção como a indicação de profissionais que vão além dos seus compromissos rotineiros, que não se satisfazem em produzir boas matérias e se empenhar pela sua publicação. São aqueles que ocupam um lugar próprio e não abrem mão dos direitos e deveres da sua função como representantes da sociedade e auditores do povo, dispostos a enfrentar todos os desafios e consequências dessa opção.

Mesmo quando estava na grande imprensa, como correspondente em Belém de O Estado de S. Paulo, eu me sentia como se fora um correspondente de guerra. Tinha que cobrir a ação de pistoleiros profissionais, violências contra índios, conflitos de terra, destruição da natureza e temas de uma pauta internacional e, em e alguns casos, que remetiam a situações e condições primitivas.

Ao romper com a grande imprensa, em 1989, e me dedicar integralmente a este jornal [Jornal Pessoal], decidi encarar todas as consequências de fazer jornalismo crítico, radical. Radical no sentido de pegar as coisas pela raiz, pelas origens dos fatos e pela sua inserção na vida dos homens, no contexto social. E, como era a inscrição do primeiro jornal do Pará, o original e inimitável O Paraense, dar nome tanto ao boi quanto ao ladrão.

O critério da verdade é o da demonstração. E a inserção de material no jornal se orienta pela relevância social do assunto. Uma vez atendidas essas premissas, o Jornal Pessoal publica suas matérias, sem se importar a quem doa ou o efeito sobre o jornalista. Para ter esse compromisso radical com a verdade, meu jornal não aceita publicidade nem mecenas. Vive da venda avulsa dos seus exemplares em bancas de revista e livrarias.

É o leitor que decide sobre a continuidade do jornal – e isso não é apenas uma frase de efeito para uso do marketing. O jornal é pobre em todos os sentidos, menos num: o do conteúdo. Quer que seus leitores tenham um jornal com abordagem séria, ampla e profunda dos acontecimentos.

Na entrevista que concedi ao portal Imprensa, o único que se interessou em me ouvir, a repórter Alane Rodrigues me perguntou se eu já pensei em parar de produzir o jornal. Respondi-lhe que sim:

“Já pensei várias vezes e já tentei parar. Aliás, eu achava que o Jornal Pessoal ia durar pouco. Ele surgiu dois anos depois do fim do regime militar. E vivemos o mais longo período de democracia em toda história republicana do Brasil. Não há mais censura estatal. Mas se o JP parasse, muitas informações, análises e opiniões sumiriam do registro jornalístico.

A razão é autocensura crescente e já galopante, a renúncia aos compromissos do ofício e à covardia de muitos jornalistas, que nem tentam a publicação de informações inconvenientes para o poder, nele compreendido desde o governo até a empresa, incluindo a jornalística. Meu jornal se especializou em publicar o que costuma não sair em nenhum outro órgão da imprensa”.

Reproduzo duas perguntas e respostas da entrevista:

Para o senhor, qual é a real situação da liberdade de imprensa no país? 

L.F.P. – Seu potencial é enorme, inclusive por causa do volume de circulação das informações. Mas há uma autolimitação, quase castração. É crescente o receio de perder posição na empresa, receio agravado pela multiplicação das firmas individuais, que passaram a ser exigidas pelas empresas para a contratação de profissionais, especialmente dos de maior conceito. Criou-se uma relação nova, com a transferência de encargos e responsabilidades para a empresa individual do jornalista, o que afeta a independência do profissional. Fechar uma empresa custa mais do que abri-la. E mantê-la em funcionamento requer estabilidade de rendimentos. Essa mudança foi nociva para a autonomia da imprensa.

O senhor esperava o apoio de colegas que criaram o movimento “Somos Todos Lúcio Flávio Pinto”? Houve algum resultado vindo dessa campanha?

L.F.P. – Não esperava. Foi uma maravilhosa surpresa. O blog foi uma praça pública, que é do povo, como o céu é do condor. Sem o blog talvez eu não conseguisse mobilizar as 770 pessoas que doaram R$ 28 mil para pagar ao grileiro Cecílio do Rego Almeida pelo “crime” de ter provado que ele tentava se apropriar de terras no Pará com área equivalente à do Estado da Paraíba e duas vezes o território da Bélgica. Não quis mais recorrer na justiça por me convencer se que se tratava do mais indigno capítulo da perseguição que me tem sido movida pela via judicial”.

Fiz questão se destacar pelo menos uma parte do questionário para destacar o silêncio da grande imprensa para uma notícia que provavelmente merecia um registro melhor. Os raros que apareceram foram curtos e telegráficos. Mas não importa. Amigos, conhecidos e outras pessoas, além de blogs e outros espaços da rede mundial de computadores, me deram o retorno que eu esperava. Respostas desse tipo fazem muito bem, mas são tão circunstanciais quanto o silencioso incomodo dos poderosos. Este, aliás, é o que mais me motiva a continuar. E, no entanto, como observou o poeta, prosseguimos o combate das palavras pela verdade mal se abre a manhã.

 

Coragem como exemplo

A organização Repórteres Sem Fronteiras divulgou a relação dos 100 “heróis” no Dia da Imprensa (3/5), com o seguinte texto:

Por ocasião da Jornada Mundial da Liberdade de Imprensa de 2012, Repórteres Sem Fronteira (RSF) publica pela primeira vez uma lista de “100 heróis da informação”. Dotados de uma coragem exemplar, esses “100 heróis” contribuem, pelo seu trabalho ou seu combate, para promover a liberdade prevista pelo artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é o de “buscar, acolher e divulgar, sem considerações de fronteiras, as informações e as ideias por qualquer meio de expressão que seja”. Sob esse aspecto, eles têm o valor de exemplo.

“A Jornada Mundial da Liberdade de Imprensa, na qual Repórteres Sem Fronteiras tem sua origem, é a ocasião de saudar a coragem destes jornalistas e blogueiros que sacrificam a cada dia sua segurança e, às vezes, sua própria vida à sua vocação”, declarou Christophe Deloire, secretário geral de RSF. “Os heróis da informação são uma fonte de inspiração para todas as mulheres e todos os homens que aspiram à liberdade. Sem sua determinação e de todos os seus semelhantes, não seria possível estender o domínio da liberdade integral”.

A organização foi fundada em 1985, em Montpellier, na França, por quatro jornalistas. Possui atualmente 150 correspondentes em 150 países e instalou 10 escritórios ou seções, oito na Europa, um nos Estados Unidos e outro no Canadá. Já reconhecida como entidade de utilidade pública, exerce vigilância em todas as partes do mundo, luta contra a censura, apoia e protege os jornalistas.

 

A falta de heróis

Dos 100 “heróis” mundiais da imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras, 16 são das Américas: três do México, dois dos Estados Unidos, Cuba, Honduras e Chile; e um da Guatemala, Haiti, Colômbia, Peru e Brasil. O maior contingente, com 30 nomes, é da Ásia; 24 são da África. E 15 do Oriente Médio e da Europa. O Irã forneceu mais jornalistas do que qualquer outro: quatro.

O sentido geral das escolhas é dar apoio a profissionais que atuam em países instáveis, em guerras civis, conflitos generalizados, regimes ditatoriais ou em condições de trabalho desfavoráveis. É o que explica terem sido indicados três jornalistas do Irã, da Eritréia, do Azerbaijão, do Vietnam e da Rússia, com mais numerosos “heróis”. Mas três também são do México, formalmente uma democracia.

Diante de todos os nomes e dos seus respectivos países pode-se interpretar a escolha de apenas um jornalista brasileiro como prova de que o país vive em plena democracia, com respeito integral à liberdade de imprensa. Mas não é verdade, como não é verdade na Itália e no Chile, que forneceram dois, cada um, desses “heróis”.

O Brasil vive situação comparável à desses dois países, talvez até mais grave. Sintomaticamente, RSF publicou um estudo a respeito cujo título diz quase tudo sobre o seu conteúdo: Brasil – 30 Berlusconis. Se há a mão poderosa do empresário manipulando a mídia e o poder, a existência de muito mais espécimes desse tipo no Brasil não significa que haja mais democracia. Pelo contrário: cada um desses poderosos tem sua própria jurisdição, menor do que a amplitude nacional do político italiano, mas intensa e feroz até onde sua mão alcança. São senhores feudais redivivos, atualizados e adaptados à era atual, ainda que utilizando métodos milenares de domínio.

Se esses poderes de coronéis de uma nova Guarda Nacional não se evidenciam é porque há menos profissionais da informação dispostos a enfrentá-los se, para divulgar as informações, se torne necessário enfrentá-los. Não só os barões da mídia como outros senhores de baraço e cutelo que, nas circunstâncias históricas de hoje, costumam atender pelo nome de empresários. Ou bilionários, que, em sua versão mais recente, começaram a se formar sob o regime militar, mas se multiplicaram como nunca durante esta já extensa democracia, moldada conforme suas vontades e interesses.

Debaixo de uma aparência de maior igualdade social, com a inclusão de mais gente no molde da classe média à brasileira (sem qualquer poupança), há mais desequilíbrios, injustiças, paradoxos e, como pano de fundo que se projeta no picadeiro, violência – de todos os tipos e escalas.

Essa anomalia, que, por crescer continuamente, vai se transformando numa marca registrada, não espanta porque não chega a ser captada e diagnosticada pela consciência coletiva. É difusa, sinuosa, insinuante – sem perder em eficiência por usar esses métodos mais sutis.

É uma dominação que se utiliza de todos os instrumentos ao seu alcance, sobretudo os jurídicos, para impor seu mando. Daí a enxurrada de processos judiciais que têm o sinete do abuso de poder, do excesso de suscetibilidades pessoais, da arrogância e do propósito antidemocrático. Não é um golpe de estado que pode vir a se apresentar no horizonte da crise nacional, um novo pronunciamento militar, mas um golpe de mão, um golpe institucional, que sacramenta vícios incrustados na estrutura formal e legal graças aos recursos daqueles que têm muito dinheiro e/ou muito poder. E que, adicionalmente, dispõem de virtudes suficientemente eficazes para manipular, induzir ou cegar a sociedade.

Esse golpe branco seria muito mais difícil de articular e consumar eventualmente se os jornalistas cumprissem sua função essencial ao sistema democrático, ao invés de se encolherem no seu artesanato cotidiano, na burocracia da notícia. Aí haveria mais heróis da notícia.

 

Heróis latinos

Como representantes do México na lista de heróis dos Repórteres Sem Fronteiras estão Lydia Cacho, por suas reportagens sobre pedofilia e exploração sexual, e Anabel Hernández, autora do livro “Os senhores do narco”, resultado de sua investigação de casos de corrupção e narcotráfico. Também é mexicana a jornalista independente do canal “France 24”, Verónica Basurto. Em virtude de suas investigações, foi obrigada a passar uma temporada de exílio na Espanha.

Do Chile foram selecionadas Mireya Manquepillán, indígena mapuche que promoveu, a partir de suas emissões piratas da rádio comunitária Kimche Mapuche, a concessão –ainda em trâmite- de 30 novas licenças de rádio. Outra chilena indicada foi María Pía Matta. Por mais de 20 anos ela vem reforçando a comunicação social entre as comunidades locais a partir da emissora independente a Radio Tierra.

Em Cuba foi destacado o trabalho dos blogueiros Ángel Santiesteban Prats, condenado a cinco anos de prisão por criticar o presidente Raúl Castro, e a muito conhecida Yoani Sánchez, que sofre constantemente ataques informáticos e perseguição judicial.

RSF reconheceu ainda o trabalho de Dina Meza em Honduras, apresentadora do programa Vozes Contra o Esquecimento e editora do site Defensores em Línha, e de Itsmania Pineda Platero, membro fundador da ONG Xibalba Arte e Cultura, cuja especialidade é reabilitar jovens condenados.

Da Colômbia foi apontada o nome da jornalista Claudia Duque, que apesar de ter sofrido torturas do Departamento Administrativo de Segurança, continua suas reportagens na emissora digital Radio Nizkor.

Do Peru foi citada Mabel Cáceres, fundadora do semanário El Búho, que informa sobre a “corrupção endêmica” que há no país, herdada do governo do presidente Alberto Fujimori (1990-2000).

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)