Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Prevalência do jornalismo e as velhas artimanhas

O surgimento da internet, com a inédita possibilidade de disseminação de informações e da manifestação pública de pessoas comuns, provocou vaticínios tão imediatos quanto apressados, como ocorre sempre que surge uma nova tecnologia. Anunciava-se o fim do jornalismo e a inauguração de uma nova era em que todos poderíamos comunicar em igualdade de condições. Mais ainda: todos agora poderíamos nos tornar “mídia”. Confundia-se aí liberdade de manifestação com capacidade de produzir notícias, o que exige competência para apurar e selecionar os fatos mais relevantes, seja por seu interesse público, seja pelo seu caráter bizarro ou surpreendente. Mas poucos estavam interessados em questionar ou relativizar suas expectativas em relação ao admirável e libertário mundo novo das redes.

A edição da Folha de S.Paulo de domingo (9/11, ver aqui), porém, sustenta que a maioria dos links compartilhados nas redes provém do velho jornalismo profissional de sempre. Entre os entrevistados, um pesquisador da USP e colunista do jornal afirma: “A gente pode dizer tranquilamente que, se não tem mídia, não tem mídia social”. Mas acrescenta que o papel da imprensa não se encerra com a publicação, porque os jornalistas “não são mais donos do discurso; são quem inicia a conversa”.

Caberia perguntar desde quando as informações jornalísticas se encerravam com a sua publicação, como se não houvesse “conversa”, isto é, debate, discussão, tantas vezes acalorada, nas rodas que se formavam em torno das bancas de jornais ou dos aparelhos de rádio e, depois, de TV: um pouco de memória e referência história fariam bem a quem pretende teorizar sobre o assunto. Afinal, os jornais jamais foram “donos” do discurso, e ainda está longe o tempo em que se poderá vislumbrar a hipótese de um contradiscurso equivalente. A diferença agora é que a repercussão do que publicam se amplia como nunca antes, por causa do alcance que a nova tecnologia possibilita.

Nenhuma novidade

A Folha baseou sua reportagem em levantamento próprio, nos dias imediatamente anteriores e posteriores ao segundo turno das eleições. É um levantamento problemático em vários aspectos, como mostrou Luciano Martins Costa neste Observatório (ver “Mediação versus ancoragem“), e que provavelmente só mereceu manchete pelo interesse em reiterar a relevância do jornalismo profissional – automática e equivocadamente associado ao jornalismo produzido nas grandes empresas de comunicação – e da própria Folha como balizador da informação de qualidade, o que seria mais uma tentativa de autopropaganda. Ainda assim, o essencial do enunciado não traz novidade para quem observa regularmente o que circula nas redes.

Já em meados de setembro, em entrevista à EBC sobre o Manchetômetro, site que expõe os resultados do acompanhamento diário da cobertura política das eleições deste ano, o cientista político João Feres Jr., responsável pelo projeto, respondia assim a uma pergunta sobre a hipótese de as redes oferecerem um contraponto às informações da mídia tradicional:

“Você tem hoje em dia a internet crescendo demais, e o crescimento da internet enfraqueceu demais as empresas de mídia tradicional. Como enfraqueceu? Roubou das empresas de mídia tradicional os anunciantes, que hoje vão pro Google Ads, vão para o Facebook e pra outros sites e redes sociais, e roubou os assinantes. Então as duas principais fontes de renda das empresas de mídia secaram, nos EUA e no Brasil, por isso que todas estão em crise. E o que acontece? Na internet você tem uma multiplicação tremenda da formação da opinião, da discussão das coisas, mas se você for no Brasil e olhar o que está sendo discutido, quais são as fontes, o agendamento é feito por quem? Estão discutindo o quê? Matéria do Estadão, matéria da Folha, matéria da Veja. Claro, porque a internet até hoje não conseguiu produzir um modelo empresarial de produção de notícias. Por quê? Os anúncios que vêm para a internet não estão nos sites noticiosos da maneira como estavam nos jornais. Então nós vivemos num momento agora em que a gente tem uma crise, uma transição muito estranha, em que você tem uma crise nas empresas tradicionais e ao mesmo tempo a internet entrando muito forte mas incapaz de produzir conteúdo jornalístico. Só produz opinião, produz muito calor… e isso é um problema muito sério. Então, a internet não está substituindo a mídia tradicional” (ver aqui a íntegra da entrevista).

O reverso da moeda

Na verdade, Feres Jr. abrange aí duas ordens de questões: a crise da mídia tradicional, que percebe o digital como o futuro do jornalismo mas ainda não consegue definir uma forma de financiá-lo por meio da publicidade, e a permanência de sua relevância para a agenda pública, isto é, para a definição dos temas que serão discutidos pelas pessoas comuns, que, com mais ou menos intensidade, interagem nas redes. É, afinal, o noticiário produzido online pelos jornais – essa plataforma que as empresas ainda não sabem como sustentar – que vai ser compartilhado na internet, tantas vezes de maneira automática e irrefletida, como é praxe no comportamento de quem frequenta esse meio.

Porém, valeria a pena observar o outro lado dessa moeda: a maneira pela qual os próprios jornais acolhem o que é mais popular na internet, para atrair audiência, e com isso tantas vezes legitimam aquilo que, em outros tempos, se chamava de balão de ensaio, produzido por fontes interessadas em plantar uma notícia para verificar suas possibilidades de sucesso. São forças que continuam ativas e seria uma ingenuidade pensar que não atuariam fortemente no meio que favorece a mais ampla disseminação de informações. Porém, a crença de que a internet é um ambiente “horizontal”, que cancela as hierarquias e nivela todos os que participam dessa rede, cria a ilusão de que, ali, as pessoas se manifestam espontaneamente em seu próprio nome.

Tempos hipermodernos

A pretexto dessa crença, os jornais fazem o movimento inverso e também “repercutem” os movimentos que surgem na internet, sem averiguar sua procedência ou consistência. Especialmente se esses movimentos estão ideologicamente afinados com o que esses jornais defendem. Assim, logo depois de divulgados os números do segundo turno, começaram a aparecer manifestações de contestação ao resultado eleitoral e em favor do impeachment da presidente reeleita. Um abaixo-assinado com essa proposta obteve mais de 300 mil adesões e uma manifestação programada para o centro de São Paulo no dia 27/10 contava com a promessa de 30 mil participantes.

Compareceram 30.

Trinta pessoas reunidas numa grande cidade, para protestar contra o que quer que seja, não seriam notícia em lugar nenhum do mundo. Em outros tempos, dir-se-ia que a pauta caiu. Agora, não: O Globo noticiou a minúscula manifestação, embora em tom irônico e apenas em seu site. A notícia esteve entre as mais lidas e comentadas daquele dia e do dia seguinte.

Ou seja: nesses tempos de interatividade em que os jornais precisam desesperadamente de audiência, é notícia o que tem capacidade de despertar maior número de cliques, curtidas, compartilhamentos e comentários. Com a vantagem, no caso específico, de manter na ordem do dia um tema muito caro ao jornal. Nos tempos hipermodernos, é notável verificar como sobrevivem as velhas artimanhas.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)