Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Notas sobre uma reportagem do ‘Fantástico’

“Se queremos pensar em uma política para o Brasil em âmbito prisional, devemos pensar na política do desencarceramento” (frase da professora e pesquisadora Ana Gabriela Braga durante a apresentação da pesquisa “Dar a luz na sombra” no Seminário Gênero, Raça e Pobreza promovido pela Fundação Getúlio Vargas, em 13 de novembro de 2014). É a partir dessa afirmação que nós, do Projeto Estrangeiras e do ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, não poderíamos deixar de trazer algumas considerações e esclarecimentos acerca da reportagem “Polícia Federal apreende 955 quilos de cocaína em nove meses em Cumbica“, exibida no programa televisivo Fantástico, da Rede Globo, no domingo (9/11).

O tema central da reportagem exibida foi o da quantidade de drogas que é diariamente apreendida pela Polícia Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Esse tema, apesar da reportagem não ter abordado, exige obrigatoriamente que se debatam três outras questões extremamente interligadas: guerra às drogas, encarceramento em massa e mulheres presas estrangeiras.

A reportagem trouxe quatro situações de suspeitas da Polícia Federal de transporte da droga: dois casos eram de mulheres e ambas tiveram suas nacionalidades, assim como suas vulnerabilidades expostas em rede nacional.

Dados gerais

Em 2012, no Brasil, cerca de 50% das mulheres em situação de cárcere foram presas por tráfico de drogas, de acordo com estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). A partir das informações lançados no Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2011, pode-se afirmar que entre os anos de 2006 e 2011, ou seja, após a edição da nova Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/06), 15.263 mulheres foram presas no Brasil, sendo que 65% delas estavam sendo acusadas de tráfico de drogas.

É sempre importante ressaltar o dado de que no início dos trabalhos do Projeto Estrangeiras, havia cerca de 40 mulheres estrangeiras presas no estado de São Paulo e hoje esse número já ultrapassa cerca de 500 mulheres. Durante o período de 2005 até 2012, a população feminina estrangeira encarcerada apresentou taxa de crescimento de 1114%, enquanto a taxa masculina foi de 336%, de acordo com dados do DEPEN.

Esses dados representam muito mais que a perspectiva exibida na reportagem: eles significam que ao longo do tempo as mulheres estrangeiras crescentemente têm vindo ao Brasil como “mulas do tráfico de drogas” e isso não significa dizer que elas fazem parte de uma organização criminosa, mas que em vista da realidade socioeconômica em que estavam inseridas – ou seja, pobreza, únicas provedoras de seus lares e até devido a conflitos civis e militares em seus países de origem – elas acabam, de forma consciente ou inconsciente, realizando o transporte da droga, a qual, em sua extrema maioria, é cocaína.

A relação das mulheres “mulas” e o tráfico de pessoas

Instituições como o ITTC, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, identificam que muitas mulheres exercem o papel de mulas do tráfico de drogas em razão de seu contexto social anterior e são recrutadas exatamente para serem presas, isto é, elas funcionam como “bois-de-piranha”. Enquanto agentes se ocupam da prisão de uma mulher com pequena quantidade de droga, outras pessoas embarcam com quantidades muito maiores sem que se tenha conhecimento. [Confira também em nosso blog a série “Mulheres ‘mulas’, vítimas do tráfico e da lei”e a fala da Defensora Pública Federal Isabel Machado sobre o tema.]

O ITTC considera que as mulheres que transportam drogas sem terem conhecimento sobre o seu verdadeiro e real papel no esquema do tráfico internacional de drogas, são também vítimas de tráfico de pessoas, e devem ser reconhecidas como pessoas traficadas de acordo com os critérios do Protocolo de Palermo. [Artigo 3º, alínea a: “A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm (grifos nossos).]

A questão principal é enfatizar que as mulheres são aliciadas e coagidas em vista do quadro de vulnerabilidade social e econômica no qual estão inseridas, assim a extrema maioria delas não faz parte daquilo que se denomina como organização criminosa, não importando a questão se tinham conhecimento ou não que estavam realizando transporte internacional de drogas.

Vulnerabilidades

O termo “vulnerabilidade”, também não mencionado em nenhum momento na reportagem do Fantástico, explica em diversos níveis a prisão das presas estrangeiras e a problemática atuação da Polícia Federal voltada à apreensão de drogas.

Em primeiro lugar, o perfil de abordagem da própria polícia se baseia em critérios como o da vestimenta, raça, nacionalidade e gênero. Em seguida, as vulnerabilidades são acentuadas no caso das mulheres estrangeiras, já que seus costumes, a língua e os procedimentos policiais brasileiros são estranhos à realidade delas.

Na abordagem policial, as mulheres como um todo estão expostas a formas de violência específicas de gênero. Em quase 13 anos de experiência, a equipe do Projeto ouviu os relatos de violência contra muitas mulheres, entre as quais podemos destacar a abordagem policial feita exclusivamente por policiais homens, demonstrando a falta de uma perspectiva de gênero, e também a exposição dessas mulheres a situações degradantes, incluindo violações à sua dignidade sexual durante a revista ou no próprio interrogatório. [Ver em nosso blog o texto “Questão de gênero na audiência de custódia”.]

Parte das vulnerabilidades são de fato agravadas em razão da ausência de políticas públicas estatais em se tratando de formação, qualificação e contingente da Polícia Federal. Poucas pessoas policiais falam inglês e/ou espanhol, além de não estarem familiarizadas com abordagens baseadas no gênero, o que prejudica de maneira extrema a garantia e o exercício dos direitos dessas mulheres, de acordo com a legislação brasileira.

No dia 5 de novembro, dia em que a equipe de reportagem do Fantástico também estava no aeroporto de Guarulhos, a equipe do Projeto prestava assistência em um caso delicado envolvendo uma mulher estrangeira egressa do sistema prisional e questões internacionais. A própria presença do ITTC no aeroporto decorreu da impossibilidade de a Polícia Federal disponibilizar escolta policial, o que levou a exigir da sociedade civil o desempenho de uma função absolutamente estatal. Além disso, percebemos a falta de familiaridade com procedimentos corriqueiros como o da expulsão e enfrentamos grande dificuldade para encontrar uma pessoa policial que falasse a língua inglesa.

Mídia e tráfico de drogas

O ITTC como uma organização em defesa dos direitos humanos e de ações em prol do desencarceramento, enxerga a mídia e o diálogo como uma das principais ferramentas de transformações sociais e de produção de conhecimento.

Pautamos a necessidade das mídias como um todo retratarem as peculiaridades e as complexidades das narrativas que estão inseridas dentro da política de guerra às drogas.

A posição do programa expondo as nacionalidades e as imagens das pessoas nos quatro casos demonstrou uma falta de sensibilidade humana e também uma visão tendenciosa quanto à questão da política de drogas. Ainda que tenha havido o consentimento de cada uma das pessoas para a exibição, deve-se levar em conta a condição de vulnerabilidade, já exposta nesse texto, em razão de se ser uma pessoa estrangeira no Brasil e que está passando pelo “procedimento” de abordagem e revista de seus pertences pessoais pela polícia brasileira.

A reportagem transmitida pelo programa “Fantástico” trouxe apenas a perspectiva da própria política de guerra as drogas, demonstrando o papel que a mídia de maneira geral tem assumido dando continuidade a esse discurso. Essa visão única influencia diretamente a opinião pública, refletindo em outro discurso cada vez mais perigoso que é o do discurso de ódio e do encarceramento em massa.

A partir das reflexões anteriores, concluimos nossa nota em contraposição à seguinte frase inicial utilizada na reportagem: “No Aeroporto Internacional de São Paulo, em Cumbica, Guarulhos, passam mais de 100 mil pessoas todos os dias. Na bagagem de muitas delas, a prova de um crime”. Para nós, a questão das apreensões e aumento das prisões de homens e mulheres no Aeroporto Internacional de Guarulhos, antes de ser um crime, são a prova de uma realidade social de guerra às drogas e de reprodução da violência e da exclusão social.

******

Viviane Balbuglio é agente social do Projeto Estrangeiras do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)