Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Parecer ou provocação, um salto no escuro

A ombudsman-ouvidora da Folha de S.Paulo, Vera Magalhães Martins, aprovou a publicação por ser notícia, mas condenou o destaque na capa (Folha, 8/2, pág. 6) por conferir “peso jornalístico desproporcional a uma questão que não alcança idêntica dimensão institucional”.

Data venia, o artigo do jurista Ives Gandra Martins (“A hipótese de culpa para o impeachment“, 3/2, pág. 3) considerando juridicamente válido o impeachment da presidente Dilma Rousseff não pode ser classificado como notícia. É, no máximo, uma opinião, resumo informal de um parecer encomendado ao seu escritório. E, pelo visto, pago. Naquela mesma terça-feira, pelo menos uma dúzia de constitucionalistas eméritos e mais credenciados do que o eminente tributarista certamente ofereceriam pareceres diametralmente opostos. Suas opiniões não seriam consideradas notícia.

Notícia seria se o conservador Ives Gandra Martins – tão próximo do esquema militar anterior e dos círculos mais reacionários da Igreja – desancasse o golpismo embutido na jogada do impeachment. Impensada e irresponsavelmente, a Folha valorizou um negócio advocatício e encampou temerária manobra da direita infiltrada numa oposição originalmente socialdemocrata e hoje estouvada, doidona, ansiosa para associar-se com madame Marine Le Pen.

A própria ombudsman-ouvidora colocou na citada coluna uma advertência destacada de forma muito apropriada:

“Ebulição incomum do noticiário político requer dose extra de cautela para não incorrer em desequilíbrios jornalísticos”

Nem dose extra nem dose usual, a Folha atropelou todos os compromissos e responsabilidades que regem o comportamento de uma instituição jornalística em situações de crise. Para fazer barulho, chamar a atenção, fingir superioridade ou atender a um surto de onipotência juvenil, o jornalão de 94 anos embarca numa aventura extremamente perigosa. Como se a rememoração da tragédia ocorrida há meio século não estivesse tão presente.

Sem pirraça

E como sempre acontece, ao invés de fazer uma inflexão em direção da moderação, seguiu em frente nos desdobramentos seguintes. Na edição de sábado (7/2) – pelo menos nos exemplares distribuídos aos assinantes de São Paulo e Brasília – omitiu acintosamente as respostas que a presidente Dilma e o ex-presidente Lula divulgaram na véspera durante os eventos comemorativos dos 35 anos de fundação do PT. Dilma condenou os inconformados com o resultado das urnas e respondeu à provocação com outra: “Nós temos força para resistir ao oportunismo e ao golpismo, inclusive quando se manifesta de forma dissimulada”. Lula, mais experimentado e prudente, foi em cima daqueles que estão interessados em impedir que a sua sucessora conclua o mandato.

O concorrente Estado de S.Paulo, embora igualmente seduzido pelo ideário do parecerista Gandra Martins, publicou no mesmo sábado quase uma página inteira com a reação das lideranças do PT à tentativa de insuflar um movimento pró-impeachment da presidente (pág.12). Aprendeu a lição.

O país está na iminência de uma catástrofe climática – o colapso do sistema hídrico – e de um cataclismo econômico-político-social-institucional representado pelos descalabros na Petrobras.

Não é hora de fazer pirraça, nem beicinho. Uma semana antes a Folha já fora criticada por ter publicado no mesmo dia que o Estadão um texto do mesmo causídico sobre liberdade de expressão (ver “Parem, meninos, a briga não é essa“, a partir do intertítulo “Primado da mesmice”). Concorrência se exerce através da diversidade e do contraditório – se os dois jornalões defendem os mesmos postulados por meio dos mesmos colaboradores, ao leitor não restará outra alternativa senão dispensar um deles.

A Folha conta, há décadas, com um esplêndido elenco de profissionais. A começar pelo próprio diretor de Redação, sem favor um dos mais bem equipados do mercado para transformar-se em publisher.

Este tal parecer parece um salto no escuro.

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Perigo, convém evitar manobras perigosas – A.D.