Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A explosão do jornalismo

Surgiu novo sinal de que a comunicação compartilhada tem futuro e enorme potência transformadora. O jornalista francês Ignacio Ramonet – um dos estudiosos mais profundos, refinados e críticos da mídia convencional – acaba de lançar A Explosão do Jornalismo (disponível, por enquanto, apenas em francês). A grande novidade na obra é a esperança militante que o autor deposita na blogosfera, nas redes sociais e num novo jornalismo que se associe a elas.


Ao longo dos últimos quinze anos, Ramonet foi, talvez, o analista mais destacado da mercantilização e pasteurização da imprensa. Diretor (entre 1990 e 2008) da edição francesa do jornal mensal Le Monde diplomatique, ele abriu as páginas do jornal a textos agudos sobre a involução por que passaram os jornais, o rádio e a TV, no período. Apontou, sempre com muita riqueza de dados, a associação crescente entre imprensa e grande empresa. Associou este processo ao papel domesticador que a mídia passou a desempenhar no período – totalmente oposto ao conceito de ‘contra-poder’, reivindicado pelos defensores de uma democracia de alta intensidade. Cunhou, num editorial escrito em janeiro de 1995, o termo ‘pensamento único’, para denunciar o apagamento da diversidade. Lembrou que, nas novas condições, a imprensa passava a desempenhar, para as sociedades capitalistas, papel similar ao que o ‘partido único’ exercera nos países alinhados à extinta União Soviética.


Novos meios e os ‘neojornalistas’


Tal combate deu-lhe relevância e prestígio: político, teórico e acadêmico. Mas nos últimos anos – precisamente quando amplos setores sociais reagiram ao pensamento único apropriando-se da internet e criando um novo jornalismo horizontal e cidadão –, Ramonet parecia descrente. Seus textos continuaram apontando, ácidos, a degenerescência da imprensa-empresa. Mas ele mostrava-se pouco sensível à grande novidade. Numa entrevista concedida em São Paulo em 2008, durante o I Encontro do Jornalista Escritor, enxergou uma internet prestes a ser colonizada pelas grandes corporações da indústria da comunicação.


A Explosão do Jornalismo reverte este ceticismo. E Ramonet redefine sua posição aportando densidade teórica e imaginativa à luta para construir a nova mídia. No novo livro, ele busca, por exemplo, caminhos para associar a blogosfera a publicações que funcionem como nós na rede – pontos de convergência, debate e colaboração permanente entre blogueiros e outros comunicadores. Também especula sobre as maneiras de oferecer, aos novos meios e seus ‘neojornalistas’, condições de sustentabilidade material em bases pós-mercantis.


Ramonet concedeu ao jornal francês L’Humanité ampla entrevista sobre seu novo livro. É um prazer traduzi-la e oferecê-la aos leitores de Outras Palavras (A.M.)


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A emergência das testemunhas-observadoras dos acontecimentos


Você afirma, em seu livro, que ‘o jornalismo tradicional desintegra-se completamente’?


Ignacio Ramonet– Sim, inclusive porque ele está sendo atacado de todos os lados. Primeiro, há o impacto da internet. Parece claro que, ao criar um continente midiático inédito, ela produz um jornalismo novo (blogs,redes sociais, leaks), em concorrência direta com o jornalismo tradicional. Além disso, há o que poderíamos chamar de ‘crise habitual’ do jornalismo. Ela é anterior à situação atual. Desdobra-se em perda de credibilidade, diretamente ligada à consanguinidade entre muitos jornalistas e o poder econômico e político, que suscita uma desconfiança geral do público. Por fim, há a crise econômica, que provoca uma queda muito forte da publicidade, principal fonte de financiamento das mídias privadas, e desencadeia pesadas dificuldades de funcionamento para as redações.


A que se deve a perda de credibilidade?


I.R.– Ela acentuou-se nas duas últimas décadas, essencialmente como consequência do desenvolvimento do negócio midiático. A imprensa nunca foi perfeita, fazer bom jornalismo foi sempre um combate. Mas a partir da metade dos anos 1980 vivemos duas substituições. Primeiro, a informação contínua na TV, mais rápida, tomou o lugar da informação oferecida pela imprensa escrita. Isso conduziu a uma concorrência mais viva entre mídias, uma corrida de velocidade em que resta cada vez menos tempo para verificar as informações. Em seguida, a partir da metade dos anos 1990, com o desenvolvimento da internet. Particularmente há alguns anos, com a emergência dos ‘neojornalistas’, estas testemunhas-observadoras dos acontecimentos (sejam sociais, políticos, culturais, meteorológicos ou amenidades). Eles tornaram-se uma fonte de informações extremamente solicitada pelas próprias mídias tradicionais.


O ‘círculo da razão’


O público parece justificar sua desconfiança em relação à imprensa pela promiscuidade entre o poder e os jornalistas.


I.R.– Para a maioria dos cidadãos, o jornalismo resume-se a alguns jornalistas: estes que se veem em toda parte. Duas dezenas de personalidades conhecidas, que vivem um pouco ‘fora da terra’, que passam muito tempo ‘integrados’ com os políticos e que, em todo o mundo, conciliam bastante com eles. Constitui-se assim uma espécie de nobreza política, líderes políticos e jornalistas célebres que vivem (e às vezes se casam) entre si mesmos, uma nova aristocracia. Mas esta não é a realidade do jornalismo. A característica principal desta profissão é, hoje, a precarização. A maior parte dos jovens jornalistas é explorada, muito mal paga. Trabalham por tarefa, muitas vezes em condições pré-industriais. Mais de 80% dos jornalistas recebem baixos salários. Toda a profissão vive sob ameaça constante de desemprego. Portanto, as duas dezenas de jornalistas célebres não são nem um pouco representativas e mascaram a miséria social do jornalismo – na França e em mutos outros países. Isso não mudou com a internet – talvez tenha se agravado. Nos sites de informação em tempo real criados pela maior parte da velha mídia, as condições de trabalho são ainda piores. Surgem novos tipos de jornalistas explorados e superexplorados. O que pode consolá-los é saber que, talvez, seu futuro lhes pertença.


Nestas condições, o jornalismo pode ainda assumir o título de ‘quarto poder’, que age como um contrapoder?


I.R.– Vivemos uma concentração extraordinária das mídias. Quem examina a estrutura de propriedade da imprensa francesa, por exemplo, constata que ela está em mãos de um número reduzidíssimo de grupos. Um punhado de oligarcas – Lagardère, Pinault, Arnault, Dassault – tornou-se proprietário dos grandes meios. Estes expressam uma pluralidade cada vez menor e se supõe que defendam os interesses dos grandes grupos financeiros e industriais a que pertencem. Isso provoca a crise do ‘quarto poder’. Sua missão histórica, que consiste em criar uma opinião pública com senso crítico e capaz de participar ativamente do debate democrático, já não pode ser garantida. A mídia procura, ao contrário, domesticar a sociedade e evitar qualquer questionamento ao sistema dominante. Os grandes meios criaram um consenso em torno de certas ideias (a globalização e o livre comércio, por exemplo) consideradas ‘boas para todos’ e incontestáveis. Quem as renega deixa aquilo que Alain Minc chamou de ‘círculo da razão’. Entra, portanto, em desrazão…


Uma linha editorial clara e distinta


Você refere-se às vezes à necessidade de um ‘quinto poder’?


I.R.– Sim. Se constatamos que o ‘quarto poder’ não funciona, isso representa um grave problema para a democracia. Não se pode conceber uma democracia sem o autêntico contra-poder da opinião pública. Uma das especificidades dos sistemas democráticos está, aliás, nesta tensão permanente entre o poder e o respectivo contra-poder. É o que faz a versatilidade e capacidade de adaptação deste sistema. O governo tem, como contrapeso a seu poder, uma oposição, os patrões, os sindicatos. Mas a mídia não tem – e não quer ter! – um contra-poder.


Ora, há uma demanda social forte e crescente de informações sobre a informação. Diversas associações tem se constituído (na França, a Acrimed) para aferir a veracidade e o funcionamento da mídia. Para que a sociedade possa defender-se melhor. É assim que as sociedades constroem, pouco a pouco, um ‘quinto poder’. Sendo que o mais difícil é fazer com que a mídia dominante aceite este ‘quinto poder’ e lhe dê a palavra…


Em seu livro, você afirma que o futuro dos jornais escritos é tornar-se imprensa de opinião. Por que?


I.R.– Os jornais mais ameaçados são, em minha opinião, os que reproduzem todas as informações gerais e cuja linha editorial dilui-se totalmente. Embora seja importante, para os cidadãos, que todas as opiniões se exprimam, isso não quer dizer que cada mídia deva reproduzir, em si mesma, todas estas opiniões. Neste sentido, a imprensa de opinião é necessária. Não se trata de uma imprensa ideológica, ligada ou identificada com uma organização política – mas de um jornalismo capaz de defender uma linha editorial definida por sua redação.


Na medida em que, para tentar enfrentar a crise da imprensa, os jornais decidiram abrir espaço, em suas colunas, a todas as teses políticas, da extrema-esquerda à extrema-direita, sob o pretexto de que vale tudo, muitos leitores deixaram de comprar estas publicações. Porque uma das funções de um jornal, além de fornecer informações, é conferir uma ‘identidade política’ a seu leitor. Porém, agora, o jornal não expressa mais o que são seus leitores. Estes, ao contrário, confundem as identidades dos jornais e se desconcertam. Eles compram, digamos, Libération, e leem uma entrevista com Marine Le Pen. Aliás, por que não? Mas os leitores podem descobrir, por exemplo, que têm talvez algumas ideias em comum com o Front National. E ninguém lhes dá referências a respeito, o que provoca inquietação. Tal desarranjo confunde muitos leitores. Hoje, o fluxo de informações que transita na internet permite que cada um forme sua própria opinião. Em plena crise dos jornais, o sucesso do semanário alemão Die Zeit é significativo. Ele escolheu contestar as ideias e informações dominantes, com artigos de fundo – longos e às vezes árduos. As vendas crescem. No momento em que toda a imprensa faz o mesmo – artigos cada vez mais curtos, com um vocabulário de 200 palavras, Die Zeit escolheu uma linha editorial clara e distinta. Além disso, seus textos permitem lembrar de que o jornalismo é um gênero literário…


As mídias se reentrelaçam e se reorganizam


Ao mencionar a superabundância de informações, na internet e em suas redes sociais, você refere-se a sabedoria coletiva e a embrutecimento coletivo. Por que?


I.R.– Nunca na histórias das mídias os cidadãos contribuíram tanto com a informação. Hoje, quando um jornalista publica um texto online, ele pode ser contestado, completado, debatido por um enxame de internautas que serão, sobre muitos temas, tão ou mais qualificados que o autor. Assistimos, portanto, a um enriquecimento da informação graças aos ‘neojornalistas’, que eu chamo de ‘amadores-profissionais’. Lembremos que estamos numa sociedade em que formação superior tornou-se acessível como nunca antes. O jornalismo dirige-se, portanto, a um público muito bem formado – ainda que esta formação seja segmentada.


Além disso, as ditaduras que procuram controlar a informação não conseguem fazê-lo mais, como vimos na Tunísia, Egito e em outras partes. Lembremos que a aparição da imprensa, em 1440, não transformou apenas a história do livro. Ela sacudiu a história e o funcionamento das sociedades. Da mesma forma, o desenvolvimento da internet não é apenas uma ruptura no campo midiático. Ele modifica as relações sociais. Cria um novo ecossistema, que produz paralelamente a extinção maciça de certas mídias, em particular a imprensa escrita paga. Nos Estados Unidos, cerca de 120 jornais já desapareceram.


Significa que a imprensa escrita desaparecerá?


I.R.– A resposta é não. A história mostra que as mídias se reentrelaçam e reorganizam, ao invés de desaparecer. No entanto, poucos jornais vão sobreviver. Sobreviverão aqueles que tiverem uma linha clara, proponham análises amparadas em pesquisa, sérias, originais, bem escritas.


Breve chegará a hora de desvendar o poder econômico e financeiro


Mas o contexto da hiper-abundância de informações também desorienta o cidadão. Ele não chega a distinguir o que é importante e o que não é. Que informações são verdadeiras? Quais são falsas? Ele vive num sentimento permanente de insegurança informativa. Cada vez mais, as pessoas irão se propor a pesquisar informações de referência. Como assegurar um futuro à informação e aos que a fazem, agora, que ele é acessível gratuitamente?


I.R.– Embora seja incontestável que a imprensa online é a que dominará a informação nos anos futuros, é evidentemente necessário encontrar um modelo econômico viável. No momento, a cultura dominante na internet é a da gratuidade. Mas estamos, precisamente agora, entre dois modelos, e nenhum deles funciona. A informação tradicional (rádio, TV, imprensa escrita) é cada vez menos rentável. E o modelo de informação online não o é ainda, com raríssimas exceções.


Os novos espaços midiáticos podem modificar as relações de dominação que prevalecem hoje no seio da própria sociedade?


I.R.– Dediquei um capítulo inteiro de meu livro ao WikiLeaks. É o terreno da transparência. Em nossas sociedades contemporâneas, democráticas e abertas, será cada vez mais difícil para o poder manter dupla política: uma para fora e outra, mais opaca e secreta, para uso interno, onde há o direito e risco de transgredir as leis. O WikiLeaks demonstrou que as mídias tradicionais já não funcionavam nem assumiam seu papel. Foi no nicho destas carências que o WikiLeaks pôde introduzir-se e se desenvolver. O site também revelou que a maior parte dos Estados tinham uma lado obscuro, oculto. Mas o grande escândalo é que, depois das revelações do WikiLeaks, nada ocorreu! Por exemplo: revelou-se que, na época da guerra do Iraque, um certo grupo de dirigentes do Partido Socialista francês dirigiu-se à embaixada dos Estados Unidos para explicar que, se estivessem no poder, teriam envolvida a França na guerra. E este fato – próximo da alta traição – não provocou reações.


Esta evolução para mais transparência pode provocar efeitos concretos?


I.R.– Ela vai necessariamente atingir os privilégios das elites e as relações de dominação. Se as mídias podem, até agora, dissecar o poder político, é porque a política perdeu muito de seu poder, abocanhado pelas esferas financeiras. Sem dúvidas, é à sombra das finanças, dos traders, dos fundos de pensão que se localiza hoje o verdadeiro poder. Tal poder permanece preservado porque é opaco. É significativo que a próxima revelação anunciada pelo WikiLeaks diga respeito, precisamente, ao sigilo bancário. Graças aos novos sistemas midiáticos, tornou-se possível atacar estes espaços ocultos. Este poder é como o dos vampiros: a luz os dissolve, os reduz a poeira. Podemos esperar que, graças aos novos meios digitais, breve chegará a hora de desvendar o poder econômico e financeiro.

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De L’Humanité