Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Bill Keller é um cético, mídia prefere badaladores

A história da musa gay dos rebeldes sírios nada tem a ver com a troca de nomes na portaria do “New York Times”. Mas serve para identificar um padrão de jornalismo que a grande mídia impressa está importando sem qualquer reserva das novas mídias digitais.

Amina Abdallah Arraf está há algumas semanas no noticiário identificada como blogueira, gay, inspiradora da revolta contra a ditadura de Bashar Hafez. Nas fotos é linda e misteriosa, no noticiário mais recente informa-se que foi capturada pelo governo.

Nos jornais de segunda-feira, 13/6, descobre-se que Amina não é musa, não é gay e não existe. É uma fraude inventada por um americano de 40 anos, casado, que vive na Escócia e chama-se Tom MacMaster.

O jornalismo impresso também se alimentou de fraudes, falsificações, mistificações e invencionices. A yellow press (aqui tingida de marrom) foi a matriz do sensacionalismo cujos paradigmas são cultuados em todos os quadrantes do mundo ao longo de um século, até hoje. As malfeitorias só começaram a ceder quando encontraram nas redações e nas escolas de jornalismo os media critics, os críticos de mídia.

O Caso da Musa Gay da Síria é multiplicado ad infinitum no ciberespaço digital com o endosso da mídia impressa e eletrônica (rádio e TV). Será impossível vencê-lo porque as fraudes e velhacarias transformaram-se em armas para satirizar e avacalhar a própria instituição jornalística.

Bill Keller foi o Managing Editor, editor executivo do NYTimes ao longo de oito anos, justamente quando a corporação midiática mundial participou festivamente do gigantesco haraquiri existencial ao reconhecer e conformar-se com a sua derrota diante das mídias digitais. É um profissional à antiga, para quem a atividade jornalística resume-se a escrever. O resto é secundário. Escrever e contemplar. Escrever e reagir. Escrever e ser.

Começou a assinar uma coluna na revista semanal do próprio NYTimes e aos poucos foi-se especializando na defesa das velhas mídias, o inefável jornalismo impresso.

O texto “A armadilha do Twitter” publicado poucos dias antes do anúncio da sua substituição por Jill Abramson revela a dimensão das suas diferenças com o mainstream e o establishment jornalístico americano e, graças ao mimetismo, mundial. Diferentemente de José Saramago, Bill Keller não diz que o Twitter é a etapa anterior ao grunhido, ele reconhece sua utilidade, também a do Facebook.

O que o coloca na contramão do Pensamento Único Tecnológico é que as novas tecnologias não reconhecem o direito de alguém manter-se na contramão. Acontece que o jornalismo fundamenta-se primordialmente no ceticismo, na capacidade de duvidar. Jornalismo é uma forma de idealismo e o idealismo é essencialmente rebelde, inconformado.

Um bom jornalista da escola antiga mesmo sendo jovem não publicaria uma história sobre a musa gay da Síria antes de obter um mínimo de dados concretos sobre a sua existência.

A armadilha do Twitter, do Facebook e de seus sucessores consiste em oferecer um fabuloso arsenal de facilidades para atender desafios rasteiros, raramente edificantes. Este casamento produz uma onda simplificadora altamente reacionária cujos efeitos só podem ser percebidos e antecipados por figuras abdicadoras, rijas e tranquilas como Bill Keller.

 

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A armadilha do Twitter

Bill Keller # reproduzido de O Globo, 3/6/2011

Semana passada minha mulher e eu autorizamos nossa filha de 13 anos a entrar no Facebook. Em algumas horas ela acumulou 171 amigos e eu me senti um pouco como se tivesse dado à minha filha um cachimbo com ópio.

Não pretendo ser um estraga-prazeres. Edito um jornal que abraçou a nova mídia com entusiasmo e criatividade. Entendo que a internet alcança e mobiliza uma audiência global, que ela convida à participação e facilita – até certo ponto – a apuração de notícias. Mas, antes de nos rendermos à idolatria digital, devemos ponderar que a inovação sempre tem um preço. Às vezes imagino se ele não é um pedaço de nós mesmos.

O cativante best-seller Moonwalking with Einstein, de Joshua Foer, cita um colossal exemplo do que nós trocamos pelo progresso. Até o século 15, as pessoas eram ensinadas a guardar uma vasta quantidade de informações. Façanhas da memória – como recitar de cor livros inteiros – não eram raras. Então surgiu o Mark Zuckerberg de sua época, Johannes Gutenberg. À medida que nos acostumamos a depender da página impressa, o hábito de guardar de cor caiu gradualmente em desuso. A capacidade prodigiosa de se lembrar ainda existe, mas, para a maioria, está na garagem.

Meu pai, que estudou engenharia no MIT na época da régua de cálculo, lamentava que a calculadora de bolso, com todas as suas conveniências, reduziu a capacidade matemática de minha geração. Muitos de nós descobrimos que a navegação por GPS comprometeu nosso conhecimento sobre as ruas da cidade e talvez tenha até prejudicado nosso senso inato de direção.

Bater à máquina matou o ato de escrever à mão. Twitter e YouTube estão tirando nacos de nossa atenção. E o pouco de nossa memória que não entregamos a Gutenberg abdicamos em favor do Google. Por que lembrar se achamos em segundos?

Robert Bjork, que estuda memória e aprendizado na UCLA, notou que mesmo estudantes muito inteligentes, familiarizados com o Excel, não são capazes de perceber nos dados padrões que seriam evidentes se não tivessem deixado o programa fazer a maior parte do trabalho.

Foer leu que a Apple contratara um grande especialista em mostradores monitorizados – os painéis transparentes usados por pilotos. Ele se pergunta se isto significa que a Apple esteja desenvolvendo um iPhone que dispensaria usar os dedos no teclado. O comando viria diretamente do córtex cerebral (a Apple não quis comentar).

Estamos terceirizando nosso cérebro para a nuvem. O lado positivo é que isto libera massa cinzenta para coisas importantes. Mas meu pessimismo imagina se as novas tecnologias não estariam erodindo características essencialmente humanas: a capacidade de refletir, a busca por significado, a empatia genuína, um senso de comunidade conectado por algo mais profundo.

A mais óbvia desvantagem das mídias sociais é que elas são agressivamente distrativas. O Twitter não é uma mera presença no ambiente. Ele exige atenção e resposta – é o inimigo da contemplação e do aprofundamento. Cada vez que o notificador apresenta na minha tela um novo tuíte, eu experimento um pequeno surto de dopamina que me distrai imediatamente daquilo que eu estava fazendo, mas… mas… o que era mesmo que eu estava fazendo? Minha desconfiança em relação à mídia social é intensificada pela natureza efêmera dessas comunicações.

Não estou nem mesmo seguro de que esses novos instrumentos sejam genuinamente "sociais". Há algo decididamente falso sobre a camaradagem no Facebook, algo ilusório sobre conectividade do Twitter. Espreite uma conversa na multidão digital e, muito frequentemente, ela é reduzida e redundante.

Como uma espécie de experiência masoquista, outro dia tuitei "#Twittertorna você burro. Discuta." Isso produziu poucos flashes de inteligência ("Dê algum crédito a nossas escolas públicas!"); um par de respostas óbvias ("Depende de quem você segue"); algumas especulações compreensíveis de que minha conta tinha sido hackeada; e um monte de gírias. Quase todo mundo que não tinha algo profundo a dizer em resposta à minha pequena provocação preferiu fazê-lo fora do Twitter.

Numa discussão real, a informação é cumulativa, a complicação é reconhecida, às vezes a persuasão ocorre. Numa discussão no Twitter, opiniões e nossa tolerância às opiniões alheias são atrofiadas. Não sei se o Twitter torna você burro, mas ele faz algumas pessoas inteligentes parecerem burras.

Percebo que estou atraindo fogo de tuiteiros apaixonados, de acadêmicos que adoram idolatrar novidades e de colegas do "New York Times" que estão criando uma estratégia para a mídia social com o objetivo de ampliar o alcance de nosso jornalismo. Então deixe-me esclarecer: o Twitter é um recurso brilhante – um megafone para promoção, uma rede para a informação, uma valiosa ferramenta para organizar tudo, de encontros de donos de cães a revoluções. Embora eu não seja muito tuiteiro e preste pouca atenção à minha conta no Facebook, gosto de ver algo que escrevi cair na Twittersphere, mesmo quando sei – como agora – que o veredito da massa será hostil.

As desvantagens da mídia social não me incomodariam terrivelmente se eu não suspeitasse que a amizade de Facebook e a conversa no Twitter estão tomando o lugar da relação e da conversação reais. As coisas que podemos estar deixando de aprender – complexidade, acuidade, paciência, sabedoria, intimidade – fazem diferença.

BILL KELLER é jornalista. ©The New York Times