Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Manuel Pinto

‘Dos jornais e revistas que comunicam com os leitores através da escrita espera-se, antes de mais, que estejam bem escritos. Podem não ser o supra-sumo da arte literária, mas pede-se, ao menos, que não tenham erros de português. Pelo menos daquelas calinadas e pontapés na gramática que deixam o leitor, logo ali, de pé atrás, pondo em risco a própria credibilidade da informação veiculada pelas palavras e pelas frases.

É esta uma das matérias que mais motiva os leitores a queixarem-se ao seu provedor. Transcrevo a mais recente missiva, enviada por Américo Monteiro, através de correio electrónico

‘Senhor provedor, enviei há dias ao JN uma carta redigida em termos correctos, onde chamava a atenção para deslizes gramaticais de alguns dos seus repórteres. Citava o caso de, em três reportagens, elaboradas por dois repórteres diferentes, ambos formarem o plural de ‘capelão’ em ‘capelões’. Constatei que o reparo não foi publicado na página do leitor. Será que o JN se considera intocável e infalível, mesmo em questões gramaticais? Um pouco de ‘fair play’ não lhe faria mal nenhum. É Nietzsche quem afirma que quem não é capaz de se rir de si próprio revela ser pouco inteligente. Cumprimentos e votos de Bom Natal’.

O provedor agradece os votos natalícios que aproveita para retribuir e alargar a todos os que lêem e fazem o Jornal de Notícias. E agradece, sobretudo, a iniciativa do leitor de escrever, uma e duas vezes, para não deixar que o seu Jornal enverede por um autismo que lhe seria fatal.

Sei bem – e posso disso dar conta a quem lê – que os responsáveis deste diário não se consideram nem intocáveis nem infalíveis, ‘mesmo em questões gramaticais’. Ainda recentemente o director do JN, José Leite Pereira me dava conta da sua insatisfação a este propósito, reconhecendo, quanto à qualidade da escrita, que ‘mil e um alertas não resultaram’, continuando os problemas, ‘agora agravados’ com a saída, por motivo de reforma, de um dos profissionais que trabalhava nessa área.

Um observador atento, que não tome um caso ou mesmo uma edição como norma geral, reconhecerá que o problema da escrita não é calamitoso, mas é real, havendo umas zonas mais problemáticas do que outras. Numa obra que é colectiva, basta haver dois ou três elos mais fracos para comprometer a qualidade do conjunto. Por outro lado, num ‘produto’ que é concebido, redigido e editado em escassas horas, a um ritmo necessariamente acelerado e por vezes frenético, não é de estranhar que surjam erros. Estou mesmo convencido que alguns críticos que se sentem incomodados com as incorrecções frequentes seriam mais comedidos se se pusessem eles próprios no lugar de quem produz diariamente um jornal. Contudo, importa sublinhar que as críticas são frequentemente justificadas e haver quem se disponha a fazê-las representa um valor e uma responsabilidade acrescidos para o Jornal.

Repetidamente verificamos que há quem não saiba que o verbo ‘tratar-se’, não no sentido de ‘cuidar-se’ ou de ‘curar-se’, mas de ‘ser’, é impessoal e só se utiliza no singular. Assim, ferem os ouvidos e a gramática frases (que retirei das edições do JN dos últimos meses) como estas ‘independentemente de se tratarem de coberturas nacionais, regionais, ou locais?’ ou ‘alegavam que, por se tratarem de movimentos de apoio diferentes ?’. Algo de análogo se poderia dizer do verbo haver, quando utilizado com o sentido de ‘existir’ (‘haviam pedaços do carro sinistrado num raio de 50 metros’).

De outro tipo de casos que são relativamente frequentes, destaco, a título exemplificativo

– o uso de ‘gostar’ ou de ‘suceder’ como se fossem verbos transitivos (‘sabemos o que é que o público está a gostar’; ‘Maria Elisa, que o sucedeu no cargo?’);

– deficiências na transcrição de falas do discurso directo para o indirecto (‘fulano disse, ao JN, que ‘não fui prejudicado’);

– o recurso incorrecto a preposição regida pelo verbo ‘propor’ (‘propondo-se a desmontar ilusões’), verbo que, já que vem a propósito, nunca leva acento circunflexo, tal como acontece com todos os compostos de ‘pôr’.

São meros exemplos. Talvez o mais preocupante não seja sequer que tais deficiências existam, mas que não existam filtros eficientes que as combatam e, tanto quanto possível, previnam.

Em vésperas de mudanças no JN, anunciadas em linhas gerais pela Direcção e pela Administração, no jantar de Natal do passado dia 16 (cf. JN de domingo passado), pode ser que se venham a dar alguns passos nesse sentido. É o que se depreende das palavras de José Leite Pereira ao provedor ‘Na próxima reestruturação (?) interviremos novamente’. Que o desejo se torne realidade.’