Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O Rubicão de Tancredo Neves

Romance histórico ou romance reportagem? No caso de O Dossiê Rubicão – Quando a morte assume o poder, livro de Ramiro Batista publicado pela Editora Batel, a definição é o que menos importa. Trata-se de uma narrativa de fôlego, publicada em 510 páginas, um catatau que prende a atenção do leitor desde os primeiros parágrafos até o final comovente que serve de recado às novas gerações de jornalistas.

O nome Rubicão faz referência ao ribeirão que Júlio César atravessou com suas tropas, em 11 de janeiro de 49 a.C. Com esse ato, ele transgrediu a lei do Senado que determinava o licenciamento das tropas toda vez que um general de Roma entrasse na Itália pelo norte. A travessia foi uma declaração de guerra contra Pompeia. Com isso, César mudou os rumos da história e se tornou imperador, símbolo daqueles que tomam decisões radicais e assumem as consequências dos seus atos.

No livro de Ramiro Batista, o jovem repórter Gustavo Guerra substitui férias na editoria Geral da fictícia Folha do Povo. Decidido a ser contratado pelo jornal, ele mergulha fundo nos bastidores policiais e políticos do país em busca do furo de reportagem da sua vida. Outro objetivo do “foca” é desvendar o súbito desaparecimento de uma sedutora fotógrafa que tinha em seu poder um misterioso dossiê relacionado às estratégias do então governador de Minas, Tancredo Neves, para chegar à presidência da República.

Ironia do destino

Jornalista dos mais atuantes de Belo Horizonte, Ramiro também se formou em Literatura, trabalhou em assessorias de imprensa e num grande jornal da capital mineira, sendo hoje funcionário de carreira da Assembleia Legislativa do estado de Minas Gerais, onde dirigiu a estreante TV Assembleia. Contudo, sua narrativa foi quase toda ambientada em São Paulo, onde funciona o jornal fictício cuja redação é o principal cenário da trama.

A ideia do livro provavelmente surgiu quando o autor ainda era repórter de política, tendo participado da cobertura da campanha das Diretas Já e do processo de eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República. Alicerçado numa pesquisa detalhista e bem fundamentada, Ramiro dá corpo literário às intrigas e conspirações ocorridas nos instantes finais da ditadura militar, quando a derrota da emenda Dante de Oliveira favoreceu o conchavo das elites e o encaminhamento da sucessão de Figueiredo para o Colégio Eleitoral.

O mais intrigante, no entanto, é a constatação de que Tancredo teria conspirado com militares do porte do general Waldir Pires, visando a garantir a transição política sem grandes traumas. Chegou a montar um escritório secreto no Rio de Janeiro, onde se encontrava com sinistras figuras do regime militar. A ironia é que o destino conduziu o candidato da Aliança Liberal ao trágico desfecho de uma doença cujo tratamento foi adiado ao máximo em favor de sua ambição pelo poder. Em seu lugar, assumiu o vice José Sarney, oriundo do PDS, antiga Arena, partido que deu sustentação política à ditadura.

Diferenciando alhos de bugalhos

Em ritmo de thriller policial, o escritor desenvolve sua narrativa sob dois ângulos de observação: o da ficção e o da História propriamente dita. De um lado está o dia-a-dia dos jornalistas numa redação convulsionada pelos temas da pauta e pela ascensão de um jovem diretor arrivista, que enxerga a atividade jornalística como mero negócio a ser modernizado a todo custo. De outro, o noticiário da primeira metade da década de 1980, na qual se destacam o tumultuado processo sucessório e os últimos momentos do regime de exceção que fora implantado em 1964.

Com O Dossiê Rubicão – Quando a morte assume o poder, Ramiro Batista revela toda a força do seu talento literário ao misturar os ingredientes básicos de um best-seller – como sexo, paixão, poder, trama policial e muito suspense –, mostrando o Brasil num momento de mudanças cruciais, inclusive na maneira de pensar e fazer jornalismo.

Numa reflexão corajosa dos novos rumos assumidos pela mídia nacional, um único parágrafo do penúltimo capítulo radiografa a realidade vivida nas redações: “Se tivesse humildade e vergonha na cara, o filho (Humberto, chefe de redação) talvez se deixasse sentar e pedir desculpas (ao repórter Gustavo, que prova a veracidade do furo de reportagem). Mas era prepotente e pretensioso demais para tanto, da nova estirpe de executivos de sangue frio que buscavam resultados sem considerar os códigos de respeito e lealdade que marcaram a geração anterior a seu devastado processo de modernização.” Trata-se, portanto, de leitura recomendável principalmente a jornalistas e estudantes de Comunicação, para que aprendam a diferenciar alhos de bugalhos.

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[Jorge Fernando dos Santos é jornalista e escritor, Belo Horizonte, MG]