Dezembro de 2024 marca os 15 anos da primeira e única Conferência Nacional de Comunicação no Brasil, realizada em 2009. Considerada um marco histórico para os movimentos sociais que lutam pela democratização desse setor, a Confecom (como ficou conhecida) conseguiu mobilizar os mais diversos segmentos sociais em todo o país para discutir, pela primeira vez, políticas públicas, colocando sociedade, Estado e empresários na mesma mesa de debates. Ocorreram conferências estaduais, livres, sem contar os inúmeros encontros que a Confecom gerou nas câmaras municipais, assembleias legislativas e tantos outros espaços extraoficiais.
Todo esse acúmulo de debates resultou em mais de 600 propostas aprovadas na plenária nacional e numa grande expectativa de que a comunicação entrasse de vez no rol das políticas de Estado prioritárias; porém, o pós-Confecom foi marcado por muita frustração e poucas realizações do que foi proposto.
Daquele ano histórico até aqui, o que se observa é um enorme vácuo, no qual a comunicação no país permanece à margem das prioridades no que tange tanto ao debate democrático e participativo em nível institucional quanto à execução de políticas públicas de Estado para a comunicação. Mas quais razões explicam esse “esquecimento” da Confecom após 15 anos de sua primeira edição?
Pressão dos grupos de mídia
Em grande medida, essa realidade se sustenta pela significativa e histórica influência dos conglomerados de mídia sobre as instituições estatais e o processo de construção das políticas, fruto de seu domínio hegemônico sobre o mercado.
Esse poder de pressão – especialmente aquele proveniente dos radiodifusores – foi determinante para os rumos que a Confecom tomaria mesmo antes da sua convocação, tornando-se explícito no decorrer da organização da Conferência. Ela se mostrou amplamente suscetível à interferência do setor empresarial, seja no que se refere à imposição da sua agenda, seja quanto à dinâmica de funcionamento da Confecom. Nessa constatação também entra o Estado, que se mostrou frágil e, por vezes, colocando-se numa posição favorável às pautas do mercado.
A debandada de entidades representativas dos grupos de mídia – como ABERT, ABTA, ABRANET, ADJORI BRASIL, ANER e ANJ – durante a organização do evento mostrou, na prática, que a realização da Confecom e as propostas ali aprovadas, além de serem vistas como ameaças de censura, não possuíam qualquer relevância para o empresariado, que não reconheceu a Conferência como espaço legítimo de debate e formulação de políticas públicas. Isso deixou a Confecom numa posição subalterna – pode-se dizer até marginal – dentro do que podemos chamar de ciclo ou rede de políticas de comunicação.
O editorial do jornal O Estado. de S. Paulo de 16 de dezembro de 2009, intitulado “Os perigos da Confecom” (reproduzido pela revista Exame), deixou isso explícito ao expor um temor desmedido e sem fundamento contra um fantasma (esse sim real) que a própria grande mídia sustentou num passado não muito distante, o do autoritarismo. “Controle público e social” e marco regulatório são igualados a um “tribunal de mídia” imaginário, “esquecendo-se” da censura de que foram cúmplices no regime militar e da censura rotineira que impõem a seus jornalistas.
Vale destacar, porém, que esse tipo de comportamento do empresariado não é novidade. Ao longo da história, qualquer mudança de cunho democrático proposta pela sociedade civil ou por agentes políticos compromissados com a democratização da comunicação foi motivo de forte contestação por parte do mercado. Foi assim nas discussões do Conselho Nacional de Comunicação durante os debates da Constituinte, os quais geraram a Constituição Federal em vigor. O Conselho foi rechaçado pelos empresários, que não queriam uma instância democrática com atribuições executivas e regulatórias, como deliberar sobre políticas públicas, além de aprovar e fiscalizar concessões de rádio e TV. O resultado disso foi a criação do Conselho de Comunicação Social, espaço colegiado limitado a auxiliar o Congresso Nacional em suas demandas e conhecido por permitir que representantes da grande mídia ocupem assentos legalmente reservados à sociedade civil.
O Conselho Federal de Jornalismo, a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), entre outras propostas de cunho progressista abortadas ao longo dos últimos 20 anos também foram alvos do intenso e bem-sucedido poder de pressão exercido pelos conglomerados de mídia.
Do outro lado, as organizações de movimentos sociais, que, ao longo da história, reivindicam mais espaço de participação e incidência sobre as políticas públicas de comunicação, dado que se veem sub-representadas nessa seara, além de sufocadas por uma agenda política que mantém o status quo; em outras palavras, uma agenda que mantém intacta a concentração da propriedade dos media e um arcabouço legal ultrapassado, com prazo de validade vencido há décadas.
Suas propostas de democratização são, apenas eventualmente, debatidas por meio dos escassos (por que não dizer raros) mecanismos institucionalizados de representação e participação – caso do Conselho de Comunicação Social –, mas raramente executadas pelas instituições estatais competentes.
Conferência meramente consultiva e desprestigiada pelo Estado
Dado o processo de fragilização e esvaziamento sofrido pela 1ª Confecom no decorrer de sua construção, dentro desse contexto é possível identificar outra razão para o seu “esquecimento”. Seria a inexistência de uma instância oficial voltada à avaliação, sistematização e ao acompanhamento dos resultados da Conferência, a fim de lhes dar o encaminhamento correto para que, de propostas, se transformassem em políticas de fato. Mas não só: também garantiria a preparação de uma segunda Conferência.
A ausência desse mecanismo se deve ao fato de a Confecom não ter possuído um caráter deliberativo e vinculante, no sentido de que suas decisões fossem de cumprimento obrigatório pelas instâncias responsáveis por legislar e executar as políticas – Congresso Nacional e Ministério das Comunicações, respectivamente. Logo, na falta dessa instância de controle, torna-se mais difícil, por exemplo, identificar se alguma das propostas debatidas e aprovadas na Conferência se tornou lei ou política pública.
Neste ponto, cabe abrir um parêntese para destacar um importante paradoxo. Se, de um lado, constatou-se uma maior centralidade e importância para as conferências de políticas públicas durante os governos Lula (2003-2006 e 2007-2010), também ficou nítida a pouca relevância dada ao debate sobre a comunicação se também considerarmos o número de conferências no mesmo período em tela – foram 74 ao todo, segundo apontam estudiosos da ciência política no Brasil, como Leonardo Avritzer.
Novo marco legal: protagonista na Confecom, pauta é arquivada pelo governo e gera movimento social
Como vimos, não é difícil identificar os porquês de a Conferência Nacional de Comunicação ter sido convocada apenas uma vez na história e praticamente se limitar a frias funções de consulta e diagnóstico. Os mesmos porquês também nos ajudam a entender o “esquecimento” com relação à proposta de um novo marco regulatório, tema altamente em voga à época tanto na sociedade civil quanto em Brasília.
Forjada por associações da sociedade civil historicamente mobilizadas em torno dessa temática – como o Coletivo Intervozes e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) –, além de debatida e aprovada durante a 1ª Confecom, essa agenda não foi colocada oficial e publicamente na mesa de discussão pelas instâncias estatais (leia-se Ministério das Comunicações e Congresso Nacional). Também não há qualquer previsão para que isso aconteça, ainda que o atual governo seja liderado pelo mesmo presidente que, em 2009, convocou e lançou a Conferência, e, poucos anos depois, ensaiou, timidamente (quase que em segredo), apresentar uma minuta de projeto de lei para debate público antes de encaminhá-la para análise de deputados e senadores.
Visto que não se podia esperar qualquer tipo de iniciativa que partisse do governo federal, e menos ainda dos legisladores, eis que surge dos movimentos sociais a campanha Para Expressar a Liberdade – Uma nova lei para um novo tempo, em 2012, apresentando à população brasileira um caminho legal para se alcançar uma mídia mais democrática e cidadã. A mobilização não atingiu seu objetivo – que era obter o número de assinaturas necessário para enviar o projeto ao Congresso Nacional –, mas mostrou que o legado da Confecom ainda estava vivo na sociedade.
É fato que, ao longo dos últimos 15 anos, outras pautas emergiram na esteira das transformações sociais e tecnológicas, minimizando a relevância, ou mesmo a urgência, de se colocar o marco regulatório da comunicação na fila das agendas prioritárias de governo – o que deveria ser exatamente o contrário, já que, num cenário de constantes mudanças, a regulação cumpre um papel garantidor de direitos e deveres, organizando o mercado e garantindo que a sociedade seja beneficiada por esses avanços.
Mas também é fato que isso não é o suficiente para explicar o “esquecimento” do legado da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. O empresariado – seja o que virou as costas para a Confecom, seja o que aceitou (sob várias condições) debater – é, como vimos, peça-chave nesse processo de fragilização e “amnésia”, dada a sua histórica influência e poder de lobby sobre as decisões governamentais na área da comunicação.
Menosprezada pelos interesses da mídia dominante, sob o olhar conivente e passivo do Estado, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação se encerrou definitivamente no dia 17 de dezembro de 2009, deixando apenas como seu legado real a grande mobilização social que gerou naquele ano histórico, além de um futuro incerto.
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Vilson Vieira Junior é jornalista formado em Comunicação Social e mestre em Ciências Sociais, ambos pela UFES. Tem diversos artigos publicados no Observatório da Imprensa, em outros portais especializados em Comunicação e na imprensa capixaba sobre políticas de comunicação, crítica de mídia e instituições participativas de Estado.