Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Julgar com conhecimento

MÍDIA & RPG

Marcelo Allen (*)

Parece que muito do que é dito sobre a ligação entre o RPG e os assassinatos se baseia na possibilidade de o jogo ser utilizado como meio para cooptar pessoas e levá-las a praticar "rituais" e crimes. Não é tão difícil usar-se qualquer instrumento como meio para se obter um fim qualquer. Vejamos alguns:

1) Em seu contexto histórico-social, as Cruzadas tiveram diversos motivos. Mas não podemos negar que o meio encontrado para cooptar o apoio da população e governantes europeus da época foi a religião cristã, que mantém como máxima "o amor ao próximo". Certamente isso foi um caso de conspurcação dos ensinamentos daquela religião, mesmo que tenha sido realizado por seu supremo representante – o papa. Os ideais do cristianismo não combinam em absoluto com os atos praticados – mas foram realizados em seu nome.

2) Ainda no tópico religião, podemos nos lembrar de Jim Jones, o pastor que convenceu sua congregação a se suicidar em massa na Guiana. Outra vez a religião foi o meio para ganhar a confiança das pessoas, e tanta foi a confiança depositada que por ela se mataram.

3) Quando os primeiros aeroplanos foram inventados, seus idealizadores os construíram apenas para que facilitassem o transporte – e, de fato, hoje em dia o transporte aéreo é parte indispensável da nossa sociedade. Mas logo surgiu alguém que descobriu um jeito de utilizar os aviões como arma – e hoje em dia os aviões são os soberanos do campo de batalha. No dia 11 de setembro ficou demonstrado que mesmo os aviões de passageiros são armas de grande efeito. Alberto Santos Dumont suicidou-se, e dizem que um dos motivos de sua depressão foi o uso de aviões pelas forças de Getúlio Vargas contra os soldados paulistas em 1932.

4) O medo de que os alemães descobrissem como fazer uma bomba atômica levou os EUA a inventarem-na primeiro, e até mesmo as lançaram sobre duas cidades japonesas, Hiroxima e Nagasaki. Apesar do começo violento, hoje temos usinas nucleares para geração de energia elétrica, e o estudo da Física Nuclear propiciou vários benefícios tecnológicos e científicos.

5) Um dos meios mais utilizados por quadrilhas para invadir condomínios e casas é disfarçar um dos integrantes de carteiro ou entregador.

6) A vacinação nada mais é do que infectar a pessoa com uma variante "fraca" do agente causador de uma doença, para que o corpo aprenda a preparar o sistema imunológico para combatê-la – e funciona muito bem! O antídoto do veneno de cobra é feito a partir do próprio veneno.

7) A pesquisa médica/bacteriológica/genética já salvou a vida de muita gente. No entanto, esses mesmos conhecimentos nos permitem criar variantes mais letais de bactérias já existentes, como o carbúnculo (antraz), que é o assunto do momento.

Eu listei esses exemplos porque todos eles têm essa característica comum de meios que surgiram para uma finalidade, mas que foram utilizados para outras. Entretanto, eu tomei o cuidado de selecionar exemplos de meios que inicialmente tinham finalidades louváveis, mas foram usados para práticas nocivas (exemplos 1, 2, 3, 5 e 7), e meios cuja finalidade era nociva, e se tornaram benignos (4 e 6). A moral da história é: os meios não determinam a finalidade. Eles são instrumentos, que nas mãos de uns serão armas, e nas mãos de outros serão remédios.

Superando dificuldades

A suposta ligação entre RPG e os crimes praticados provém da alegação de que algumas pessoas que jogam RPG participam de rituais estranhos, que os incentiva a atitudes criminosas. O argumento é: se algumas pessoas que jogam RPG praticam crimes, então o RPG conduz ao crime.

Se utilizamos essa mesma lógica simplista (simplória) aplicada a este caso, então teríamos que banir a religião cristã, o correio, os serviços de entregas, a pesquisa médica etc. Não acredito que ninguém em sã consciência vá propor esse tipo de coisa. Então por que o RPG é tratado de forma diferente? Estamos utilizando os mesmos pesos e medidas que utilizamos para julgar as outras coisas?

Neste ponto podemos nos perguntar o que é esse RPG, afinal. E eu posso dar a resposta, pois, como centenas de milhares de outras pessoas por todo o mundo, eu jogo RPG. Comecei há mais de 10 anos, já como "mestre", e ainda jogo sempre que posso (o que infelizmente não é muito…). O jogo é uma espécie de teatro, onde cada jogador interpreta um papel, e o mestre dirige as cenas. Os personagens podem ser qualquer coisa: cavaleiros medievais, magos, vampiros, jogadores de futebol, astronautas, cientistas. policiais, jornalistas, super-heróis, coelhos falantes, padres, freiras, anjos, demônios, você escolhe. No decorrer da aventura, os personagens (não os jogadores!) enfrentam várias adversidades, e podem até acabar morrendo, como conseqüência de um tiro, por exemplo. O personagem morreu – e daí? O jogador prepara outro, e volta à aventura… Muitas pessoas já viram uma sessão de RPG, mas não sabem. Foi no filme ET, de Spielberg. Da próxima vez que forem vê-lo, prestem atenção na brincadeira dos garotos. É isso.

Os jogos de representação existem há mais de 25 anos, e nesse meio tempo centenas de milhares de pessoas participaram deles. E, curiosamente, apenas uma dúzia de vezes ou menos houve tentativas de relacionar RPG com crimes – contando com estas. Use o bom- senso: se o RPG foi concebido como um meio de transformar as pessoas em criminosos violentos, então eu imagino que foi o maior fracasso da história, pois só teria sido bem- sucedido com 1 pessoa em cada 10 mil ou mais, e só a cada tantos anos… E eu faço questão de apontar que em todos os casos investigados até hoje a ligação entre o RPG e o crime era circunstancial ou inexistente. Para quem entende inglês e quer se inteirar sobre esses casos, eu recomendo < www.theescapist.com/>.

Algumas pessoas declararam que o RPG ensina a cometer crimes, ou a ser violento. Quanto a ser violento, não precisamos do RPG. Qualquer filme "de ação" é muito mais "educativo" para essa finalidade – aliás, o noticiário dos jornais já é uma "escola" tão boa ou melhor. Por incrível que pareça, acreditem ou não, uma coisa bastante valorizada em alguns RPGs é a fragilidade da vida. Ninguém quer que seu personagem morra, mas isso pode acontecer, bastando apenas um tiro certeiro. Enfatiza-se muito que os personagens devem procurar meios razoáveis de superar as dificuldades. E, como na vida real, os personagens precisam conviver com as conseqüências de suas atitudes.

Aventura educativa

Quanto a ensinar a cometer crimes, eu tenho um exemplo da vida real. Uma das editoras de RPG dos EUA, chamada Steve Jackson Games, foi invadida um dia pelo FBI. A acusação era de que eles estavam produzindo um manual do crime eletrônico. O tal "manual" foi completado e está à venda, chama-se "GURPS Cyberpunk", e é um livro de RPG com regras para se jogar num cenário futurista, onde o crime eletrônico é tão comum quanto o crime de colarinho branco hoje (mas a impunidade é bem menor…). O caso foi julgado e a Justiça sentenciou o FBI a devolver o material apreendido. O RPG foi inocentado.

Também acho muito difícil para alguém cometer um crime eletrônico jogando dados e olhando para um pedaço de papel enquanto conversa, que é o que acontece em uma sessão do jogo. Como se estrangula um personagem durante uma sessão de RPG? O jogador diz: estou estrangulando o personagem X. O mestre responde: faça um teste de força. O jogador olha na sua ficha, joga dados e diz ao mestre: consegui (ou não consegui). Acabou. Digamos que não é exatamente muito "educativo"; ou então eu acabei de ensinar a todos os leitores como se estrangula…

Que tal uma magia? O jogador diz: vou fazer uma magia para que o guarda durma. O mestre responde: se você tem os pontos de energia necessários, gaste-os e jogue o dado para ver se consegue. O jogador joga os dados e responde: consegui (ou não consegui). Todos os leitores já se sentem devidamente instruídos sobre magia? Pratique com seu vizinho, faça-o dormir com mágica…

Por outro lado, eu sei, por experiência própria, o quanto o RPG pode ser educativo. Em primeiríssimo lugar, na minha opinião, está o fato de que o jogo foi feito para que os jogadores trabalhem em grupo. Só isso já coloca o RPG totalmente à parte dos outros jogos, do dominó ao videogame. Mas não pára por aí. As aventuras se passam em diferentes locais e épocas (alguns puramente fictícios), e isso pode ajudar os jogadores a entender melhor uma certa época, cultura ou lugar. Não estou dizendo que o RPG é um livro para ensinar História; mas, se a aventura inclui uma viagem no tempo, o jogador, ainda que sem perceber, acaba aprendendo alguns fatos sobre a época e os acontecimentos históricos (se o mestre pesquisou direito; senão, pode ensinar errado). Uma aventura planejada por um educador pode efetivamente ser utilizada para ensinar algo. Já existem propostas como essa pela internet afora.

Anos de pesquisa

Um outro aspecto interessante é que o RPG permite que os jogadores vivenciem situações que os fazem repensar suas atitudes. Por exemplo, um jogo pode ser ambientado no Brasil do século 19, com personagens negros – e portanto escravos. A experiência de se imaginar na pele de um escravo pode favorecer uma atitude mais tolerante e compreensiva por parte dos jogadores no futuro – e certamente não piorará um eventual preconceito que algum jogador porventura tenha a esse respeito.

Além disso, há a socialização inerente a qualquer jogo, com a vantagem adicional de que neste os jogadores não são adversários, mas sim parceiros. Conheci muitas pessoas excelentes jogando RPG, e nos divertimos muito. Porque a finalidade do RPG é divertir. Isso não impede que algumas pessoas usem o RPG para finalidades nada divertidas. Os ideais da Justiça não impediram que as obras do TRT de São Paulo fossem superfaturadas. Os ideais cristãos não impediram que as Cruzadas e a Inquisição fossem criados pela própria Igreja. Os ideais da Ciência não impedem que novas armas de alta tecnologia sejam criadas pelos cientistas. E, de novo, nem por isso estamos dizendo que o cristianismo, a Justiça ou a Ciência levam ao crime…

Até hoje se debate sobre a influência da TV sobre as pessoas. E não parece que esteja perto do fim. Apesar de diversas pesquisas terem sido e estarem sendo realizadas, por pesquisadores de bom nível e qualidades reconhecidas, ainda não existe um consenso sobre este assunto. Quantos anos mais vão se passar até que conheçamos a resposta, ninguém sabe. Aliás, nem se existe uma resposta simples… Então, é no mínimo ingênuo dizer que "a polícia vai investigar se existe alguma ligação entre RPG e os crimes". A polícia poderá, quando muito, dizer se o(s) assassino(s) jogavam RPG… Do mesmo modo como poderá dizer que ele(s) fumava(m) a marca de cigarro Z, ou freqüentava(m) lanchonete M, ou se vestia(m) com jeans, camiseta branca e boné da torcida organizada.

Parece que um promotor em Minas convidou um psicólogo para acompanhar as investigações. Acho ótimo. Mas eu espero que esse um psicólogo não se sinta "tentado" a triunfar de repente onde centenas de colegas trabalhando por anos falharam… Se existe alguma influência nociva do RPG sobre as pessoas (no que não acredito), então pode ter certeza de que só saberemos após muitos anos de trabalho de pesquisa, por profissionais de competência comprovada.

Consulte a gata

Um recado para os jornalistas: algumas pessoas acreditam que vocês têm uma função profissional a desempenhar na sociedade. Eu sou uma delas. Meu melhor amigo é jornalista, e através dele aprendi o quase nada que sei sobre jornalismo. Uma das coisas que penso ter aprendido é que o jornalista procura esclarecer o seu público, levando a ele informações tão confiáveis e completas quanto possível. Se isso for verdade, então o mínimo que a Sra. Rozane Monteiro [ver remissão abaixo] deveria ter feito era ter procurado jogadores de RPG em locais variados, ou uma editora de livros de RPG, ou uma das associações de jogadores (existe pelo menos uma em cada grande cidade brasileira), para poder informar ao leitor o que é esse jogo, e a opinião dos praticantes sobre a ligação sendo aventada entre RPG e os assassinatos. Na minha opinião pessoal, seu desempenho foi muito aquém do desejável para um jornalista. Mas, como sou ignorante quase total no assunto, prefiro conhecer o que pensam seus pares, afinal aqui é o Observatório da Imprensa.

Espero que esteja claro que a comunidade de jogadores é grande, composta por pessoas dos tipos mais variados, e que não podemos ser julgados pelo que dizem que um (ou alguns) jogadores de RPG fizeram. Em verdade, eu sinto que a ignorância a respeito do RPG e a dor da perda da filha foram as principais causas da reação da Sra. Sonia Ramos. Eu apelo a ela para que se junte a nós, assim como nos juntamos a ela, para procurar conforto mutuamente. Ela pela perda indescritível que sofreu, e nós por sermos considerados criminosos, malucos ou perigosos, pelo mero fato de jogarmos um jogo, que por acaso é a melhor forma de diversão social que existe, na minha opinião.

A melhor resposta à ignorância é o conhecimento. Conhecimento real, comprovável, baseado em fatos e teorias verificáveis. O tipo de conhecimento que costumamos chamar de científico. Crenças à parte, até hoje não apareceu um único indício razoável da existência de "magia". Portanto, consultar alguém que é um "bruxo renomado" (sic) é tão útil quanto consultar a minha gata – ou melhor, a minha gata, por não saber falar, não pode mentir, e assim é muito mais confiável…

(*) Email: <mpallenbr@yahoo.com.br>


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