Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Logro e simulação na indústria do ensino

FÁBRICAS DE DIPLOMAS

Carlos Eduardo Palhano

Meses atrás, acompanhei com especial atenção o debate, travado neste Observatório, em torno da qualidade dos cursos de Comunicação ministrados pelas instituições de ensino superior de massa. Estava, então, cursando o último período de Jornalismo numa das maiores redes de ensino privado do país e concluindo monografia intitulada "Em busca de um novo curso superior de Jornalismo" ? cujo objetivo principal era, justamente, analisar criticamente a mercantilização do ensino superior brasileiro.

Na época, indignado com a empáfia e o niilismo do discurso de alguns empresários da educação, redigi carta para este fórum revelando o resultado vergonhoso da pesquisa que havia realizado sobre os vestibulares destas "McUniversidades". Contudo, não cheguei a enviá-la. Contive meu ímpeto diante da ponderação de alguns amigos de que a divulgação prévia do conteúdo da pesquisa poderia dar à universidade o argumento legal para a não-aceitação da minha monografia ? uma vez que uma das exigências de um trabalho monográfico é o seu ineditismo.

Suplantados os entraves formais, sinto-me no dever de tornar público o conteúdo integral da supracitada pesquisa. Não obstante, na qualidade de ex-aluno, gostaria ainda de, partindo de uma visão endógena, registrar algumas impressões e opiniões pessoais que possam contribuir para o debate em torno do sistema de ensino superior privado.

Primeiramente, nunca concordei por completo com as razões apresentadas por alguns acadêmicos para explicar a notória baixa qualidade do ensino privado. Apesar das criticas, quase sempre, incidirem sobre o corpo docente e as supostas precárias condições de estudo, não foi com esta realidade que me deparei nas duas instituições privadas que fizeram parte da minha trajetória acadêmica. Pelo contrário, em ambas encontrei equipamentos e instalações muito superiores aos das duas instituições públicas localizadas no mesmo município. Em especial, na Universidade Estácio de Sá, na qual me graduei em Jornalismo, tive acesso a modernos equipamentos e a bem-aparelhados laboratórios.

Quanto às demais McUniversidades da Cidade ? com o perdão do trocadilho ?, a julgar pelas suntuosas edificações que ostentam, comparáveis arquitetonicamente apenas a algumas igrejas evangélicas, não dá para imaginar precárias condições de estudo em seus interiores.

Menos ainda tenho a falar sobre o corpo docente destas instituições. Devo muito do que sei aos professores que encontrei nos bancos acadêmicos do setor privado. Para tudo o que isso possa valer, posso atestar que, em sua grande maioria, são profissionais sérios e empenhados em melhorar a qualidade do ensino superior brasileiro.

Contudo, o mesmo não posso dizer a respeito daqueles que ocupam os altos escalões destas empresas educacionais. Que, de fato, são competentes não nego ? haja vista a quantidade de novos "clientes" que suas estratégias de marketing conseguem captar a cada ano. Estratégias estas cujo "custo de oportunidade" é, tão somente, a qualidade de ensino ? algo imensurável e sem qualquer valor contábil.

A lógica desta dicotomia entre eficiência gerencial e qualidade de ensino é simples, porém infausta. Na busca pela otimização de seus resultados, tais empresas educacionais, tacitamente, abandonam o setor terciário e migram para o setor secundário da economia. Ou seja, deixam de vender um serviço, o ensino superior, e passam a comercializar um bem, o diploma de terceiro grau ? cuja demanda é, realmente, muito maior.

No entanto, esta venda de diplomas não acontece explicitamente, mas, sim, por intermédio de continuas concessões que se encarregam de eliminar os obstáculos, mas não seus símbolos e representações ? num fenômeno tipicamente pós-moderno. As McUniversidades tornam-se, então, universidades de "simulação", calcadas numa nova realidade ? chamada pelo filósofo francês Jean Baudrillard de hiper-realidade ?, que expungiu qualquer sentido de realidade objetiva por trás dos símbolos e tornou muito mais difícil fazer a distinção entre o real e o imaginário, o signo e o seu referente, o verdadeiro e o falso.

Nesta nova realidade, as universidades de simulação criam seus próprios simulacros, isto é, cópias hiper-reais da realidade ? órfãs de originais ?, que se encarregam de mascarar e legitimar o comércio de diplomas. Deste modo, agentes e departamentos do meio acadêmico perdem, respectivamente, suas identidades e funções, tornando-se, igualmente, difícil encontrar diferenças entre o ensino e o diploma, o aluno e o cliente, o aprendizado e a aprovação, o professor e o funcionário subserviente, a avaliação e o conceito e vice-versa.

Para entender melhor esta lógica por trás dos diversos simulacros que regem as universidades de simulação, é interessante analisar, isoladamente, o principal meio de acesso às instituições de ensino superior do país, o vestibular. Ao contrário dos rigorosos exames de admissão aplicados pelas instituições públicas, o processo de seleção de uma instituição de atendimento ao mercado é meramente protocolar. Apesar de, aparentemente, funcionar como um mecanismo de seleção para o corpo discente, na verdade não passa de um embuste sem qualquer finalidade seletiva ou classificatória ? uma vez que a desclassificação de um candidato diminui os lucros da instituição e, conseqüentemente, vai de encontro ao conceito de eficiência gerencial reverenciado pela maioria dos empresários da educação.

Ainda assim, mesmo que desprovido de valor intrínseco, o vestibular continua a existir nas instituições de massa, graças à força simbólica que possui ? trata-se de um rito de passagem marcante dentro do orbe acadêmico. Contudo, este novo vestibular não só perde suas características originais, mas também, como Baudrillard costuma dizer, "assassina seu próprio modelo".

Nas universidades de simulação, o vestibular ? assim como outros ícones acadêmicos tradicionalmente importantes ? perde a sua função mas não a sua representação. Isto porque, para que o diploma de uma universidade de simulação tenha valor social, não basta que o "aluno-cliente" se matricule na instituição e pague a importância cobrada. É preciso que o ele tenha a sensação real de superação dos obstáculos (hiper-reais), ou seja, é preciso que o estudante sinta o regozijo de vencer os desafios da vida acadêmica ? ainda que estes inexistam.

A pesquisa

Para comprovar as asserções acima, no início deste ano me inscrevi nos vestibulares para o curso de Jornalismo das seis principais McUniversidades do município do Rio de Janeiro: UniverCidade, Universidade Estácio de Sá, Universidade Veiga de Almeida, Faculdades Integradas Hélio Alonso, Universidade Castelo Branco e Universidade Gama Filho.

Em todos os seis processos de seleção, compostos apenas de provas objetivas (múltipla escolha) e testes de redação, foram adotados, rigorosamente, os seguintes procedimentos: nas provas objetivas marquei, alternadamente, sem ler as questões, as letras A e B no cartão de respostas; nos testes de redação escrevi textos incoesos e repletos de erros gramaticais, como atraz, exije, avansso, pesquiza, profiçao, essepcional, praço (em vez de prazo) etc.

O resultado foi surpreendente até mesmo para mim, que já esperava algo pouco dignificante: 100% de aprovação. Todas as instituições pesquisadas aceitaram, em seu corpo discente, um aluno completamente despreparado para acompanhar os ensinamentos de um curso superior. Quem possuir recursos para estudar numa destas instituições basta marcar a esmo o cartão de respostas da prova de múltipla escolha, escrever qualquer bobagem no teste de redação e aguardar o dia de sacar o talão de cheques.

Para as instituições privadas de atendimento ao mercado, o vestibular não passa de mero engodo protocolar de caráter puramente homologatório. Qualquer pessoa semi-alfabetizada é capaz de passar no teste de seleção e fazer parte do corpo discente de um destes estabelecimentos de ensino. E isto é algo extremamente pernicioso.

"A universidade, como qualquer outra instituição, não pode transigir no compromisso com a excelência, com o máximo rigor em todas as áreas. Deve ter o compromisso de ser a elite intelectual, sem restringir seu serviço apenas à elite social e econômica do país. Deve ter tanta qualidade que defina o próprio conceito de qualidade." BUARQUE, Cristovam. "A aventura da universidade". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 131

"O ensino básico, até o final do segundo grau, é uma necessidade social. Deve ser oferecido a todos. O ensino superior é uma necessidade de infraestrutura, o saber para dar eficiência social. Não necessita ser oferecido a todos: o número de médicos, engenheiros, filósofos, etc. deve ser definido conforme a necessidade da sociedade e conforme o potencial dos interessados em seguir os cursos. Por isso, é necessário um sistema de seleção para ingresso na universidade." O primeiro compromisso da universidade é com a qualidade, e isso exige um critério de seleção." BUARQUE, Cristovam. "A aventura da universidade". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 237

Portanto, mais importante do que investir em infra-estrutura adequada ou na capacitação do corpo docente ? medidas que, obviamente, também se fazem necessárias ? é coibir esta política mercantilista praticada pelas instituições de massa que, entre outras coisas, admite o ingresso de pessoas inteiramente despreparadas para decodificar e interpretar os conhecimentos inerentes a um curso de graduação.

Por melhores que sejam os equipamentos, por mais bem desenvolvido que seja o projeto didático-pedagógico e por mais competentes que sejam os professores é impossível ministrar aulas de qualidade a um corpo discente desqualificado. Tomando como exemplo o curso de Jornalismo, não há como ensinar, com a devida profundidade, semiologia, metodologia da pesquisa científica, técnicas de reportagem e redação jornalística a alunos que não conseguem sequer escrever uma redação de vestibular com coesão e coerência. Mesmo que existam alunos potencialmente capazes de acompanhar os níveis de excelência desejados, a existência de um contingente, ainda que pequeno, de estudantes inaptos ao ensino superior impede o desenvolvimento adequado do conteúdo programático do curso. As conseqüências são óbvias: o ensino é nivelado por baixo e o diploma de graduação banalizado.

Reconheço que, de fato, a intenção, ao apensar uma pesquisa desta natureza à minha monografia foi, sim, questionar a política mercantilista da empresa na qual estudei. Trata-se de uma política, vigente também nas demais McUniversidades, baseada na crença de que a demanda legitima a oferta. Crença esta de conseqüências assustadoras. Afinal, se "dinheiro compra até amor sincero" ? frase escrita em letras garrafais na enorme tela exposta na tesouraria da Universidade Estácio de Sá ?, que dirá um pedaço de papel outorgando o exercício de uma profissão. (Ainda que a análise de uma obra de arte deva se pautar por outros critérios que não hermenêuticos, é no mínimo um contra-senso que tal tela fique exposta, justamente, na tesouraria de uma instituição de ensino).

Despautérios decorativos à parte, o fato é que há muita coisa errada no setor privado da educação nacional. A falácia dos processos de seleção é apenas uma prova da perniciosa existência das universidades de simulação. Há evidências de faltas ainda mais graves. Espero que este alerta, vindo de um ex-aluno do setor privado ? alguém que não tem o menor interesse em desvalorizar o próprio diploma ? contribua, ainda que minimamente, para melhorar a qualidade do ensino superior brasileiro.

(*) Jornalista. Toda a documentação comprobatória, bem como a transcrição integral das redações e outras informações sobre a supracitada pesquisa, encontram-se disponíveis no sítio Universidade em Pauta <www.universidadeempauta.com.br>, criado, especificamente, para aprofundar a discussão sobre o assunto.