Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A síndrome da tortilla

CASO SARNEY-MURAD

José Antonio Palhano (*)

Quem primeiro invocou o México foi Otavio Frias Filho, nada mais que um fecho. O suficiente, porém para inspirar Elio Gaspari. Este, oportunamente com as pilhas recarregadas pelas férias e pelo fim do racionamento de energia, mandou ver. Fazendo um revival do nosso (?nuestro?) atual governo, dois mandatos, tratou de atribuir seus pecados, todos mortais, a um vulgo processo de mexicanização do Brasil.

Até aqui, importávamos das terras situadas acima do Rio Grande apenas tudo aquilo que remetia à civilização e ao bem-bom, descontado o efeito colateral produzido pelas cavalares doses de cafonice que emanam de Miami e arredores, impregnada nas falas, trejeitos e bagagens dos que retornam. Ao que se saiba, é o inglês quem come pelas beiradas a tal da flor última, inculta e bela, e não o idioma professado na poluída e alegre Cidade do México.

Mas vamos lá. É novidade das grandes essa de jornalistas pensantes tentarem estourar a candidatura José Serra a partir de uma trágica mexicanização do governo a que este pertence ? e pelo qual vai correr o páreo. Muito bonitinho e folclórico, mas desgraçadamente pedante, falso e revelador dos mais cabeludos e profundos complexos nacionais. Chega a ser covardia, além de gratuita e dispensável agressão, mesmo que retórica, aos nossos não tão vizinhos assim, atribuir a seus defeitos e maldições a idéia de fonte inspiradora dos nossos próprios erros. Pior, algo como a gênese, ou o DNA, da nossa classe política, pelo menos a facção que exerce o poder ? majoritária, portanto.

Há aí um monumental erro histórico, cultural e geopolítico. Basta apenas lembrar que os irmãos mexicanos situam-se tão mais próximos do inferno que nós para que a tese torne-se inócua ao ponto de permitir outras sandices similares, como, por exemplo, falar em vietinização, holandização ou australização do Brasil a toda hora que irromper uma crise.

Porca miséria, andamos mesmo indo longe demais nessa mixórdia de terceirizar nossas culpas e omissões. Pobre e inocente México… Por que diabos necessitamos racionalizar com o fantasma de um primeiro-irmão de Carlos Salinas de Gortari? Não temos aqui um Jader Barbalho? Mais que um similar nacional, um exemplar tão verde e amarelo quanto a exuberante e invejável flora paraense, na qual fincou seus domínios e marombou seus insaciáveis tentáculos sob nossas barbas. Ou não basta tudo o que ele aprontou, apronta e ainda vai aprontar? Será preciso que o envolvam com o narcotráfico a fim de que deixemos em paz o mexicano e seus compatriotas, dando-nos, quem sabe, por satisfeitos com a sua siderúrgica e incontestável nacionalidade?

É bom recordar que é bem coisa nossa essa mania de tentar arrefecer nossos defeitos buscando razões lá fora. Começou pelas caravelas ibéricas e perdura até hoje. Apenas, vê-se, está migrando para a terra de Montezuma. Ou é isto ou ? como se não tivéssemos nada de melhor a fazer ? estamos vergonhosamente debochando dos mexicanos. Preconceito em estado puro.

Agora mesmo, na imperiosa e politicamente correta obsessão em responder ao terrorismo que baixou em Nova York de forma a deixar claro nosso desagrado com o imperialismo ianque, só faltou coleguinha jornalista famoso exigir camelos em nossas ruas e a indumentária afegã em nossa gente.

Iniqüidade vigente

Quando fingimos que não sabemos, o buraco é bem mais embaixo. Não há paralelo, nem muito menos qualquer referência arqueológica no planeta e adjacências, que sequer lembre o apartheid social tupiniquim. Nós somos os únicos responsáveis por essa estratificação medonha e endógena. E aí é que o bicho pega. Na vã e egoísta tentativa de nos safarmos de culpas e remorsos, volta e meia buscamos ferramentas absolutórias alienígenas. Chegou a vez do México. "Mas que coisa feia. Descemos ao nível daqueles mexicanos suarentos e mestiços… Isso que dá o Fernando Henrique ter inventado aquela história de que tem um pé na cozinha. Que mico…"

Fosse só a referência mexicana, tudo se resumiria (e já seria grave) nessa cafajestada xenófoba. Só que tem mais. O surto atual de purgações e ressacas morais é patrocinado por uma obscena e herética tentativa de defender a nossa classe política, mal esta foi prensada pelo TSE. Classe, ou turba, que é nada mais que a maior avalista da mesmíssima e anticristã discriminação social. E que se dane logo aquele surrado argumento segundo o qual a maioria do Congresso é composta de gente do bem. Tal e estúpido chavão é agravante das boas. Se tão matemática e contundente maioria se submete à voracidade de minoritários como Jader Barbalho, Renan Calheiros, Geddel Lima e outros, não passa de um bando de frouxos e coniventes.

Nas favelas e cortiços, centenas de jovens são liquidados ao ritmo de chacinas de fins de semana, algo bem diferente dos tempos, protocolos e salamaleques concedidos à minoria de picaretas do Parlamento por seus pares de reputação ilibada depois que se torna impossível protegê-los.

E aí justo na primeiríssima vez em que a população pode ao menos se divertir frente à inédita cena em que políticos mais parecem baratas tontas, surgem jornalistas indignados a brandir argumentos pelos quais as regras foram alteradas com o jogo em andamento. Quando até um distante e inocente mexicano sabe que o tal jogo foi desavergonhadamente antecipado pelos seus dignos personagens, graças à inestimável colaboração de grande parte da mídia.

Por que diabos tanto punho de renda para tratar dessa gente? O cientista político Sérgio Abranches, outro indignado, usou seu canto na Veja para urrar contra a decisão do TSE, clamando pelo respeito às diferenças regionais e federativas. Com todo o respeito, o professor certamente já ouviu falar que a Assembléia Legislativa do Ceará tem duas folhas de pagamento. Seria uma agressão à sua inteligência e à sua bagagem acadêmica considerar que o mesmo ignora que a prática é uma mania nacional, que se espalhou feito metástase e cláusula pétrea. Histórias de deputados que são comprados pelos governadores feito praticantes de trottoir já se incorporaram ao nosso folclore e à nossa crônica política. E ainda nos obrigam a respeitar filigranas jurídicas que, a propósito, não passam de invencionice de quem não mexe um dedo para mudar este nojento estado de coisas. Só não se sabia que a dominação tivesse atingido formadores de opinião tão acurados e respeitados.

O sistema político brasileiro está podre e só não vê quem não quer, com a ressalva de que a jornalistas, quão mais competentes e mais espaço tenham, não é permitida tal vontade. Toda e qualquer atitude que atinja a classe política como um todo é bem-vinda e pronto. Assim como numa guerra, que é a expressão mais próxima da nossa realidade. Hipocritamente, porém, não a reconhecemos. A iniqüidade social vigente, repita-se, é filha dileta da classe política que explora, solapa, rapina e manipula a nação em nome dos seus mui manjados interesses.

Regressão de idade

A retórica, como se sabe, já fez estragos irreparáveis na esquerda e, principalmente, no Partido dos Trabalhadores, o único que (ainda) honra tal denominação. Atinge também jornalistas, agora. O texto mexicanizado de Gaspari ? no qual a baixa estima pulula feito larva de mosquito ? envereda por um portentoso labirinto de ressalvas e condicionantes para condenar os feitos de Roseana Sarney que, ao fim e ao cabo, ela bem poderia convocá-lo como testemunha de defesa.

Devaneios retóricos devem ser contidos num certo limite. O mesmo bom e atilado Gaspari deu ultimamente de sintonizar o Além para reforçar sua dependência. Escolhe um personagem terreno da política, vivo e atuante, a quem quer criticar, e o põe sob severa admoestação de outro, já despachado para a eternidade e acessado com a facilidade de uma ligação telefônica para São Luiz do Maranhão. Não demora e surge alguém interpretando a pajelança como fascistóide. Ou, mais cientificamente, tratar-se-ia de uma regressão de idade. Invocam-se almas sublimando-as na conta do Bicho Papão da infância perdida, ou o Papai do Céu vigilante com quem não come o prato todo e não se comporta bem.

Analisar a política brasileira com os escrúpulos e a pasteurização típicos de um parlamento europeu de primeira linha é de matar. Aqui, estamos numa guerra. Quanto mais baixas infligirmos à classe política, melhor. E viva o TSE, os procuradores e a Polícia Federal.

(*) Médico e jornalista