Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Renata Lo Prete

ELEIÇÕES 2002

“A vida como ela é nos debates”, copyright Folha de S. Paulo, 9/09/02

“Avesso a contrariar autoridades, Silvio Santos propôs que fossem vetadas críticas ao governo e a FHC em seu programa com os presidenciáveis no próximo domingo. Não surpreende que a regra, inédita em eventos do gênero, tenha sido rejeitada pelos três candidatos de oposição.

Não se sabe se o dono do SBT agiu baseado apenas em suas preocupações ou se foi estimulado a tomar um rumo que acabou por inviabilizar o encontro.

O cancelamento foi anunciado três dias depois do debate na Record, no qual Ciro Gomes e José Serra bateram boca e o último foi continuamente associado a insucessos, reais e supostos, da administração da qual é candidato.

Na esteira desse programa, alguns tucanos começaram a defender a tese de que Serra só tem a perder participando de debates. O desgaste, acreditam, seria maior do que o de não comparecer.

Na sexta-feira, um dia depois do anúncio do SBT, começou a circular a informação de que a Globo estaria pensando em desistir de seu debate, o último antes do primeiro turno da eleição.

A direção da Central Globo de Jornalismo, no entanto, afirma que não há hipótese de cancelamento do evento de 3 de outubro, e que a cadeira de um eventual ausente ficará vazia no estúdio.

São duas as principais queixas de tucanos e simpatizantes em relação ao debate da Record.

A primeira é a de que Serra foi vítima de ação conjunta. Os adversários levantaram bolas uns para os outros com o propósito de atingir o governo e seu candidato.

Para começar, vítima não é termo adequado. Em todo debate com mais de dois participantes há alianças para atingir objetivos comuns. A vida é assim.

Serra apanhou menos no confronto da Bandeirantes não porque lá o conjunto das regras fosse melhor, mas porque, então próximo à lanterna nas pesquisas, representava menos ameaça.

Quanto às críticas ao governo, é tão legítimo a oposição lançar mão desse recurso quanto Serra cobrar de Lula as votações do PT no Congresso -vale observar que o tucano, nas respostas interessado apenas em ?discutir o futuro?, nas perguntas não esquece o passado dos adversários.

A segunda queixa é a de que a mediação de Boris Casoy permitiu que o debate descambasse para a troca de insultos.

Sempre poderá haver aperfeiçoamento das regras. Ocorreram incoerências na concessão e no exercício do direito de resposta, assim como na Bandeirantes houve o esdrúxulo procedimento de jornalista fazer pergunta sem saber a que candidato se dirigia.

Mas é falacioso clamar por um evento em que candidatos bem-comportados discorram sobre programas de governo. Isso não existe. Quem compara o debate da semana passada desfavoravelmente aos norte-americanos ignora ou finge ignorar que lá, como cá, as discussões costumam se resumir a meia dúzia de bordões.

Debates reforçam convicções do eleitor. Mais raramente as desfazem. Podem influir na agenda da campanha (como Serra conseguiu ao lançar, na Bandeirantes, a ofensiva ?pega na mentira? contra Ciro). Nem de longe sua prioridade é discutir programas.

Debates dizem respeito à imagem que os candidatos conseguem projetar, e isso não se faz apenas no ataque, mas também na defesa (que o diga Ciro Gomes, que deve parte da encrenca em que está metido ao fato de ter demorado para responder a Serra).

Quem aconselha o tucano a não ir a debates deveria saber que no processo de decisão o eleitor também leva em conta como o candidato reage sob pressão.”

“Uma nova safra de finas bizarrias”, copyright O Globo, 10/09/02

“Na falta de surpresas por parte das(os) candidatas(os) ao governo do Estado (fora o fato de que todos, de repente, resolveram abordar meio ambiente enquanto a verde Aspásia só falou de saúde), salta aos olhos o surgimento de nova e vigorosa safra de bizarros, por força de nome, discurso ou proposta. Como se Garotinho e Rosinha não fossem suficientes, o Rio recebe agora a candidata Garotinha – a deputada – na lista de Solange. Na maior cara-de-pau, Garotinha cita, entre outros atributos, o de ter atingido a maioridade. Falta apresentar o Rosinho.

Emerge também de ignotas paragens a transcendente figura de ?Profeta do PT?, que, como a maioria, não diz ao que veio, mas produz grande efeito com sua longa barba branca a cobrir as roupas do corpo. À espera da profecia, admiremos, pois, sua magnífica presença. O Bispo Caetano, número 22222, faz pensar no Expresso 2222 de Gil. E uma tal Otalina, sorridente, vem com essa: ?Querido eleitor, peço permissão para entrar na sua casa?. E aí, desaparece…

Jânio Carlos, que não é novo no pedaço, continua provocando, com seu nome, a devida alusão histórica. Mas a sua zebrinha, que antes ficava no chão e ninguém via, ganhou vida na forma de uma garbosa computação gráfica. Parabéns! Theotônio da Cedae é outro que, no que pese a boa lembrança do prenome, tem coragem de defender plataforma de saneamento básico com um ?sobrenome? desse…

Agora, é preciso que se venha a público esclarecer com urgência: Cesar Cabeleireiro Loren é um homem ou é uma mulher? Impossível saber. Por fim, o candidato Gallo pede o voto com base em ter o apoio do craque Zico. Na linha tostines, dá o que pensar: tem o apoio do Galinho porque se chama Gallo, ou se chama Gallo porque tem apoio do Galinho? Ou, como terceira opção: terá sido uma (in)feliz coincidência?”

***

“Carta à doadora ?Rosita Garotón?”, copyright O Globo, 9/09/02

“Durante o programa de ontem, Rosita Garotón disse que vai ?doar? quatro anos de sua vida em prol da felicidade do povo fluminense. Poxa, Rosinha, obrigado! Não precisava… O povo do Rio deve estar sentindo-se culpado por saber que a senhora, prestando tal favor, sacrificará esses anos de esforço em benef&iaiacute;cio de nosso futuro. Mas a sua afirmação, se nos permite, demanda um aparte: no possível cumprimento de mandato popular, a senhora não vai doar nada. Quem está doando é uma grande parcela da população do estado, que, até o momento, deposita caução de 45% de confiança na sua candidatura, sem qualquer garantia de retorno. Isto é doação. Doa a quem doar.

Vamos crer, em todo caso, que a senhora dizer que está doando alguma coisa foi um ato falho de quem vê o estado como doador, mantenedor, pai do povo. Tique populista. Para fugir a essa tentação, repita diariamente: ?se eleita, cumprirei um dever, uma atribuição conferida pelo povo, ao qual devo prestar contas devolvendo, se possível, essa doação em resultados verificáveis?.

Se Rosita deixou o eleitorado culpado, Benedita não ficou atrás: no programa de ontem, disse que sofreu, que passou fome, que teve o coração ferido pela dor, pela injustiça e pelo preconceito, e que perdeu um filho de fome. Solange também jogou com as emoções do povo, enchendo de pânico e emergência a alma do teleleitor. Findo o seu programa, deu a impressão de que 11 de setembro aconteceu no Rio, não em Nova York. O discurso inflamado de Cesar Maia quase fez esquecer que a candidata é ela. Solange deixou também um gancho para Rosinha, se puder, defender-se ou contra-atacar: o depoimento da mulher que teve seu filho torturado e morto sob custódia do estado numa clínica de recuperação de dependentes químicos do governo Garotinho.

Só Jorge Roberto foi light: seu assunto, saneamento e despoluição da Baía de Guanabara, teve o mérito de ter sido a única referência dos candidatos ao meio ambiente no day after da Rio-10.”

“E aguardem: no próximo bloco…”, copyright Veja, 11/09/02

“- No próximo bloco… Candidato enfrenta candidato em luta corporal.

Ainda não se chegou a tanto, mas quem sabe chegaremos? E, se chegarmos, que mal há nisso? A força dos músculos e a valentia são as formas mais naturais de galgar a uma posição de liderança. Não poucas nações de ilibada reputação, ao longo da história, escolheram seus reis por esse método. Mesmo hoje, povos nas florestas ou em ilhas do Pacífico a ele atribuem peso decisivo. Isso sem falar nas turmas de rua ou nos clãs familiares. No Brasil de hoje, viria agregar clareza e objetividade a um processo eleitoral carente de critérios para a segura avaliação dos candidatos.

Se algo já está nítido, a esta altura da campanha presidencial, é a desmoralização dos programas de governo. O candidato Lula começou a campanha com um programa que pregava a ?ruptura? com o atual modelo. Não gostaram, e a ?ruptura? foi riscada do mapa. O candidato Ciro Gomes defendia uma reforma política prevendo curioso sistema de dissolução do Parlamento e convocação antecipada de eleições, sem que o regime deixasse de ser presidencialista. Presidencialismo com dissolução do Parlamento! Algo jamais visto! O candidato foi acusado de pouco-caso com as instituições democráticas, até mesmo de flertar com o fascismo – e adeus dissolução. Seu programa virou uma obra aberta, que pede sugestões pela internet, e em que cabem a qualquer momento correções e contribuições.

E quando os programas se põem a precisar cifras? Um promete criar 8 milhões de empregos, outro, 10 milhões. A segurança com que tais metas são apregoadas supõe que os formuladores de programas sejam capazes de figurar a exata conjuntura nacional e internacional que terão pela frente nos próximos quatro anos, incluindo guerras, ataques terroristas e crises do petróleo. Só assim mereceriam alguma credibilidade cifras sacadas sobre o futuro. Estariam eles com essa bola toda, melhor dizendo: com essa bola de cristal toda? O candidato Garotinho fixou em 280 reais o salário mínimo que baixará em seu primeiro ano de governo e em 400 reais o que baixará no segundo. Quando anunciou tais valores, 280 reais equivaliam a 100 dólares, sempre tomados como piso para um salário mínimo decente. Hoje já estão abaixo desse patamar. Garotinho, na improvável hipótese de ser eleito, e ainda mais que, nesse caso, é razoável supor que os chamados mercados, e com eles o câmbio e o risco país, estarão indóceis como montaria de rodeio, corre o risco de estar oferecendo um salário mínimo com poder de compra menor que o atual.

?Programa? é palavra que os candidatos pronunciam com a boca cheia. ?Está no meu programa?, ?consulte o meu programa?, ?tenho um programa?, dizem, com a gravidade bufa com que o Pacheco, de Eça de Queiroz, personagem-síntese da tacanhice jeca do político português, dizia: ?Ao lado da liberdade, deve sempre coexistir a autoridade?. ?Programa de governo? seria sinônimo de seriedade. De compromisso. Recordem-se dos programas do passado e se concluirá que de compromisso costumam ter pouco. Examinem-se os do presente e se concluirá que de seriedade, com suas idas e vindas, adendos e correções, têm também pouco. Elaborar e apresentar um programa de governo não é mais que o cumprimento de um ritual fastidioso. Acresce que, na atual eleição, a diferença entre os programas resume-se, como num jogo de armar, ao modo de combinar as mesmas palavras: emprego, segurança, estabilidade…

Se os programas de governo estão em baixa, está em alta a xingação entre os candidatos. Desde que começou a propaganda na TV, Ciro Gomes e José Serra puseram-se em deliciosa troca de impropérios. A mesma troca foi o ponto alto do debate entre os candidatos na TV Record, na semana passada. E é disso – confessemos com todas as letras – que o público gosta. Sim, não sejamos hipócritas: é disso que todos gostamos. Assim como o ponto alto dessa mais tediosa das competições, que é a corrida de automóveis, é a derrapagem e a trombada; assim como a cena inesquecível de uma tourada é aquela em que o touro rasga os fundilhos do toureiro e o projeta nos ares; assim também, num debate político, o que conta é o momento do sarrafo, do vitupério. Prova de que o público gosta é que o debate da Record teve a audiência média, na Grande São Paulo, de 9,5 pontos, nada desprezível, para a emissora, e para o horário, e que a audiência foi crescendo, ao longo das duas horas e meia de programa, atingindo picos de 12 e 13 pontos, na mesma medida em que cresciam as afrontas entre os adversários.

Com isso voltamos ao ponto de partida. Se os programas não oferecem senão mesmices e platitudes, quando não fátuos exercícios de futurismo, se o que vale mesmo é briga, e se de briga o público gosta, por que não incluir, nos debates futuros, um segmento em que os candidatos se enfrentam fisicamente? Depois do jornalista-pergunta-a-candidato e do candidato-pergunta-a-candidato, o mediador anunciaria:

– No próximo bloco… Candidato enfrenta candidato em luta corporal.”