Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Miolinhos triturados

O CAOS E A ORDEM

Moacyr Francisco (*)

Seria muito estranho se estivesse acontecendo exatamente aquilo que todos "vêem" numa guerra que, antes de começar, já tinha seu "vilão" pré-determinado. Seria muitíssimo estranho todo mundo enxergar as notícias não pelo que elas efetivamente dizem, mas pelo que a grande maioria dos leitores/telespectadores gostariam que elas dissessem. Seria muito esquisito se, mesmo com a ?unanimidade? contrária à mídia, que a desagrada por uma parcialidade ou por ser descaradamente pró-guerra/EUA/Bush; esta, estranhíssima visão coletiva dessa mesma ?unanimidade?, apanhasse tanto ? e de todos ? sem esboçar reação.

Seria um absurdo alguém dizer algo que não fosse contra os EUA; tanto quanto não omitir o que é (ou deveria ser) do conhecimento geral de quem toma o partido de Saddam Hussein. Seria inimaginável alguém não se enternecer diante das fotos de criancinhas chorando nas páginas dos jornais. Igualmente com relação aos idosos. Ah, sim, e as mulheres! Soaria gritante e aviltante a qualquer representante da raça humana alguém admitir que qualquer criança, de qualquer lugar, com qualquer expressão, mesmo vaga, de choro ou tristeza, serviria perfeitamente para tal finalidade.

Seria uma confissão de beligerância e animosidade brutal supor, apenas, que Saddam coloca deliberadamente sua população civil na linha de tiro do inimigo, escondendo-se atrás dela. Manter arsenais e bases militares entre escolas, cinemas, mercados, igrejas etc. como se não houvesse espaço de sobra, seria apenas "arguta estratégia" daquele a quem tantos da nossa imprensa tratam com carinho quase materno mesmo quando obrigados a rotularem-no apenas "ditador".

Seria uma inaceitável ignorância histórica não achar coerente e honesto colocar em Bush (ex-alcoólatra, atualmente carola ? e, para Saramagos, "fundamentalista cristão") o bigodinho do Hitler. De forma alguma esse adereço facial caberia a Saddam (desconsidere-se o fato de se tratar de um autêntico serial killer da própria família, inclusive; responsável por dois milhões de mortes, fora o baile), até porque ele já ostenta um belíssimo bigodão tingido!

Seria pra lá de absurdo admitir, mesmo em pensamento, que a vida dos iraquianos poderia melhorar muito com a saída do presidente ? eleito democraticamente ? Saddam (sim, eleito democraticamente e com sangue, muito sangue, sim senhor!). Seria absurdo ao cubo admitir que os afegãos vivem bem melhor agora; que comemoraram à exaustão a derrocada do talibã. (Isso foi "plantado" pela mídia parcial, miserável e "de direita").

O primeiro sorvete

Seria um sinal de grande esperteza supor, que a unanimidade na qual se reconfortam uns aos outros os brasileiros ? embalados pelos nossos mais destacados "intelectuais" ? está coberta de razão ao pregarem boicote aos EUA. Tanto está, que não há quem se atreva a ser "do contra" (embora existam, por incrível que pareça!, mas virtualmente inexistentes, tamanho o barulho da manada sob a batuta das redações).

É natural que não olhemos o próprio quintal, já que vivemos em paz e harmonia no Brasil tão sonhado e que não tem hora, tampouco disposição, para acordar. Parece que nossa única e legítima preocupação deve ser com nossas fronteiras, e pertinente o medo de sermos invadidos, de repente, pelos "senhores da guerra", que fatalmente virão "roubar" nossos mananciais, tão logo completem sua missão de surrupiar o petróleo de todo o Oriente Médio.

Nada mais natural, entretanto, nossa convivência pra lá de pacífica e fraterna com nossos vizinhos da Colômbia, visto que as Farc nem de longe representam ameaça à nossa soberania, nem à de Fernandinho Beira-Mar, o astro maior, de quem nossa polícia corre/morre de medo, e o conduz, com todo o cuidado e respeito que merece, a um tour pelo Brasil afora, talvez para que possa conhecer melhor seus futuros "colegas".

Embora nossa mídia "vendida" diga precisamente o contrário, hoje sabemos, graças à nossa imensa sagacidade ? que jamais se curvaria à propaganda ? que os EUA resolveram "tirar de vez a máscara" e sair pelo mundo, chacinando e saqueando às gargalhadas, ao mesmo tempo em que pisoteia com seus ferozes coturnos a vassalagem inerme…

Que atire o primeiro sorvete na própria testa aquele que sai em "marchas pela paz", sem que nunca tenha proclamado seu "ódio à dominação imperialista"! Que marque imediatamente uma consulta com o analista aquele que se deu ao trabalho de tentar convencer "um bar inteiro" de que as coisas "não são bem assim"… Afinal, se 99,99% da nação pensa da mesma forma, pra que tanta gritaria, se nosso "inimigo" está lá fora?

Caos e ditadurazinha

Vejamos: no Estadão, 1? de abril (!): "Iraque fala em 400 civis mortos". Um dia antes, o mesmo jornal manchetava: "Iraque apresenta a nova tropa: 4 mil suicidas árabes". Ora, em número de mortes, já ganhamos fácil: somos milhões de felizes suicidas! Temos 3.500 vítimas da violência por mês! Só que nossa guerra não será "rápida", garanto. E o nosso "fogo-amigo" nos alcança nas esquinas ou dentro de casa, e não há qualquer esperança de "ajuda humanitária" à vista…

Quando "importamos" preocupações e medos, quando nossos "luminares" se reúnem no breu das tocas, quando invertemos todos os valores, quando o estranho, o esquisito, o absurdo e o discordante se misturam e se confundem, enfim, quando de tudo já fizemos para entender o que se passa e, mesmo assim, prevalece a perplexidade total, é exatamente nesse ponto que expomos toda nossa debilidade.

No momento em que até crianças entrevistadas em escolinhas repetem os mesmos clichês e palavras de ordem ouvidas dos professores formados nos "cursos de capacitação" do governo e, com (i)maculada inocência, "mandam" essa: "Hoje é o Iraque; amanhã seremos nós!", ninguém duvida que tal conclusão dos fatos é fruto da própria reflexão e percepção delas mesmas! Essa ignomínia é ouvida, colocada no ar, e tomada como depoimento não apenas válido, mas como retrato fiel da consciência efervescente brasileira! Quando nossas crianças já "nascem" sabendo a "verdade", ai de seus miolinhos doutrinados, amanhã! Ai delas, ai de quem sobrar.

O caos clama por ordem. Mas, paradoxalmente, quanto mais caótica parecer a situação global, mais claras ficam suas (con)seqüências. Logo, estaremos implorando por intervenção divina, ou, na falta dela, qualquer uma serve. Quem sabe aceitemos de bom grado uma ditadurazinha "light", seguida de um totalitarismozinho "democrático"… Algo equivalente ao poder narcotizante de uma "Cuba Libre" com validade vencida ? apenas como aperitivo?, antes do "coquetel Molotov".

(*) Publicitário, São Paulo