Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalismo, a guerra e o cinema

O IMPÉRIO ATACA

Ivo Lucchesi (*)

No auge de mais um conflito internacional, talvez seja oportuna a elaboração de um pensamento crítico que, sem desprezar os acontecimentos, também possa ilustrar alguns fundamentos presentes na civilização e intensificados em algumas culturas. Em seguida, o propósito será o de avaliar a eficácia (ou não) de uma tendência com a qual se vem moldando certo modelo de jornalismo, no tocante à cobertura da guerra.

A guerra é cinematográfica

Antes de qualquer proposta de análise a respeito do que o título deste artigo sugere, convém lembrar uma das mais expressivas reflexões do teórico francês Paul Virilio, no livro Guerra e cinema, editado no Brasil, em 1993, pela Scritta Editorial.

O mencionado ensaísta, entre outros tantos aspectos, demonstra quanto o campo da guerra se faz parceiro da indústria cinematográfica, principalmente no modelo americano. Até certo ponto, era inevitável que a "sociedade da imagem" ? cúmplice do que outro francês, anterior a Virilio, Guy Debord, classificara de "sociedade do espetáculo" ? viesse a influir decisivamente no modo de registrar o "horror" que, em si mesmo, atravessa a civilização, desde os primórdios.

As guerras, em outros tempos, inspiraram pintores, escultores, arquitetos. Em épocas seguintes, fotógrafos, cineastas, documentaristas etc. Até aí, nada de inesperado. Todavia, não era imaginável que veículos com suporte na infinita potência da linguagem verbal (pensamento), a exemplo de jornais, revistas e livros, se deixassem tragar pelos recursos finitos do código visual (imaginário).

Já na Antigüidade, principalmente a partir dos romanos, era sabido que a guerra guardava em si algo da dimensão estética, haja vista a "espetacularização" com a qual celebravam o retorno das legiões dos campos de batalha. Não menos reveladora é a etimologia. Vale recuperar-se o sentido original de certas palavras.

Na vertente latina Di Bello Galico ("Sobre as guerras da Gália") , a palavra bellum tanto significa "guerra" ("indústria bélica" / "beligerante" / "belicoso") quanto dela se formam "belo" e "beleza". No que a guerra exige coragem, determinação, espírito destemido, a conquista dela decorrente representa a soma de todas as virtudes, o que faz a vitória revestir-se de um significado grandioso e afirmativo de força, poder, beleza. Ou seja, a fixação de padrões estéticos tem enraizamentos no âmbito do poder.

A vertente anglo-saxônica igualmente serve de ilustração para observações que podem ser interessantes. Assim se compõe a palavra inglesa (de origem latina) beautiful [beau=bom / beatum= puro, casto, abençoado + ful(l)= pleno, cheio]. Na raiz dessa cultura, a noção de "beleza" supõe, para a consagração da pureza plena (puritanismo), a extinção ou separação de "tudo" que for "impuro". Não é, portanto, estranho que, da matriz do "puritanismo" proviesse o "racismo", entre outras estigmatizações. O ideário nazista também se apoiava em pressupostos dessa ordem.

Imaginário americano e a estética CNN

Os primeiros impulsos que orientam para a guerra, como construção, têm uma dimensão plástica (visual) associada a um conceito de "trama" (enredo / roteiro), a fim de cumprir-se uma estratégia (produção) sob a liderança de diretor(es) no comando de suas tropas (elenco). Por fim, a tudo se soma o armamento que dita o ritmo dramático das ações (seqüências), bem como os efeitos especiais (técnica / tecnologia). Seguindo essa lógica, é interessante recuperar o que Paul Virilio afirma, ainda nas páginas iniciais da obra já citada:


"(…) antes de serem instrumentos de destruição, as armas são instrumentos de percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre órgãos do sentido e o sistema nervoso central, afetando as reações e a identificação e diferenciação dos objetos percebidos". (pág. 12)


É, no mínimo, da ordem do senso comum o reconhecimento de que o imaginário americano é alimentado pelo cinema, a exemplo do imaginário brasileiro, predominantemente televisivo e musical (atualmente tendendo para o rítmico). Não é menos verdadeiro também o fato de que, há décadas, cresce, no Brasil, a identificação com hábitos e gostos inspirados em paradigmas americanos, a começar pelo modelo de televisão dominante.

A depender da cobertura da guerra, sob a tutela da CNN, o resultado é melancólico, entediante e mistificador. Sucedem-se imagens que oscilam entre a aridez absoluta, alimentada por cenas no deserto, e a maquiagem produzida por plásticas explosões que mais parecem, com ampliações, a reprodução de efeitos espetaculares com os quais se brinda a chegada de um novo ano, ou a abertura de uma Olimpíada.

Desde as cruentas coberturas sobre a guerra do Vietnã, o sistema de controle americano aprendeu que a "imagem-verdade" tem alto poder subversivo. Assim, já testado o "modelito" na guerra do Golfo, dois princípios foram cristalizados:

1. supressão de qualquer cena capaz de demonstrar a crueldade dos poderosos. Ruínas, flagelos humanos, famílias desconsoladas, corpos mutilados não fazem parte dos atos daqueles cuja meta é difundir liberdade e justiça, como alicerces da sólida democracia;

2. exacerbação da eficiente e sofisticada tecnologia, capaz de orientar cientificamente "bombas cirúrgicas". Em outras palavras, o olhar que capturaria a dilaceração da existencialidade é magicamente deslocado para a fruição de um devaneio revestido de contemplação e ludicidade.

Tudo segue rigorosa simulação cinematográfica, a partir dos títulos: na seqüência, desde 1991, para a guerra do Golfo ("Tempestade no deserto"); como resposta ao 11 de setembro, "Liberdade duradoura" que, por fim, transformaram em "Justiça infinita" e, agora, "Liberdade para o Iraque".

Para o cumprimento de tais "roteiros", a "estética CNN" oferece modulações cromáticas, cenários exóticos, imagens via satélite, vídeofone, computação gráfica, cortes, replay, lentes com infravermelho, "tempo real". O fundamental é que a realidade mesma não fique desnudada na fronteira de sua violência e miserabilidade. A propósito, nada mais justo que, em pleno cenário de "ilusão cinematográfica", o imaginário americano ofereça ao mundo, a um só tempo, a guerra e a premiação do Oscar. É efetivamente uma síntese perfeita do quanto uma está na outra. Nesse jogo, realidade e ilusão perdem o traço diferenciador. A arrogância se torna palatável como o sacrifício de vidas é transformado numa oferenda à perpetuação do poder despótico.

Para compreensão mais apurada de certas arestas que comandam o imaginário americano, não deve ser ignorada a leitura de duas importantes obras publicadas recentemente no Brasil: O livro negro dos Estados Unidos, de Peter Scowen (Record, 2003) e Contendo a democracia, de Noam Chomsky (Record, 2003). Surpreendentemente (ou não), foram dois lançamentos para os quais a mídia brasileira reservou tímidas anotações. Por quê?

O imaginário jornalístico global

A julgar pela estetização que parte da imprensa brasileira empresta à cobertura do "horror", há de se concluir quanto o modelo americano está superado. A edição quinta-feira (20/3/03) de O Globo superou a inventividade cinematográfica americana. A primeira página estampava, com enfático destaque, a manchete: "Bagdá bombardeada". O dramático recurso gráfico-visual insinuava a destruição da capital. Eis, porém, que a tensão de inspiração novelística guardava para o caderno especial sobre a guerra pérolas ficcionais colhidas em momento de rara inspiração: para título de uma entrevista, "O dilema de um pacifista"; abaixo, outra matéria com o título de "O dia D para a nossa geração" . Na página seguinte, em página dupla: "Comando para caçar Saddam" (lembra a série: "Comando para matar"). Mas o momento apoteótico estava reservado para a última página. A pretexto dos perfis do "ungido" e do "tirano", a matéria recebeu o seguinte título: "Dois homens e um só destino". Esta é digna de receber uma estatueta…

O mesmo veículo, em edições subseqüentes, também se esmera na reprodução de fiéis e fascinantes croquis, esmiuçando as especificações dos "magníficos" artefatos bélicos que só os "gênios da destruição" sabem conceber. É um tipo de jornalismo mais voltado para publicidade e marketing. Trata-se, pois, de tosca cobertura jornalístico-ficcional. Nesse modelo, enquanto o teor crítico é zero, a perversão é dez. Há muito se sabe que a atuação dominante da mídia brasileira está direcionada para lotear o imaginário, em detrimento de promover a expansão do pensamento.

Como princípio de justiça, não pode ser ignorado o maniqueísmo explícito, presente na capa da penúltima edição da Veja (19/3/303). Seguindo o "paradigma global", a chamada no cabeçalho: "A superbomba e as outras armas para aniquilar o Iraque". O ímpeto destruidor dos editores da revista não se contenta com a demolição do regime; almeja, a julgar pelo título, o esfarelamento do país.

O centro da capa, porém, é ainda mais revelador do imaginário cinematográfico importado: em primeiro plano colorido, o rosto do "grande estadista e justiceiro", destinando o olhar firme para um ponto futuro; em segundo plano, em tom pastel, a lembrar filmes antigos, o rosto de um "Saddam-Gabble" ? o ídolo superado ? com um charuto em baforadas assassinas, a exemplo do que representam hoje os fumantes. Não bastasse, ainda reservaram para a barra final uma chamada acrescida de reduzida foto: "Terror: a história da passagem de Bin Laden pelo Brasil". Será que o terrorista explodiu as Cataratas do Iguaçu e, na época, ninguém soube?

Enfim, o que, a princípio, teria sido uma promessa de artigo com perfil exclusivamente teórico acabou, sob a força de uma estética jornalística de segunda categoria, por permitir a presença de um tom irônico. Afinal, diante de tanta erosão jornalística, não há como evitar a crítica corrosiva. Pelo menos, Eduardo Galeano redimiu os leitores com a justa medida de seu artigo ("A guerra: curiosidades"), publicado na Folha de S.Paulo (20/3/03). Quem sabe e tem ética não falsifica.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.