Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De Cancún a Copacabana

MANIPULAÇÃO & HIPOCRISIA

Mário Augusto Jakobskind (*)

Leitores e jornalistas com o olhar mais atento puderam observar recentemente, e em um espaço de poucas horas, como funciona o esquema de manipulação da mídia. Cancún e Rio de Janeiro foram os cenários que poderiam merecer coberturas mais esclarecedoras.

Vamos começar por Cancun. Por que os principais órgãos de imprensa nacionais saíram com manchetes burocráticas e pouco criativas do tipo "Fracasso da reunião da OMC no México?" Por que não analisar com mais profundidade o tema e não publicar, por exemplo, algo na linha dos "Países emergentes [pobres ou subdesenvolvidos, a escolher] não se dobraram aos ricos?" Teria sido apenas a preguiça dos plantões de domingo nas redações? Ou será que o esquema da grande imprensa só aceita a leitura do "fracasso", como 100% das agências internacionais, sob o controle dos mesmos países que defenderam de forma radical os seus interesses econômicos na área agrícola na reunião de Cancún, e os jornais, rádios e TVs repetiram a exaustão?

É "fracasso" quando os ricos do planeta não conseguiram impor os seus pontos de vista? Que imparcialidade é esta? Por que não fazer a leitura a partir dos interesses do chamado Grupo dos 22, liderado pelo Brasil, que não aceitaram engolir a imposição dos Estados Unidos e da União Européia na Organização Mundial de Comércio? Por que, enfim, não ir mais a fundo no tema e não ficar nas abobrinhas?

Banalização da violência

Outro exemplo de como a mídia se presta graciosamente ao papel de linha auxiliar de uma emissora de TV ocorreu na orla marítima de Copacabana, por ocasião de uma "caminhada pela paz e contra a violência". Em um domingo chuvoso aconteceu, isto sim, um grosseiro festival de manipulação de informação, utilizando-se de um esquema com vistas à conquista de audiência.

A Rede Globo armou durante vários dias um cenário para apresentar a passeata em um dos capítulos da novela Mulheres Apaixonadas, colocando o bloco dos atores e atrizes no asfalto. Políticos atrás de refletores e flashes, entre eles o deputado João Paulo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, e ministros como o da Justiça, Márcio Thomas Bastos e das Comunicações, Miro Teixeira ? este, por sinal, um velho amigo das Organizações Globo ?, e até a representação sindical dos jornalistas do Rio de Janeiro, como sempre usando a imagem de Tim Lopes, uma vítima da violência, todos "abrilhantaram" a "manifestação".

Mais uma vez a imprensa, não necessariamente a global, preferiu a comodidade de uma cobertura burocrática ? do tipo "apesar do mau tempo…" ? a aprofundar o tema. Perderam os jornais a oportunidade de relatar, por exemplo, o que aconteceu com o cidadão João Santana, que foi impedido de participar da passeata, segundo denunciou no programa radiofônico Faixa Livre (1360 AM, Rio, diariamente de 7h30 às 9h), porque portava um cartaz denunciando as "balas do FMI" como responsáveis pela violência.

Santana não estava no script e por isso não podia ser nem mesmo figurante da novela da Globo. E quantos João Santana podem ter querido se manifestar no domingo chuvoso e foram impedidos?

A mídia perdeu também a oportunidade de analisar o fato de que na mesma noite do domingo da filmagem em Copacabana, a Rede Globo exibia, depois do Fantástico, um daqueles enlatados com muitos tiros por segundo. Ou seja, o mesmo telespectador que foi à passeata, poucas horas depois era "contemplado" com o gênero banalização da violência. Se isto não é manipulação e hipocrisia, então os dicionários de língua portuguesa precisam urgentemente corrigir esses termos.

Bush & família

A manifestação remete também ao questionamento de algumas entidades e ONGs, como a Viva Rio, que se vale até de uma estação de rádio com o mesmo nome, ligada às Organizações Globo, para levar adiante a sua "mensagem".

A Viva Rio, que em algumas comunidades de favelas é jocosamente citada como "Viva Rico", está agindo de forma a obrigar as rádios comunitárias a se atrelem à emissora que funciona na freqüência de 1180 AM, o que resultaria na descaracterização desse importante instrumento de comunicação da coletividade fluminense, segundo denúncias de várias rádios comunitárias verdadeiramente .independentes.

Quem quiser aprofundar o tema mídia e manipulação, sem dúvida encontrará em outras matérias exemplos concretos de como funciona esse esquema, às vezes sofisticado, às vezes grosseiro, como a recente "entrevista" de dois falsos integrantes do grupo criminoso paulista PCC ao programa de Gugu Liberato, no SBT. Tudo isso, diga-se, leva à despolitização e à aceitação passiva do pensamento único, que visa perpetuar um modelo secular de dominação.

Para finalizar: por que não aprofundar também uma questão relevante da atualidade, o fato de os Estados Unidos montarem um governo no Iraque que já se dispõe a enviar representante à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep)? Um governo fantoche do invasor, invasor este que sempre quis enfraquecer a Opep… George W. Bush e família que o digam.

Mas, para não entrar nesses detalhes, bastaria a mídia informar que um governo independente e que tem assento na Opep, o da Venezuela, já avisou que se oporá à entrada do Iraque na organização, já que o governo atual não tem autonomia suficiente para agir sem se livrar das imposições do invasor. Por que a imprensa de um modo geral só noticia a volta do Iraque para a Opep e não questiona o resto?

(*) Jornalista