Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O erro sistêmico

Como errar tanto, num só episódio? Quantos segmentos erraram tanto, ao mesmo tempo? Com essas duas indagações, pode-se iniciar um esboço de análise a respeito de uma novela, no melhor estilo de uma minissérie, em cinco capítulos.


Entre segunda e sexta-feira (13 e 17/10), o país foi ‘contemplado’ com uma variante do modelo reality show. O jovem Lindemberg Fernandes Alves (22 anos) fez reféns duas adolescentes, Eloá Cristina Pimentel e Nayara Rodrigues da Silva, ambas com apenas 15 anos, afora dois outros garotos, libertados já no primeiro dia.


Tão logo iniciado o seqüestro, em regime de cárcere privado, ao local se dirigiram jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, havendo até lugar para forças policiais. Sempre em nome do inviolável direito de informar, transmissões diretas ocuparam as telinhas do país. Até aí, nada demais. Outras ocorrências do gênero mereceram igual aparato. Eis, porém, que, nesse episódio, a mídia, com apetite voraz por sensacionalismo, e com fome feroz por audiência, resolveu se tornar ‘personagem’ da ‘minissérie’.


Um ‘estúdio’ a céu aberto


Inacreditável. Duas emissoras de televisão (Rede TV! e Record) liberaram apresentadores, jornalistas e psicólogos para, de posse do número telefônico do seqüestrador, realizarem ‘entrevista’ com a transtornada e egóica ‘criatura-monstro’. Louve-se, ao menos, a atitude do jornalista e apresentador José Luiz Datena que, com o respaldo sensato da direção da Bandeirantes, se manteve no limite ético de sua função e, no ar, teceu críticas explícitas a colegas que usurparam, de modo irresponsável, a liberdade de expressão.


Não bastasse a ultrapassagem de fronteiras, a atuação desses profissionais de comunicação foi ridícula. A apresentadora do programa A tarde é sua (ou é dela?) conversava com a ‘criatura-monstro’ como se esta fosse um ‘garotinho’ que não recebera o presente prometido por Papai Noel. Por sua vez, o secretário de Segurança de São Paulo, Ronaldo Marzagão, em nenhum momento apareceu para fixar normas rígidas de procedimento. Ao contrário, quando intercedeu foi para passar ao governador uma informação errada: anunciou a morte de Eloá, quando esta ainda estava viva.


Da parte do comando de operações da PM, o coronel Eduardo Félix também nenhum veto proveio. Assim, o ‘galã homicida’ foi inflando o ‘ego’ até a indigestão cerebral. Dia após dia, novas transmissões da mídia com emocionantes tramas. O ‘circo dos horrores’ (ou a ‘arena dos abutres’), em céu aberto, ofertava o que de melhor as ‘personagens’ podiam interpretar, seguindo um roteiro regido pela ‘atmosfera macabra’. Com base no roteiro, o ‘ego possesso’, tem, na memória, que esses ‘eventos espetaculares’, com a garantia de registro pela mídia, depois rendem documentário, filme… e, assim, seres anônimos e inexpressivos são eternizados pelo sedutor apelo de ‘produções ficcionais’. É tempo, ainda, de se repensar tais coberturas.


O despreparo flagrante


Famílias das vítimas, do algoz e forças policiais, afora o já pautado desempenho pífio de alguns profissionais de comunicação, se foram reunindo para a construção de um desfecho deplorável. Familiares do ‘anjo exterminador’ cederam o número telefônico. Negociadores, supostamente preparados para a função, nada negociaram: simplesmente, cumpriam todas as exigências e contradições do ‘apaixonado assassino’. Ora, é sabido que ‘negociação’ supõe aceitação de ‘x’ e rejeição a ‘y’. Em caso contrário, ‘negociação’ se torna ‘submissão’, o que apenas serve para fortalecer o agressor, fato agravado, ainda, pela injeção de ‘afeto’ e de ‘discursos sensíveis’ que alguns ‘jornalistas’ dedicavam ao ‘descentrado’.


Algo, todavia, restava para deixar estarrecido qualquer ajuizado cidadão: o comando da PM solicita à ex-refém – que, após libertada, ainda prestou depoimento durante oito horas (absurdo!) – o retorno à área do cativeiro, mesmo que fosse para apenas, a certa distância, conversar com o seqüestrador. Nesse episódio lamentável e irracional, igualmente a Secretaria de Segurança do estado não esboçou qualquer ação contrária. É simplesmente inacreditável. Acrescente-se ao episódio o fato de a mãe da ex-refém, em depoimento ao programa Fantástico, haver afirmado que em nenhum momento foi consultada para liberar (ou não) o retorno da filha. Resultado: a situação que se iniciara com quatro reféns, fora reduzida a duas; em seguida, para uma e, adiante, novamente, para duas. A aritmética fala por si.


Na Folha de S.Paulo (19/10), no caderno ‘Cotidiano 1’, consta a seguinte manchete: ‘Poderíamos ter matado Lindemberg, diz PM’. A sublegenda acrescenta: ‘Oficiais que coordenaram ação descartaram tiro à distância devido ao perfil do rapaz, que estava `em crise amorosa´’. O término da ‘narrativa’ demonstra a equivocada interpretação.


O desfecho irresponsável


A alegação de que a tropa próxima ao imóvel ouviu o disparo de um tiro e determinou a invasão, embora ninguém presente embaixo houvesse ouvido, é frágil. Afinal, dois dias antes, além de tiros disparados para fora, outro tiro interno fora dado. Nem por isso, a tropa invadiu. Há rumores de que Nayara, além do depoimento do ‘assassino-celebridade’, teria dito que nenhum tiro fora dado nos momentos anteriores à invasão precedida por explosão.


As transmissões de TV também não registraram, seja por som, seja por ‘fagulha’ na imagem, qualquer alteração. Os telejornais (Band e Globo), na noite de sábado (18), deram a notícia, com apoio de especialistas, de que tiros, no apartamento, foram dados, após a explosão. Em sendo verdade, o que se conclui é que a tropa do Gate, querendo dar fim, até por exaustão físico-mental, à ‘minissérie’, informou ao comandante a audição de um tiro, e que, então, dele teria recebido o ‘sinal verde’ para a invasão. A versão é verossímil? Sim. Ela é verdadeira? Depende de mais acurada apuração.


As investigações tratarão de esclarecer a ação conclusiva. Seja qual for a apuração pericial, fica o débito trágico e injusto: as duas reféns, menores de idade, foram alvejadas, com o agravante de que a ex-namorada foi irremediavelmente condenada. Do coma irreversível, ninguém retorna à vida ativa. Restam apenas duas opções: a vida vegetativa (preservada por procedimentos artificiais) ou o túmulo. A lógica fria do diagnóstico acabou por decretar a morte de Eloá. Por ironia do ‘destino’ (ou por despreparo das forças constituídas), justamente o autor da execução, mesmo que venha a padecer, no cárcere, está vivo e inteiro. Diante, portanto, desse resultado final, nada pode respaldar a eficácia logística das operações.


O propósito deste escrito não reside em estigmatizar quem quer que seja. O fato revela tão-somente a fragilidade de um modelo cultural que, em parceria com o sistema midiático dominante, agrega ingredientes graves para a progressão de estados psíquicos de jovens excitados, frágeis, consumidores contumazes de telas e telinhas. Cultura audiovisual é para se somar à consistência que apenas a cultura letrada e impressa confere à inteligência. Quem ‘vender’ fórmula oposta será conivente com a proliferação de seres descentrados.


Visão realista é necessária


Ao afirmar que a questão de fundo remete a configurações culturais, fundamento a premissa na convicção de que vários segmentos não cumpriram seus papéis sociais e simbólicos. Como atuaram os familiares de Eloá quanto ao fato de, no início, um jovem de 19 anos começa a namorar uma menina de apenas 12 anos? Como esse relacionamento, com a defasagem etária, pôde prosseguir por três anos, com 10 separações?


Por outro lado, da parte do ‘jovem desatinado’, sobre quem há apenas depoimentos enaltecedores, seja de seus familiares, seja de seus amigos, fica a pergunta: para que ele conseguisse um revólver (calibre 32), além de vasta munição, com quem ele, efetivamente, se relacionava? E mais: se é verdade, segundo depoimentos, que o ‘ser desarvorado’ sofria de depressão, é bom lembrar que a elaboração de uma estratégia, a exemplo da que foi posta em prática, requer tempo de reflexão. Como conseguir as armas e a munição? Como proceder? Qual o melhor dia e o mais adequado horário para a abordagem? Enfim, o tempo do ‘surto depressivo’ não é compatível com a ‘duração’ para a construção do enredo delituoso.


Outro aspecto merece questionamento: que fatores subjetivos terão motivado a adolescente Nayara para ir além do desastrado combinado, ato que o próprio irmão de Eloá que a acompanhava não referendou? Com base em que fontes, o comandante da PM requisitou uma ex-refém a reingressar na atmosfera de um ‘cenário doentio’? Terá sido levado por um impulso de credulidade infantil? Não é essa a análise que se espera de um profissional.


A rigor, o que fica exposto é a junção de percepções equivocadas, emoções adulteradas, precariedades culturais que derivam de políticas negligentes quanto a investimentos produtivos em educação, em valorização profissional, em efetivos programas de qualificação analítico-interpretativa. Isto é caro e leva tempo. As gestões políticas, em todos os níveis (municipal, estadual e federal), porém, têm pressa por resultados, bem como por economias de gastos.


Prudência e sensatez


Assim, políticos se esmeram em gastar com equipamentos, máquinas, armamentos, negligenciando em investimentos na formação dos cidadãos e profissionais. Ou adotamos uma visão efetivamente realista, com distanciamento crítico, ou seremos tragados pelo tresloucado modelo binário e psicótico entre forças político-partidárias que, em nome de suas respectivas ambições, tornam reféns milhões de cidadãos.


O fato é que, como cidadão, derramo lágrimas silenciosas e invisíveis. É a vivência profunda da dimensão trágica na qual, de um lado, ninguém, isoladamente, é culpado; de outro, cada um, a seu modo, colaborou para o pior dos males.


Nesse cenário de desencontros, uma menina, com apenas 15 anos, se foi. Outra, com igual idade, viva, porém traumatizada para o restante de sua existência. Uma força policial que, em sã consciência, nada tramou para o término fatal. Familiares dos envolvidos, nada, conscientemente, terão feito para agora amargurarem sofrimento eterno. Mesmo os tais profissionais de comunicação que abusaram de suas atribuições terão sido movidos por impulsos infantis. Até o ‘romântico destrutivo’ teria, na sua mente perturbada, ‘idealizado’, sabe-se lá por que filmes (ou novelas), um ‘final feliz’.


Bem, o que resta de todo esse emaranhado de inconseqüências são lágrimas pela constatação de um erro sistêmico. E como dói… Até quando, Brasil? Autoridades políticas devem assumir seus papéis sociais de modo mais responsável. Lembremos que, no auge do episódio, no município de Santo André, luta corporal era travada entre as polícias militar e civil nas cercanias do Palácio dos Bandeirantes, por conta de reivindicações salariais da polícia civil. Atente-se para o fato de a polícia civil de São Paulo ser a força de segurança pública com menor taxa de remuneração no país.


De outro lado, profissionais de comunicação têm o dever de, em nome da seriedade de suas funções, agir com prudência e sensatez. Das autoridades políticas, espera-se que algum dia compreendam a lição fundamental: em primeiro lugar, deve estar o investimento no potencial humano; em seguida, aprimora-se o equipamento. Por quê? É tão simples a explicação: artefato sofisticado, em mãos limitadas, gera descompasso entre o potencial do ‘objeto’ e a precariedade de quem o utiliza.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA, RJ