O noticiário sobre matéria jurídica envolve sempre algum tipo de interesse social, ainda quando se refira a fatos relacionados com o comportamento ou a situação de uma pessoa determinada. Com efeito, ninguém vive fora de um convívio social e, de uma forma ou outra, com maior ou menor intensidade, tudo o que se relaciona com os direitos e responsabilidades de um indivíduo tem alguma repercussão na ordem jurídica e, portanto, nos direitos de outras pessoas.
Por esse motivo, é importante que ao noticiar ou comentar um acontecimento ou uma situação determinada, com alguma conotação jurídica, a imprensa procure externar-se com precisão, pois isso permite a correta compreensão e avaliação por parte de quem tem formação jurídica, evitando, também, que os leigos sejam erroneamente informados e formem sua convicção com base numa informação errada ou imprecisa.
Essa observação quanto ao cuidado com a matéria jurídica não significa que se pretenda que a imprensa diária use a linguagem ou tenha a profundidade de uma dissertação jurídica, ou que o profissional de imprensa seja necessariamente um bacharel em Direito. Nada disso é preciso, nem seria conveniente complicar e polemizar o noticiário que envolva questões de Direito, como se fosse uma aula ou um seminário, pois, além de tudo, o normal é que a maioria dos leitores não tenha formação jurídica e, no entanto, esteja interessada em conhecer e compreender as repercussões jurídicas de um fato. Para tanto é suficiente que o jornalista fique atento e, se ficar em dúvida, consulte alguém que tenha conhecimento básico de Direito e das expressões jurídicas.
Semente da confusão
A imprecisão no tratamento de matéria jurídica é generalizada na imprensa brasileira, mas para ilustrá-la chamo a atenção para um erro em noticiário do jornal O Estado de S.Paulo, que é, sem dúvida, um dos órgãos mais importantes da imprensa brasileira.
Na edição de domingo (29/11), à página A13, encontra-se matéria com o título ‘Começa elaboração de novo Código Civil’. Não é preciso ser jurista para saber que o Código Civil é uma das leis mais importantes do Brasil, sendo mais do que óbvio que para qualquer profissional da área jurídica é do maior interesse saber mais a respeito da elaboração de um novo Código Civil, pois, por sua abrangência, uma inovação dessa magnitude afetará direitos pessoais e patrimoniais. No entanto, além de dedicar poucas linhas ao assunto, diz o jornal: ‘A Comissão de juristas instituída pelo Senado para elaborar o anteprojeto de um novo Código de Processo Civil realiza amanhã sua primeira reunião’.
O Código de Processo Civil é também uma lei muito importante, mas trata de procedimentos judiciais e não dos direitos, sendo, portanto, completamente diferente do Código Civil, soando também muito estranho que uma Comissão de juristas encarregada de elaborar um projeto de novo Código tenha sido instituída pelo Senado.
Há muitos profissionais da área jurídica querendo saber se está mesmo em elaboração um novo Código Civil brasileiro e quem são os juristas incumbidos, pelo Senado, dessa tarefa de extrema relevância. No caso aqui referido, a imprensa não só deixou de prestar um serviço relevante, que seria a informação correta sobre matéria de tamanha importância, para possibilitar aos interessados o acompanhamento dos fatos, mas lançou confusão, desinformando os leitores.
Companheira inseparável
Uma imprecisão de outra natureza, que se poderia qualificar como imprecisão intencional, tem sido registrada na matéria relativa aos acontecimentos de Honduras. O que lá ocorreu foi que o presidente da República, Manuel Zelaya, havia iniciado, ostensivamente, um movimento político tendo por objetivo mudar a Constituição para permitir sua reeleição. Por esse motivo foi destituído pelo Congresso, como prevê a Constituição, tendo a Suprema Corte reconhecido a constitucionalidade da destituição, decisão que foi recentemente reiterada, quando novamente chamada a se pronunciar sobre a matéria [ver, neste Observatório, ‘O fundamento legal omitido‘].
De acordo com a Constituição, destituído o presidente o substituto deveria ser o vice-presidente da República, mas este havia renunciado ao posto para ser candidato à Presidência e, nos termos previstos na Constituição, quem assumiu a Presidência, em caráter interino, foi o presidente do Congresso, Roberto Micheletti.
Por tudo isso, não há dúvida de que Micheletti assumiu a presidência por meio rigorosamente legal, sendo, portanto, o presidente de direito a partir de sua posse. Entretanto, o que se viu na imprensa brasileira foi uma distorção intencional. Com efeito, enquanto muitos jornais brasileiros, como, por exemplo, O Globo, sempre se referiam a Roberto Micheletti como ‘o presidente interino de Honduras’, o jornal O Estado de S.Paulo adotou a expressão ‘governo de fato’ para designá-lo.
Essa forma de se referir a Micheletti contém um erro evidente, pois independente das preferências políticas ele assumiu a Presidência atendendo rigorosamente as normas constitucionais. Enquanto esteve na Presidência Michelleti foi presidente de direito, não de fato, tendo-se afastado espontaneamente às vésperas das eleições presidenciais realizadas normalmente, com absoluto respeito às determinações legais, no dia 29 de novembro.
Esse foi um caso de imprecisão intencional, de distorção da verdade por motivos que nada têm a ver com a qualificação jurídica. E não deixou de chamar a atenção o fato de que o mesmo jornal O Estado de S.Paulo jamais se referiu aos ditadores militares que governaram o Brasil como presidentes de fato ou governos de fato.
Assim como é reprovável a imprecisão por ignorância ou descuido, a imprecisão intencional deve ser repudiada, por ser incompatível com a imprensa responsável, que deve ser companheira inseparável da imprensa livre, ambas indispensáveis para a sociedade democrática.
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Jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo