Thursday, 31 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

‘Sim, é necessária uma nova Abolição’




‘Cabe lembrar que `nova Abolição´ é um lema que, apesar de ter sido elaborado na década de 1920, não está totalmente obsoleto. Os afro-descendentes ainda se encontram em posição de desvantagem em relação às pessoas brancas no Brasil.’ (Petrônio Domingues)


Em 27 de outubro, o professor-doutor Muniz Sodré publicou um artigo no site Observatório da Imprensa cujo título era ‘É necessária uma nova Abolição?‘. No artigo, Sodré critica o tratamento tendencioso da grande imprensa na cobertura sobre Ações afirmativas – mais especificamente as cotas universitárias – e questiona a opção dos ‘jornalões’ em favorecer a publicação de conteúdo contrário ao sistema.


Ocorre que, no dia 03 de novembro, Demétrio Magnoli, colunista de veículos conceituados como a revista Época e o jornal Folha de S. Paulo, publicou uma ‘resposta’ desrespeitosa intitulada ‘Matem os escravistas‘ onde ataca Sodré com ironia. Com um discurso enviesado, Magnoli deprecia os argumentos de Sodré e o árduo trabalho que vem sendo construído pelo movimento negro brasileiro na luta contra o racismo ao longo da história do Brasil. Numa suposta tentativa de criticar o ‘método’ utilizado por Sodré, Magnoli menospreza a ‘consistência interna’ do texto de Muniz, segundo ele, causado pelo seu posicionamento ideológico, e classifica o discurso de Sodré como ‘violência verbal’.


Melhores argumentos


É no mínimo espantoso reconhecer que alguém que ostenta um título acadêmico como o Sr. Demétrio Magnoli nega para si mesmo e para a opinião pública a existência de injustiças originadas pelo racismo enraizado na estrutura da sociedade brasileira. Reza a máxima que o título acadêmico deveria garantir maior capacidade de análise dos fatos sociais.


É igualmente espantosa a cegueira que o Sr. Demétrio representa – e hoje é seu principal porta-voz – ao negar sistematicamente a existência do desequilíbrio no caráter dos artigos e no conteúdo das reportagens publicadas nos veículos da grande imprensa brasileira.


Em sua ‘resposta’, o Sr. Demétrio desafia Sodré a provar este suposto desequilíbrio. Magnoli ignora o fato de que determinados veículos da grande mídia propõem uma agenda-setting unilateral e, com isso, contribuem para o desaparecimento do princípio da imparcialidade na imprensa, tão caro à sociedade brasileira. É impossível acreditar hoje em dia que os veículos de comunicação são unanimemente éticos e imparciais. Um dos grandes problemas desta premissa é encobrir o fato de que algumas opiniões editoriais invadem o campo das matérias e reportagens, que deveriam ser imparciais. Ao invés destes veículos de comunicação terem como foco o serviço de utilidade pública, acabam se transformando em juízes e algozes da realidade que nos cerca.


Se antes de escrever vorazmente contra as ações afirmativas – e duvidar da veracidade e do compromisso ético de acadêmicos dignos de todo respeito como Muniz Sodré –, o Sr. Magnoli deveria ter recorrido às pesquisas acadêmicas que estão sendo realizadas neste momento. Talvez assim ele apresentasse melhores argumentos para duvidar da existência de um posicionamento parcial de alguns setores da grande imprensa no Brasil.


Trata-se ou não de desequilíbrio?


Os pesquisadores João Feres e Veronica Daflon, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), por exemplo, realizaram recentemente uma análise dos textos publicados pela revista Veja sobre as ações afirmativas entre 2001 e 2009. Foram analisados 66 textos e artigos sobre o tema de janeiro de 2001 a junho de 2009, sendo 39% colunas assinadas e 38% reportagens.


Deste total, 77% continham avaliações negativas sobre as ações afirmativas raciais e apenas 14% favoráveis. Se tivesse feito essa consulto, o Sr. Demétrio descobriria, por exemplo, que deste universo, 19 reportagens são contrárias às ações afirmativas e apenas três são favoráveis. Em relação às colunas na revista Veja no período, 20 foram contrárias e apenas quatro favoráveis. Trata-se ou não desequilíbrio?


Feres e Daflon identificaram que a partir de 2005, quando as políticas de cotas estão consolidadas no ensino superior público do país, as raras manifestações favoráveis às ações afirmativas simplesmente desapareceram da revista Veja.


Feres e Daflon analisaram ainda os títulos e suas mensagens explícitas na revista neste período. Um dos exemplos são os títulos ‘O grande salto para trás’ e ‘Cotas para quê?’, ambos publicados em 2005. Ou ainda a reportagem em 2007 sobre o caso de um professor da Universidade de Brasília acusado de racismo, cujo título era ‘A primeira vítima’.


Todos os títulos já evidenciavam a parcialidade nua e crua da revista Veja. O artigo do colunista Diogo Mainardi, cujo título era ‘O quilombo do mundo’, demonstra a sua dita ‘criatividade’ a serviço da intolerância como ‘o Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos’ ou sobre ‘a chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras’. Trata-se ou não de desequilíbrio?


Nomenclatura de assuntos investigados


Vamos agora aos ‘jornalões’. Um estudo realizado pelo pesquisador Kássio Motta para o Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) analisa o caso do jornal O Globo no período de março de 2002 a julho de 2004. De acordo com o levantamento, no total foram publicados 55% de textos negativos e 15% de textos positivos sobre as cotas. Neste contexto estão 34% de matérias negativas contra 6% positivas, e 66% de editoriais e artigos negativos contra 34% positivos. Outra vez questionamos: trata-se ou não de um desequilíbrio?


Outra pesquisa, desta vez encomendada pelo CEERT ao Observatório Brasileiro de Mídia, observou os jornais Folha, Estado e Globo, dos quais se extraiu 972 textos publicados entre 1º de janeiro de 2001 e 31 de dezembro de 2008, além de 121 textos veiculados pelos semanários Veja, Época e IstoÉ, totalizando, portanto, 1.093 escritos – incluindo reportagens, editoriais, artigos e colunas.


Os assuntos investigados foram agrupados a partir da seguinte nomenclatura: cotas nas universidades; ação afirmativa; quilombolas; estatuto da igualdade racial; diversidade racial (incluindo racismo, discriminação racial, etc.) e religiões de matriz africana.


Leitura indispensável


Fechando o foco nos textos de jornais, cinco tópicos merecem especial atenção:


1) desagregando-se o tema das cotas nas universidades, os textos opinativos somaram, no caso da Folha, cerca de 28% do total de ocorrências, sendo evidente a freqüência mais alta das reportagens em comparação com as opiniões;


2) examinando-se os textos opinativos da Folha sobre cotas nas universidades, 46,7% posicionaram-se abertamente contrários, número elevado, mas não configuram a totalidade das opiniões;


3) o Globo sobressai em relação aos seus concorrentes no que se refere a uma orientação anticotas mais organizada e institucionalizada, tendo sido o único jornal em que os textos opinativos foram mais freqüentes do que as reportagens – 53,1% e 28,1% respectivamente, quando o assunto é cotas nas universidades;


4) as pesquisas ocupam apenas 5% dos textos e são aludidas quase que exclusivamente nas reportagens (83%), aparecendo muito raramente nos textos opinativos (8,3%);


5) a parcialidade da mídia impressa suscita preocupação inclusive nos seus próprios mecanismos internos de fiscalização, o que pode ser ilustrado por uma manifestação emblemática do ombudsman da Folha publicada em meados de 2006.


Portanto, quando Sodré questiona sobre uma nova Abolição, não se trata de um ‘pressuposto factual falso’, como diz o Sr. Demétrio. Provavelmente, este Sr. desconhece toda leitura indispensável para construir um argumento com seriedade, tais como o livro A nova Abolição (2008), do historiador Petrônio Domingues. Na obra, é possível aprender que a expressão foi citada pela primeira vez no dia 13 de maio de 1924, como manchete principal do primeiro número do jornal O Clarim da Alvorada, importante veículo da história da imprensa negra no período.


A luta pelos direitos fundamentais


Já naquela ocasião a defesa de uma nova Abolição propunha uma transformação radical na sociedade brasileira para garantir a justiça e a igualdade racial. Quase 90 anos depois, essa expressão mantém sua mensagem viva. O Brasil continua com o desafio de garantir a justiça e a igualdade de direito para todos.


Vale lembrar também que Muniz Sodré está amparado por uma clarividência histórica acompanhando por extensa lista de pensadores, pesquisadores e intelectuais como Kabenguele Munanga, Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e tantos outros.


É por isso que nós, afro-descendentes, integrantes do movimento negro, profissionais de imprensa, intelectuais e acadêmicos declaramos publicamente que Muniz Sodré desfruta do nosso total apoio neste posicionamento em favor da pluralidade de opiniões e reportagens nos ‘jornalões’ e demais veículos de comunicação sobre as ações afirmativas, em especial, sobre as cotas nas universidades públicas. Lembrando que resta ainda uma longa caminhada até atingirmos a plenitude do princípio da igualdade no Brasil. Jamais haverá igualdade onde as pessoas se encontram em condições desiguais na luta pelos seus direitos fundamentais.


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[Este artigo é endossado por Julio Tavares, doutor em Antropologia – University of Texas at Austin; Roberto Martins, ex-presidente IPEA no governo FHC; Carlos Alberto Medeiros, jornalista, mestre em ciências jurídicas e sociais e coordenador CEPPIR-RJ; Amauri Mendes Pereira, professor sociologia da UEZO-RJ; Frei Davi Santos, OFM e diretor executivo Educafro; Diva Moreira, cientista política; Alexandre Nascimento, professor FAETEC/RJ; Jonicael Cedraz Oliveira, professor UFBA; Fabiana Lima, doutoranda UFBA; Claudia Miranda , doutora em educação UERJ; Uelington Farias Alves, jornalista e escritor; Daise Rosas Natividade, psicóloga e doutoranda da UFRJ; Humberto Adami, Ouvidor-Geral Seppir; Luis Fernando Martins da Silva, advogado e professor de Direito e membro IAB; Maria da Consolação Lucinda, doutoranda Antropologia Social Museu Nacional/UFRJ; Augusto Bapt, músico; Marcos Romão, cientista social e diretor da Rádio Mamaterra, Hamburgo; Marcelo Barbosa, mestrando em educação UERJ; Vera Daisy Barcellos, jornalista/ RS; Zilda Martins, mestranda comunicação e cultura ECO/UFRJ; Ana Cristina Macedo de Souza, mestranda políticas públicas FGV-RJ/EBAPE; Carlos Nobre, professor PUC/RJ; Nilo Sergio S. Gomes, jornalista; Jacques Edgard François; Flavio Gomes; Jorge da Silva; Claudia Fabiana Cardoso; Carlos Douglas Martins P. Filho; CEPPIR –RJ; CEERT; COMDEDINE; EDUCAFRO; ABRAÇO; Cojira-Rio; Cojira-DF; Cojira-BA; Cojira-AL; Cojira-PB; Núcleo de Jornalistas Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul; Movimento Novos Rumos; Fórum Paraibano Promoção Igualdade Racial; Agência Afro-Latina-Euro-Americana de Informação (ALAI); Associação Brasileira de Pesquisadores/as pela Justiça Social (ABRAPPS); Comitê de Luta pela Igualdade Racial e Democratização da Comunicação do FNDC-BA; Fórum Mulheres Negras DF; Movimento Negro Unificado DF; Centro de Cultura e Estudos Étnicos Anajô; Coletivo Entidades Negras (CEN)]

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Respectivamente, jornalista e pesquisadora sobre imprensa negra; jornalista e, mestre em comunicação e cultura ECO/UFRJ