Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

E o vento da desgraça levou o Arcanjo…

‘Eréndira estaba bañando a la abuela cuando empezó el viento de su desgracia.’ (Da obra de Gabriel García Márquez La increíble y triste historia de la Cándida Eréndira y su abuela desalmada)

Foi numa manhã de julho de 1972 que um novo estagiário de nome esquisito apareceu na redação do Globo. Mais precisamente, Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, nome de batismo de um dos melhores repórteres de toda a imprensa brasileira nas últimas três décadas. A semelhança física com o cantor Tim Maia foi mais forte que o antropônimo de inspiração celestial e o arcanjo acabou virando Tim Lopes.

Trazido pelas mãos de Henrique Caban, à época o respeitado e temido homem forte do Globo, Tim foi apresentado ao chefe da reportagem policial, Vargas Júnior, para se juntar a uma equipe de profissionais tarimbados e a três outros estagiários que davam duro fazendo a ‘ronda’ das delegacias e a ‘escuta’ do rádio de comunicações da polícia.

A ‘ronda’ das delegacias consistia em telefonar incessantemente para as 38 delegacias policiais que existiam então na cidade do Rio de Janeiro e perguntar se havia alguma novidade. A ‘escuta’ do rádio era ainda mais ‘emocionante’. Tudo que o estagiário tinha a fazer era escutar, com um fone de ouvido, as comunicações entre as viaturas policiais e as delegacias, captadas por um rádio sintonizado na faixa de onda privativa da Secretaria de Segurança Pública. Quando descobria algo interessante sua obrigação era informar ao chefe da reportagem policial que, obviamente, destacava um profissional experiente para fazer a matéria.

Naquela manhã de julho de 1972, o novo estagiário, de rosto redondo, sorriso largo e cabelos afro, vestia terno escuro e uma berrante gravata de cor lilás. Com o bom humor e a disposição que sempre o caracterizaram, Tim juntou-se aos outros três ‘focas’: Otávio Escobar, Eduardo Varela (homônimo do primeiro acertador dos 13 pontos da Loteria Esportiva, o famoso ‘Dudu da Loteca’) e este redator. Tim era o quarto mosqueteiro que faltava.

Em pouco tempo, o nosso ‘Dartagnan’, nascido no Rio Grande do Sul e criado ao pé do Morro da Mangueira, encarou sem reclamar a ronda das delegacias, a escuta do rádio e mostrou a que veio. Em meio às notinhas curtas sobre tríplices colisões e princípios de incêndio que os estagiários escreviam, Tim foi abrindo seu espaço com sugestões de pauta interessantes e disposição para brigar pelo direito de apurá-las e redigi-las.

Arrastado para longe

O espírito investigativo, a garra para correr atrás da matéria e o texto leve e descontraído logo denunciaram o grande repórter que estava se formando. A sensibilidade e a preocupação com os ‘deserdados’ se aliaram a uma forma até então inédita de escrever, na qual a gíria dos malandros do morro dava um tom popular e autêntico à contundência das denúncias. Além, é claro, das frases de efeito que gostava de criar. Ao se despedir dos amigos ou ao partir para uma nova empreitada, Tim jamais dizia ‘até logo’. Reminiscência de moleque que empinava pipas no Morro da Mangueira, a expressão que se tornou sua marca era: ‘Aí gente, vou dar linha à pipa que o vento está a favor’.

Brincar com as palavras era seu esporte predileto. Afinal de contas, como ele mesmo afirmava, ‘só quem brinca com as palavras sabe a graça que elas têm’. Brincando com as palavras, Tim escrevia as matérias que apurava com um empenho que o levava a virar noites insones, embrenhar-se em lugares hostis e transitar camuflado entre os personagens de suas reportagens.

Infelizmente, amigo Tim, naquela noite de junho de 2002 você deu linha à pipa mas, seja por que razões forem, o vento não estava a favor. Para você, o vento naquela noite foi o mesmo ‘vento da desgraça’ que soprou para a Cândida Erêndira, do escritor García Márquez que você tanto admirava. E você foi arrastado para longe de nós. O consolo que nos resta é que, esteja onde estiver, você continuará sempre brincando com as palavras para denunciar as injustiças deste mundo desigual.

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Jornalista