Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Diploma é cassado, mas mal-estar continua

Noticia Zero Hora (Porto Alegre, 18/7) que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul decidiu, em caráter pioneiro, cassar o diploma de mestre conferido a Gilberto Kmohan por banca examinadora constituída pela sua Faculdade de Comunicação. O processo que culminou com o ato pôde ser acompanhado pelos leitores deste veículo, em matérias e comentários, mais as réplicas e esclarecimentos de pessoas que com o caso se envolveram. [ver remissões abaixo] Tardou sem dúvida a instituição a tomar a única decisão que, dadas as evidências, poderia ser tomada em relação ao caso, denunciado em 2001 pelo professor-doutor Luis Milman.

Depois de rolar anos sobre várias mesas, passando de repartição para repartição e recebendo pareceres que vão do esdrúxulo ao indigente do ponto de vista intelectual, a decisão, todavia, ainda precisa ser ratificada, visto o denunciado ter apresentado recurso ao Conselho Universitário da instituição.

Nefelibatas e idiotas

Curiosamente, continua a reinar um silêncio que raia a solidariedade com os faltosos por parte da Faculdade de Comunicação. Entre reabilitar o denunciante e aguardar eventual reversão do julgamento de primeira instância, sua direção parece ter escolhido o segundo caminho. ‘Importa é que ainda há, entre aqueles que tentaram obstruir uma rápida, legal, mas necessária investigação do plágio durante cinco anos, manifestações em favor da alegada inocência até trânsito em julgado do réu plagiário’, disse Milman. Particularmente, considero o caso menos um atestado de retidão intelectual por parte da universidade do uma prova da decência acadêmica e coragem intelectual do Prof. Milman.

Contra a opinião dominante no establishment, corrompida nos costumes que deveriam ser os seus, sustentou o denunciante uma causa sem interesses pessoais e que se revelou custosa em termos morais e profissionais. Raiando o patético à vista de uma comunidade que não sabe mais agir por dever nem o que defender profissionalmente que não as vantagens individuais, a ação entre amigos e o ressentimento característico das nulidades espirituais, o docente não temeu ser marginalizado, como de fato o foi, da vida acadêmica de sua unidade, nem em manter a disputa daquilo que suas convicções, baseadas em ampla documentação comprobatória, afigurava-se-lhe como uma mal costurada trapaça literária.

Apenas os nefelibatas e idiotas que também não faltam nem mesmo no meio universitário desconhecem que a falência generalizada da formação geral, a massificação do ensino superior, o crescente despreparo do pessoal acadêmico, a mentalidade predatória, a competição na base do vale-tudo e todo o resto vêm provocando um rebaixamento dos padrões acadêmicos, aqui e lá fora. Quem pensa que se trata de uma anomalia passageira assim o faz porque não sabe ver. As circunstâncias acima indicadas vieram para ficar e continuarão produzindo efeitos enquanto houver ensino escolar, como nota o próprio Milman: ‘Nossa impotência para frear, de algum modo, este espetáculo de ilusionismo em que se transformou o aferimento da capacidade e integridade dos alunos talvez seja ainda mais indicativa da falência dos padrões éticos e intelectuais que deveriam nortear a academia’.

Mistificação acadêmica

O problema, portanto, não é esse, mas sim como os responsáveis pela instituição se propõem a lidar com situações como a indicada daqui por diante. Em artigo anterior (‘Legitimação acadêmica do plágio’, OI 210, 5/2/2003) [ver remissão abaixo], tive o desgosto de comentar sinal melancólico de por onde talvez se encaminhe a questão e do qual, ademais, dá prova eloqüente o affair Kmohan.

Quanto a este, tenho pouco a acrescentar. Qualquer um que conheça como autoridade moral e intelectual o assunto da dissertação concluirá pelo caráter fraudulento do material, para não falar da indigência petulante e da atitude de subestimação para com os avaliadores que lhe subjaz. Que ocorram coisas assim, porém, não é, como dito, de se espantar; mas que coisas assim sejam objeto de todo tipo de manobra administrativa, postergação burocrática, salvaguardas falaciosas e julgamentos circenses – isso tudo, sim, é lamentável e confere ao caso a condição de sintoma insignificante de um mal colossal que parece estar avançando incontinente pelo corpo universitário.

‘Parecem-me sombrios os rumos da universidade pública que cultiva o apego ao compadrio, aos feudos ou às corriolas formadas com o tempo, objetivando torná-la refém de todo o tipo de mistificação acadêmica, de neutralização administrativa e de tolerância ou indiferença com o crime intelectual’, conclui Milman.

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Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul