Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Guerrilheiro, capitão ou bruxo?

Tinha intitulado este artigo como ‘temporada de caça ao bruxo’. Mas, ao observar a desconstrução da imagem a que vem sendo submetido o deputado José Dirceu, nestes últimos meses, nas principais manchetes nacionais, resolvi refletir a esse respeito, baseando-me em estudos sobre o comportamento da cultura de massas.

Como pano de fundo, no palco, a mídia alvoroçada, anunciando a noite das feiticeiras. O deputado Dirceu, denominado por colunistas de grandes jornais como ‘aprendiz de feiticeiro’ e ‘prisioneiro de sua própria biografia’, é o mesmo que já foi chamado pelo presidente Lula de ‘capitão do time’.

Processo de desumanização

Pergunto-me sobre a cultura de massas, em que se constroem mitos e em que se os derrubam, com certeza. Porém, há a possibilidade de se os reconstruírem, com novos postulados a partir de fatos e desvios de rumo em seus caminhos. Há algo que talvez possamos chamar de ‘culpa’, na sede que o público tem de encontrar seres superiores, misteriosos, afeitos a um ‘poder’ maior, capaz de supervisionar passos, atitudes e destinos de seus pares. Isso acontece nas instituições religiosas, nos partidos políticos, nos clubes de lazer e nas comunidades necessitadas de organização visando conquistas sociais.

Claro que é absurdo, mas é o universo fantasioso do imaginário popular, tão imensamente estudado por Edgard Morin, no seu livro Cultura de massas no século XX. Um ex-guerrilheiro será sempre um lutador inconteste, em qualquer trincheira onde se posicionar, e, como ele tem demonstrado, combaterá sem tréguas e sem desistência. Morin chega a classificar como deuses do Olimpo moderno essas criaturas cujas vidas são mitificadas por seguidores, fãs, eleitores, seus decodificadores fiéis. Assim se fabricam os mitos, os líderes, os reis, os dominadores, os ditadores, os grandes ídolos do cinema, do teatro, das artes em geral, criaturas que acabam ‘delirando’ e até acreditando que estão acima do bem e do mal, além das mazelas menores, a tal condição ‘humana’, esta, sim, um destino natural de todos nós, qualquer que seja o posto que ocupemos ou o papel que desempenhemos na sociedade.

O deputado José Dirceu é o grande gerenciador de seu destino, e pode virar o jogo, se conseguir anular perante a opinião pública o processo de desumanização que vem sofrendo por intermédio da mídia, transmitindo ao povo brasileiro a imagem de Zé Dirceu, aquele que se fragilizou pela perseguição, mas que não se dá por vencido pelos estereótipos que lhe apregoaram.

Prolonga-se a cerimônia

Como em toda novela da vida pública ou privada, a luta que empreende para salvar seu mandato reveste-se de situações que, certamente, imputam-lhe o gosto amargo dos arrependimentos, sem, entretanto, diminuir-lhe a virtude da dedicação à vida pública e o alcance social de seu trabalho. Suas demandas na área jurídica demonstram claramente a natureza institucional de seu combate ferrenho.

Não é nada fácil sacrificar um homem como José Dirceu, enquanto se buscam razões que a própria razão desconhece e, dele, sobrevém a fleuma de um samurai na guerra, desfechando novas estratégias de defesa. Fundamentam-se pareceres antagônicos, demonstrando que se dividem os postulados em seu favor e contra ele, neste momento.

Estabelecidas a divisão e a polêmica, prolonga-se a cerimônia, estica-se o tempo, o deputado ganha fôlego para esbravejar, as eminências pardas do governo central se eximem de falar, a opinião pública se vê direcionada por uma mídia implacável, e os deputados federais, em seus momentos de solidão reflexiva, devem estar oscilando na cruel decisão de seu voto pela cassação do companheiro.

Jamais perdoado

A partir do emaranhado de conceitos que a mídia tem insuflado, o mito Dirceu se acresce de significados, ora extremos, ora excitantes. Recente pesquisa, entre mais de sete mil leitores do Blog do Noblat, revelou que a maioria dos votantes considera que ele está certo em prolongar sua defesa, para salvar seu mandato.

O grande diferencial desta temporada de ‘a bruxa está solta’ é que, na poção devastadora do caldeirão fervilhante, há um componente vital elevado ao estado de vapor, que martela os cérebros pensantes nacionais, em forma de pergunta: qual Dirceu, afinal, estamos oferecendo aos deuses do Olimpo moderno da cultura de massas?

Seria o ‘guerrilheiro’, até hoje não perdoado pelos conservadores, o ‘capitão’ que, aparentemente, deixou o barco à deriva ou, ainda, o ‘bruxo’ temido, digno de ser colocado na fogueira, como nos tempos da Inquisição?

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Jornalista e professora universitária, Rio de Janeiro