Thursday, 31 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

José Queirós

“Foi um pedido ines­pe­rado o que recebi há dias de um lei­tor devi­da­mente iden­ti­fi­cado, a quem cha­ma­rei aqui A.B. (ini­ci­ais fic­tí­cias). Pre­ten­dia esse lei­tor, e vinha por meu inter­mé­dio solicitá-lo à direc­ção do PÚBLICO, que ‘fosse reti­rada da Inter­net’ uma peça que reco­lhia decla­ra­ções por si pres­ta­das ao jor­nal, e publi­ca­das na edi­ção on line há mais de um ano.

Tratava-se de um entre mui­tos depoi­men­tos obti­dos no âmbito de um tra­ba­lho divul­gado pelo Público Online em Março de 2011, nas vés­pe­ras do que ficou conhe­cido como mani­fes­ta­ção da ‘gera­ção à rasca’. Aos inqui­ri­dos era pedido que res­pon­des­sem à per­gunta ‘Por que é que vou [ou não] par­ti­ci­par no pro­testo?’. Deze­nas des­ses tes­te­mu­nhos, pró e con­tra a par­ti­ci­pa­ção nas mani­fes­ta­ções con­vo­ca­das para 12 de Março em diver­sas cida­des, foram repro­du­zi­dos na edi­ção impressa desse dia. Entre eles não figu­rava o depoi­mento em que A.B. expli­cava os moti­vos da sua ade­são, e que não diver­giam muito do padrão geral das res­pos­tas posi­ti­vas: frus­tra­ção pelo estado do país, pela não rea­li­za­ção de expec­ta­ti­vas pro­fis­si­o­nais, pela pre­ca­ri­e­dade do tra­ba­lho, pela falta de emprego.

O que então disse, em res­posta ao inqué­rito do PÚBLICO, foi publi­cado ape­nas na edi­ção para a Inter­net e per­ma­nece no arquivo on line do jor­nal. Por que motivo quer agora que seja ‘reti­rado’? Terá mudado de opi­nião, já não se revê no que pen­sava há um ano? Parece não ser esse o caso. A.B. diz ter par­ti­ci­pado ‘com bas­tante orgu­lho’ nos pro­tes­tos de 2011, mas alega ter enten­dido que o seu con­tri­buto se des­ti­na­ria ‘ape­nas à publi­ca­ção em papel’. E refere ‘o facto de tais infor­ma­ções apa­re­ce­rem inde­fi­ni­da­mente na Inter­net’, para expli­car: ‘Parecem-me agora des­con­tex­tu­a­li­za­das sem­pre que se faz uma pes­quisa pelo meu nome’.

Como não dá mais expli­ca­ções para o seu pedido, e não põe em causa a fide­li­dade da trans­cri­ção do que disse ao PÚBLICO, julgo poder con­cluir que, por razões que entende dever guar­dar para si, A.B. se sente des­con­for­tá­vel com o facto de as suas decla­ra­ções de há um ano se encon­tra­rem aces­sí­veis a quem quer que digite o seu nome num motor de pes­quisa da Inter­net. Veri­fi­quei que o seu depoi­mento a este jor­nal é o resul­tado que apa­rece a enca­be­çar a lista de refe­rên­cias no Goo­gle ao seu nome ver­da­deiro, indi­cando que é o mais lido entre os tex­tos ali indexados.

Os res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais do jor­nal não vão anuir ao pedido de A.B., e a direc­tora exe­cu­tiva do Público Online, Simone Duarte, faz notar que, ainda que reti­ras­sem o seu depoi­mento do arquivo da edi­ção para a Inter­net, este ‘con­ti­nu­a­ria a exis­tir no cibe­res­paço’. Por outras pala­vras: mesmo que o lei­tor apre­sen­tasse razões aten­dí­veis para o seu pedido, este nunca pode­ria ser satis­feito com alguma efi­cá­cia sem o envol­vi­mento das empre­sas que detêm moto­res de busca como o Goo­gle. ‘Uma vez no mundo vir­tual, sem­pre no mundo vir­tual. Mas no papel tam­bém é assim: uma vez no papel, para sem­pre no papel’, resume Simone Duarte, que recorda ape­nas dois pre­ce­den­tes de pedi­dos seme­lhan­tes diri­gi­dos ao Público Online, nenhum dos quais foi aten­dido (‘nunca apa­gá­mos um texto’).

Por mim, sem dis­cor­dar das deci­sões toma­das nes­ses casos, gos­ta­ria de cha­mar a aten­ção para duas carac­te­rís­ti­cas do jor­na­lismo na Inter­net que devem ser tidas em conta na aná­lise da legi­ti­mi­dade de recla­ma­ções deste tipo. Por um lado, a plas­ti­ci­dade pró­pria das edi­ções on line per­mite inter­ven­ções cor­rec­ti­vas impos­sí­veis de fazer no papel. Por outro, a fácil aces­si­bi­li­dade torna pos­sí­vel que uma qual­quer peça jor­na­lís­tica, antes des­ti­nada a jazer esque­cida numa heme­ro­teca, possa ganhar nova vida, às vezes anos depois, com o con­curso dos moto­res de busca e os efei­tos mul­ti­pli­ca­do­res das redes sociais.

Imagine-se, por exem­plo, uma notí­cia nociva para a repu­ta­ção de uma pes­soa, que à altura da publi­ca­ção não levan­tou dúvi­das, mas cujos desen­vol­vi­men­tos pos­te­ri­o­res, não acom­pa­nha­dos pelo jor­nal, con­du­zem a con­clu­sões con­trá­rias ao que se escre­veu. Ou, mais sim­ples­mente, uma infor­ma­ção errada que pas­sou des­per­ce­bida e que por qual­quer razão renasce para uma pro­pa­ga­ção viral, meses ou anos depois, num con­texto dife­rente. Situ­a­ções como essas levan­tam pro­ble­mas éticos que os jor­nais de refe­rên­cia devem estu­dar e deba­ter, pro­cu­rando fixar os melho­res pro­ce­di­men­tos para os enfrentar.

Para o caso de que hoje me ocupo, importa no entanto subli­nhar que o pedido feito por A.B. não deve, de facto, ser aten­dido. Não há motivo válido para que decla­ra­ções pres­ta­das livre­mente a um jor­nal, publi­ca­das de boa fé e cor­rec­ta­mente trans­cri­tas sejam pos­te­ri­or­mente ‘apa­ga­das’. Mesmo que o seu autor nelas não se reveja um ano mais tarde (ou dez, ou vinte), fazê-lo seria aten­tar con­tra a ver­dade e o direito à infor­ma­ção. O edi­tor de pla­ta­for­mas e mul­ti­mé­dia do PÚBLICO, Sér­gio Gomes, explica porquê: ‘Reti­rar o que foi publi­cado parece-me um apa­ga­mento da his­tó­ria (…). O con­texto em que foi publi­cado o depoi­mento deste lei­tor está no tempo, no espaço e nos outros tex­tos que naquela oca­sião foram publi­ca­dos’. Pronunciando-se ‘con­tra a reti­rada de notícias/textos online que se pro­vem cor­rec­tos e res­pei­ta­do­res das nor­mas éticas e deon­to­ló­gi­cas da prá­tica jor­na­lís­tica’, Sér­gio Gomes acres­centa, e eu subs­crevo: ‘Mesmo aque­les [tex­tos] em que se pro­vem erros gros­sei­ros (nome­a­da­mente a nível fac­tual) devem per­ma­ne­cer online com as modi­fi­ca­ções que se impu­se­rem e as notas acerca des­sas modificações’.

Aqui entra­mos no tema, a que vol­ta­rei, das cor­rec­ções a peças dis­po­ní­veis nos arqui­vos on line dos jor­nais, em que se defron­tam hoje duas cor­ren­tes prin­ci­pais: a dos que defen­dem que a detec­ção de erros numa notí­cia arqui­vada deve dar lugar à sua ree­di­ção cor­ri­gida, em nome da repo­si­ção da ver­dade dos fac­tos, e a dos que con­si­de­ram que as peças em arquivo devem ser man­ti­das, em nome da sua inte­gri­dade his­tó­rica, mas acom­pa­nha­das da neces­sá­ria cor­rec­ção. Quer o lei­tor que se inte­ressa pela ética jor­na­lís­tica par­ti­ci­par no debate?

Erros de facto e de forma

O amplo tra­ba­lho que este jor­nal dedi­cou no pas­sado domingo à pri­meira volta das elei­ções pre­si­den­ci­ais em França ficou mar­cado por um erro que não pas­sou des­per­ce­bido aos lei­to­res aten­tos. ‘Na edi­ção de 22 do cor­rente, na página 5, o PÚBLICO (…) informa que Fran­çois Hol­lande pro­mete 1.700 euros de salá­rio mínimo. Na página 7, no comen­tá­rio de Teresa de Sousa, quem faz esta pro­messa é [Jean-Luc] Mélen­chon. Em que fica­mos?’, per­gunta o lei­tor Fer­nando Ribeiro.

Outro lei­tor, Car­los Quei­rós, nota que tam­bém no texto da jor­na­lista Clara Barata, envi­ada a Paris, ‘fica claro que quem pro­põe o aumento do salá­rio mínimo para 1.700 euros é Mélen­chon e não Hol­lande’, em con­tra­di­ção com o que se afirma na legenda de um número des­ta­cado ao alto de uma página: ‘Fran­çois Hol­lande diz que, se ganhar, decreta um aumento do salá­rio mínimo para 1.700 euros’. E acres­centa uma obser­va­ção per­ti­nente: ‘Parecer-me-ia bem que numa peça em que se dá algum des­ta­que a esta ques­tão, viesse nal­gum sítio refe­rido o valor actual do salá­rio mínimo em França, dado impor­tante para, por exem­plo, ava­liar o real sig­ni­fi­cado de uma pro­posta como a de Mélenchon’.

Sem dúvida. O valor actual do SMIC (o salá­rio mínimo fran­cês) situa-se um pouco abaixo dos 1.400 euros. Bru­tos. E quem propôs a subida para 1.700 foi Mélen­chon, já afas­tado da cor­rida, tendo Hol­lande, que nela per­ma­nece, rea­gido no final da cam­pa­nha para a pri­meira volta com a pro­messa de ‘uma pequena subida’ do SMIC (Teresa de Sousa), esti­mada ‘em metade da per­cen­ta­gem do cres­ci­mento’ eco­nó­mico (Clara Barata). Mais uma vez, infor­ma­ções cor­rec­tas foram man­cha­das por um erro no fecho da edi­ção, só expli­cá­vel por um des­leixo seme­lhante ao que, na última quinta-feira, tor­nou pos­sí­vel que saísse ‘cres­ce­ram­ram’ em vez de ‘cres­ce­ram’ num título a toda a lar­gura da página 12. Lamentável.

A cober­tura das elei­ções em França sus­ci­tou uma crí­tica de outro lei­tor, José Car­los Costa, pondo em causa a isen­ção da frase de aber­tura da repor­ta­gem publi­cada no dia 21, em que Clara Barata se refere a Mélen­chon nes­tes ter­mos: ‘O can­di­dato não vai ganhar as elei­ções, mas é o melhor!’. Alega a jor­na­lista: ‘ Essa frase não é uma ade­são minha ao que diz o can­di­dato, é uma forma de ilus­trar o ambi­ente e o que me pare­ceu o sen­ti­mento dos seus apoi­an­tes’. Percebe-se a inten­ção, que o texto con­firma, mas a ‘forma’ esco­lhida para a trans­mi­tir não é acei­tá­vel e jus­ti­fica ple­na­mente a crí­tica do leitor.”