Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Reportagem virou artigo de luxo’

Numa idade em que muitos pares da profissão já penduraram as chuteiras, o repórter Ricardo Kotscho, 58 anos, continua perseguindo a notícia. Ele parece encarnar à perfeição a boutade de outro grande repórter, Joel Silveira, que um dia escreveu: ‘Como todo ser perecível, o jornalista envelhece. O repórter, nunca.’ Prova da incansável atividade desse paulistano descendente de alemães é o tempo que esta entrevista levou para ser realizada: algo em torno de dois meses. Os e-mails encaminhados a Ricardo Kotscho sempre o encontravam no azáfama entre a chegada e a partida para algum lugar. Como resposta, um gentil pedido de desculpas e a promessa de que a entrevista seria concedida mais adiante, quando ele estivesse com sua agenda um pouco mais desafogada. Até que, por fim, uma data xis foi combinada para o envio das respostas. Batata: o deadline foi britanicamente cumprido.

Suas memórias reunidas no livro recém-lançado Do golpe ao planalto – uma vida de repórter oferecem não apenas um importante painel dos últimos 40 anos do jornalismo no Brasil e suas vertiginosas transformações. Os ensinamentos do calejado repórter valem por uma universidade, tamanha a dimensão da experiência de quem nasceu com o jornalismo gravado no DNA. ‘Continuo fazendo o trabalho do mesmo jeito de quando comecei – sem rotina nenhuma, sempre tentando descobrir temas novos, personagens inéditos na imprensa, lugares onde nunca um repórter foi antes’, disse.

Apesar da invejável trajetória, Ricardo Kotscho exibe modéstia: ‘A nossa obra está sempre incompleta porque a melhor matéria é sempre a próxima’ – especialmente nesses tempos em que ‘reportagem virou artigo de luxo, cada vez mais raro’. Como repórter, assinou reportagens antológicas, como a que revelou a existência dos marajás do governo militar, numa época em que expor a verdade no Brasil representava risco de vida. Mas é a busca incessante pela próxima história que o impulsionou a apostar num novo projeto, revelado nesta entrevista: a criação da revista Brasileiros, com previsão de lançamento para o próximo ano. Essa nova empreitada ‘tratará exatamente de pessoas e lugares que não estão na mídia’.

Tendo deixado seu cargo de Secretário de Imprensa no governo Lula antes do furacão da crise política, havia uma expectativa de que Ricardo Kotscho oferecesse informações inéditas sobre o assunto em suas memórias. ‘Quem comprou o livro esperando encontrar bastidores, futricas, fofocas, maledicências, essas coisas tão valorizadas na nossa imprensa hoje, claro que ficou frustrado, e criticou o livro’. Na condição de amigo do presidente Lula, ele sofreu com as revelações do mensalão, mas não perdeu a fé nem na política, nem na profissão que tanto tem honrado. ‘Apesar de todos os problemas que enfrentamos para ver nosso trabalho impresso ou colocado no ar, essa é a melhor profissão do mundo’. A seguir, a entrevista:



***

Em artigo recente para a revista eletrônica NoMinimo, você reclamou das peças que a memória lhe pregou, depois que o livro já estava publicado. Houve algum fato que você gostaria de ter aprofundado mais e, por algum motivo, não o fez?

Ricardo Kotscho – O problema de escrever um livro de memórias é que o autor geralmente já está numa idade meio avançada, quando a memória não ajuda muito. Restam apenas vagas lembranças… De outro lado, quando somos jovens, e a memória ainda é muito boa, não temos tantas histórias para contar. É sempre um desafio de alto risco escrever esse tipo de livro. Porque cada um de nós guarda sua própria versão dos fatos ocorridos, geralmente diversa de pessoas que viveram no mesmo período os mesmos episódios. Antes de começar a escrever o livro, durante um jantar com amigos contemporâneos dos meus primeiros tempos na grande imprensa, procurei ajuda para relembrar alguns fatos. Mas eles acabaram discutindo entre eles, um chamando o outro de gagá porque as lembranças nunca batiam. Então, já que não daria para colocar no livro a versão de cada um, resolvi contar a minha própria história do jeito que a lembrava. Pelo número de pessoas citadas, as queixas até que foram bem poucas. Dezenas de fatos eu gostaria de ter aprofundado mais, além de só me lembrar de muitos outros depois do lançamento do livro – histórias suficientes para escrever outro livro. Assim mesmo, tive que cortar umas cem páginas, a pedido do editor, porque o livro estava ficando muito grande e, portanto, custaria caro demais.

Escrever as memórias lhe deu um sentimento de plenitude ou de que a sua obra pessoal ainda ficou incompleta?

R. K. – Nada que tenha sido realmente relevante na minha vida ficou de fora do livro. Claro que algumas passagens foram mais sofridas na hora de escrever. Tomei muito cuidado para não magoar ninguém, não queria que o livro fosse um acerto de contas. Dentro do humanamente possível, procurei ser fiel ao mesmo tempo aos fatos e aos seus protagonistas. Repórter dificilmente tem um sentimento de plenitude com seu trabalho, qualquer que seja. Sempre que a gente lê o que escreveu publicado no dia seguinte acha que a história poderia ter sido melhor contada. A nossa obra está sempre incompleta porque a melhor matéria é sempre a próxima. No dia em que não for mais assim, é melhor pendurar as chuteiras.

Algumas resenhas do seu livro carregaram na crítica de que você optou por preservar a amizade com Lula. Como você responde a essas críticas?

R. K. – Criou-se uma falsa expectativa de que o livro conteria grandes revelações sobre o governo Lula. Eu sempre falei que não se tratava de um livro sobre o governo, o presidente Lula, o PT, mas não adiantou. Não é um depoimento de um mordomo do palácio que resolve contar suas intimidades. Quem comprou o livro esperando encontrar bastidores, futricas, fofocas, maledicências, essas coisas tão valorizadas na nossa imprensa hoje, claro que ficou frustrado, e criticou o livro. Alguns poucos resenhistas criticaram não o livro que escrevi, mas o livro que gostariam de ter lido e, como não o encontraram, criaram a sua própria versão. Pouco importa o que você escreve: cada um faz a leitura que quer, de acordo com suas preferências e interesses. Mas, definitivamente, este não é um livro político nem sobre políticos: é um livro jornalístico, uma reportagem que conta a vida brasileira das últimas quatro décadas a partir das redações onde trabalhei no período.

Seu livro é um retrato das transformações que o jornalismo no Brasil sofreu nas últimas décadas. Você sente saudade dos velhos tempos?

R. K. – Para não sofrer à toa, a gente só deve sentir saudades daquilo que ainda existe. Redações como aquelas em que trabalhei simplesmente desapareceram. A grande diferença é que antes o jornalismo era um trabalho coletivo movido por alguns ideais comuns, trabalhava-se com prazer e paixão. Hoje é um trabalho como outro qualquer, cada vez mais individualista, silencioso, sem qualquer resquício de idealismo ou de compromisso com o seu país, o seu tempo e a sua gente. A ordem é faturar, brilhar, competir, e isso vale tanto para o profissional como para a empresa.

Você algum dia chegou a imaginar que o jornalismo passaria por modificações tão drásticas?

R. K. – Jamais poderia imaginar que um dia nossos grandes jornais deixassem de cobrir o Brasil – os muitos países que aqui coabitam – para limitar seu trabalho de cobertura praticamente ao eixo São Paulo-Rio-Brasília e, assim mesmo, quase somente aos gabinetes. Na Amazônia, por exemplo, sempre que vou lá encontro com mais jornalistas estrangeiros do que com brasileiros, que agora fazem a cobertura dos conflitos de terra na região por telefone. Aliás, costumo dizer que se cortarem os fios de telefone das redações no dia seguinte não sai jornal. Acabaram com as redes de sucursais e correspondentes que todos os grandes jornais e revistas tinham. Só a Rede Globo, com suas afiliadas, ainda é capaz de fazer uma cobertura verdadeiramente nacional no dia-a-dia, sem ter que mandar enviados especiais quando cai um avião ou acontece alguma outra desgraça. Reportagem virou artigo de luxo, cada vez mais raro. Resultado: vem caindo a circulação dos nossos principais veículos de mídia impressa. A reboque da internet e da mídia eletrônica, jornais e revistas deixaram de ser um artigo de primeira necessidade. Apesar de todo o avanço tecnológico, parecem cada vez mais trazer notícias velhas com gosto de pão amanhecido.

Para muitos escritores e jornalistas, o ato de escrever é um sofrimento. Para você, como é que funciona?

R. K. – Depende do dia. Se você tem uma história boa para contar e está com a cabeça legal, é um prazer. Quando você tem que escrever sob pressão duas ou três matérias por dia, sem tempo para fazer uma apuração decente, como costuma acontecer hoje em dia, claro que é um sofrimento. Não me lembro mais quem disse que jornalista gosta mesmo é de ler a matéria depois de publicada porque sofre muito para escrevê-la.

Qual a sua receita para uma boa reportagem?

R. K. – Não tem receita – e essa é a melhor receita. Cada reportagem tem que ter um tratamento absolutamente original. Nós temos que partir do zero para contar uma história que nunca foi escrita antes daquele jeito. Devemos nos livrar de qualquer idéia pré-concebida sobre o assunto – ao contrário do que acontece hoje, quando os repórteres geralmente já saem da redação com uma tese na cabeça para caçar algumas aspas que a confirmem.

Você escreveu que no início da profissão adorava a falta de rotina, a enorme variedade de temas. Hoje esses fatores ainda o motivam? Surgiram outros?

R. K. – Posso dizer que sou um sujeito de sorte. Já rodei por quase todos os principais veículos da mídia brasileira, tanto a impressa como a eletrônica, e até hoje continuo fazendo o trabalho do mesmo jeito de quando comecei – sem rotina nenhuma, sempre tentando descobrir temas novos, personagens inéditos na imprensa, lugares onde nunca um repórter foi antes. Em outras palavras, fazendo a minha própria pauta. É isso que me motiva a continuar parecendo um foca cada vez que saio para fazer uma reportagem, 42 anos depois de ter escrito a primeira matéria.

Gabriel García Márquez escreveu, num texto muito conhecido, que o jornalismo é a melhor profissão do mundo. Você concorda com ele?

R. K. – Juro que não sabia que essa frase era do mestre Gabriel García Márquez, embora sempre tenha procurado ler tudo o que ele escreve. Em todas as palestras que faço termino dizendo exatamente isso: apesar de todos os problemas que enfrentamos para ver nosso trabalho impresso ou colocado no ar, essa é a melhor profissão do mundo. O José Hamilton Ribeiro, outro mestre da minha geração, costuma citar um jornalista italiano, cujo nome ele não lembra, que dizia mais ou menos isso: ‘Ser jornalista é difícil, mas ter que trabalhar em qualquer outra coisa é muito pior…’.

No livro, você escreveu que ‘o sonho de todo jornalista é fazer um jornal novo’. Suponha que você teria essa oportunidade. Como seria esse jornal?

R. K. – Olha só que coincidência: nesse exato momento, junto com dois colegas (Hélio Campos Mello e Nirlando Beirão), que têm a mesma idade e tempo de serviço do que eu, estou trabalhando no projeto de uma revista mensal de reportagem, inspirada na antiga Realidade, a melhor publicação que a imprensa brasileira já produziu. Vai se chamar Brasileiros e tratará exatamente de pessoas e lugares que não estão na mídia. Deve sair no início do próximo ano. Em vez de ficar reclamando da vida e dos salários, carpindo a saudade dos ‘velhos tempos’, resolvemos fazer como o Mino Carta: vamos criar nossos próprios empregos.

Em suas memórias, você não esconde o desapontamento com o jogo do poder. Neste sentido, a experiência de secretário de imprensa foi mais decisiva que a de repórter?

R. K. – São experiências bem diferentes, embora ambas nos ensinem a entender melhor não só o funcionamento do poder no país, mas também os nossos limites tanto como funcionários do governo quanto como jornalistas. No livro falo um pouco sobre esse difícil relacionamento do governo com a imprensa porque são duas instituições de naturezas diferentes, com tempos e interesses diferentes. Aos que me perguntavam como estava minha vida em Brasília costumava dizer que só tinha dois problemas no meu trabalho: a imprensa e o governo. Como ficava no meio, tentando conciliar as partes, acabava tomando tiros dos dois lados. Para alguns jornalistas, esse negócio de quarto poder é pouco – eles se imaginam o primeiro poder, primeiro e único, com direito a denunciar, julgar e condenar qualquer membro ou ação do governo. Se alguém do governo reclama, é porque quer acabar com a liberdade de imprensa. Espero sinceramente que no segundo governo do presidente Lula haja um desarmamento dos espíritos – pelo menos dos espíritos… – para acabar com esse clima de crise permanente em que vivemos no último ano e meio, sempre a meio passo do fim do mundo.

Traduzindo o choque provocado pelas notícias sobre o mensalão, você escreveu que se sentia ‘como alguém que havia entrado numa montanha-russa muito tempo atrás e, ao descer, já não soubesse onde estava’. Você consegue manter o otimismo quanto ao futuro político do País?

R. K. – Consigo. Assim como continuo achando o jornalismo a melhor profissão do mundo, apesar de tudo, também continuo achando o Brasil o melhor lugar do mundo para se viver e trabalhar, apesar de tudo. Por isso, digo sempre nas palestras aos estudantes de jornalismo que é muito bom ser repórter no Brasil porque aqui ainda está quase tudo por se fazer e tem muita história para contar, ao contrário de outros países mais ricos e com menos problemas, onde tudo já foi feito e contado. Para mim, nascer no Brasil e ganhar a vida como repórter foi uma benção que agradeço a Deus todos os dias. Não quero outra vida.

Se fosse definir o repórter Ricardo Kotscho numa palavra, qual seria?

R. K. – Um velho sonhador que nunca tirou os pés do chão.

******

Jornalista, editor do Balaio de Notícias