Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Miragem do celular é fruto da releasemania

 

“O sistema caiu, volte amanhã”; “Desculpem, ouvintes, perdemos a ligação”; “O meu provedor não fala com o teu”.

Enquanto O Globo celebra as excelsas virtudes do jornal impresso, assistimos na semana passada ao início do fim da Miragem do Celular: a intervenção da Anatel no mercado de telecomunicações proibindo as principais operadoras de vender reluzentes smartphones e habilitar novas linhas deverá acabar com a enorme bolha, enganosa como todas, da comunicação digital [ver “Reclamações levam Anatel a suspender venda de linhas da TIM, Oi e Claro” e “Para especialista, rede não seguiu alta das vendas”].

Vitória dos consumidores que colocavam as operadoras de telefonia móvel como alvo preferencial das reclamações. Vitória do modelo de agências reguladoras independentes, recusado tanto pelos estatistas da direita como da esquerda.

Deveria ser também vitória da mídia impressa, teoricamente zeladora do interesse público. Não foi. A mídia impressa abomina intervenções e regulações no mercado – qualquer mercado.

38 anos depois

A verdade é que a própria Anatel estava atrasadíssima no cumprimento de suas obrigações. Foi advertida pelo Tribunal de Contas da União quando se descobriu que atendeu apenas 27% das determinações e só implementou 15% das recomendações feitas por uma auditoria do tribunal há seis anos, em 2006 [ver, no Valor Econômico (23/7), “Em relatório, TCU critica lentidão da Anatel” (para assinantes)].

O “aparelhamento” pelo Executivo da máquina das agências reguladoras retira delas não apenas sua ferramenta básica – a autonomia – como a eficiência para cumprir suas missões técnicas.

A mídia impressa, que fez do celular o produto com mais unidades vendidas no país, sentiu a cutucada da agência. Ao se transformar na mais eficiente plataforma vendedora de telemóveis, seria lógico que cuidasse com a mesma dedicação do atendimento aos consumidores desiludidos com promessas não atendidas. Não foi o que aconteceu. Nossa mídia é hoje uma usina de releases – e as colunas, seções e cadernos de novas tecnologias, na sua maioria, transformaram-se em pontos de venda e não postos de informações corretas.

Na manhã de segunda-feira (23/7), na rádio CBN-SP, a apresentadora ficou dez minutos embasbacada com a conversa da diretora de vendas do aplicativo Wave, esquecida de que como jornalista deveria exigir explicações de uma empresa que oferece um programa de detecção de radares de trânsito e também dá avisos sobre a movimentação de blitzen policiais.

A mídia e seus agentes, os mediadores, embarcaram de forma infantil e simplista na onda das maquinetas infalíveis, incapazes de diferenciar o que é uma ferramenta de comunicação previamente condenada a obsolescência de um veículo informativo periódico, sustentáculo perene de uma sociedade pluralista.

O contundente artigo de Merval Pereira, em O Globo (23/7, pág. 13), sob o título “O papel do jornal” afirma que “os jornais ainda são a fortaleza maior do jornalismo de qualidade”.

Bravo, Merval! Isso foi escrito em 1974 num livrinho com o mesmo título, quando a grande imprensa sofria um dos seus periódicos surtos suicidas ao enterrar os jornais diante das maravilhas da TV transistorizada, colorida, via satélite.

O importante é vender

O jornalismo de qualidade só poderá florescer quando a releasemania for erradicada. A Miragem do Celular foi imposta por um maciço e diabólico sistema de mensagens que converteu aqueles que seriam os fiscais de serviços de telecomunicações eficientes em escravos dos seus vícios.

Ser moderno não é ficar pendurado o dia inteiro num celular, ao contrário: ser moderno é perceber que o celular, tal como o “telegrapho” [sic], há mais 150 anos, não foi suficiente para comunicar os conceitos elementares de respeito humano, tolerância e liberdade.

No banco dos réus das agências reguladoras não devem estar apenas as operadoras de telefonia, nem apenas os provedores de acesso à internet que até hoje não conseguiram aproximar-se do que efetivamente significa a banda larga. Provedores de conteúdo como a NET estão levando ao público infantilizado promessas de conhecimento que jamais conseguirão atender.

Embora tardia, essa intervenção da Anatel no mercado das telecomunicações & vizinhanças poderá dar um pouco mais de densidade aos programas de mobilidade social em curso.

O tal “sistema” cai a toda hora no guichê do banco, no aeroporto, na delegacia policial ou no fórum porque não foi planejado para dar certo: quando vender é mais importante do que preparar-se para prestar um bom serviço, o resultado inevitável é o caos. Ou a intervenção.