Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo que reescreve a história

“Todo jornalismo deve ser investigativo por definição.” (Gabriel García Márquez, em 1996, na 52ª Assembleia da Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), em Los Angeles, falando sobre “amelhor profissão do mundo”)

“Como um argentino crescendo nos Estados Unidos e na Irlanda, eu era hostilizado pelos colegas de escola: ‘É onde todos os nazistas estão’, diziam, referindo-se à Argentina”.Quem conta essa passagem de sua adolescência, em recente entrevista ao Boston Review (“Political Hatred in Argentina” – “Ódio político na Argentina”, em tradução livre, em 17/02/2014), é o jornalista e pesquisador Uki Goñi, 61 anos, correspondente do jornal britânico The Guardian e autor do best-seller A Verdadeira Odessa – o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón.

Lançado em 2002 (The Real Odessa, em inglês), o livro demandou seis anos de pesquisas e levou o autor a cidades como Bruxelas, Berna, Berlim, Londres, Maryland (EUA), além da própria Buenos Aires. Vasculhando arquivos oficiais, como os da Cruz Vermelha Internacional, consultando documentos confidenciais, inclusive informes da CIA (central de inteligência americana), e buscando testemunhos que comprovassem a existência de uma organização de resgate de nazistas, Goñi deparou com o que ele definiu de a “verdadeira” Odessa, em alusão ao romance O dossiê Odessa, do escritor inglês Frederick Forsyth, publicado há mais de 30 anos.

Guardando semelhanças com a ficção (Forsyth foi correspondente da agência Reuters e a suposta Odessa seria a sigla de Organisation der ehemaligen SS – Angehörigen – Organização de Antigos Membros da SS), o jornalista argentino descobriu uma estrutura bem planejada que não somente abrigava homens da SS (Schutzstaffel – a tropa nazista de Hitler), mas criminosos de guerra de língua francesa e fascistas croatas. Uma rede operativa que contou com o beneplácito da ditadura peronista (1946-1955) e se relacionava com setores do Vaticano, agências de inteligência dos Aliados e grupos secretos argentinos.

Isolamento e dificuldades

A partir de uma reportagem escrita em 1996 para o Sunday Times de Londres sobre a história de um passaporte encontrado na Patagônia que teria sido usado por Martin Bormann, o segundo homem mais importante do III Reich depois de Hitler, em sua fuga para a América do Sul, Goñi deu início às suas pesquisas, que redundaram em 22 mil páginas de documentos e 260 entrevistas (uma delas com Wilfred van Oven, secretário particular de Joseph Goebbels, ministro de propaganda de Hitler), devidamente digitalizadas pelo Museu do Holocausto de Washington (USHMM) e disponíveis para consulta pública desde 2012. Porém, passada mais de uma década de suas revelações, o silêncio de seus compatriotas é um fato concreto e constrangedor que incomoda o jornalista, que vive em Buenos Aires desde 1975.

“O livro me fez ficar sem amigos na Argentina. Absolutamente sem amigos. Para se ter uma ideia, sou constantemente procurado por acadêmicos e estudiosos dos Estados Unidos e da Europa. Falei em universidades americanas, na Alemanha, em Manchester (Inglaterra) e Salzburgo (Áustria). Mas aqui… nada. Nunca fui convidado para falar a estudantes de história em qualquer lugar do país e nenhuma universidade ou pesquisador da Argentina se aproximaram de mim. E isso é meio chocante”, desabafa Goñi à colega Jessica Sequeira, do Boston Review. O jornalista acredita que a exposição dos documentos que mudaram a história oficial produziu uma espécie de isolamento público, apesar das pessoas estarem conscientes da importância de seu trabalho. Goñi ressalta ainda que os acessos aos arquivos na Argentina “foram difíceis” (as pastas com dados sobre imigração, por exemplo, foram queimadas em 1996), diferentes das condições existentes nos outros países consultados.

Segredo de estado

Com edições em inglês, espanhol, alemão, italiano, esloveno e português, o livro serviu de base aos documentários Rise of the Fourth Reich (Ascensão do IV Reich), do History Channel (2009), e Elusive Justice: The Search for Nazi War Criminals (Justiça enganosa: A busca por criminosos de guerra nazistas, em tradução livre), de 2011, provocando reações na Itália, Holanda e na própria Argentina, a partir de registros envolvendo a arquidiocese de Gênova, a companhia aérea KLM e a Casa Rosada, entre outras instituições e órgãos governamentais, na preparação e operacionalidade das rotas de fuga dos nazistas para a Argentina.

Suspeita-se que centenas de colaboradores nazistas de várias nacionalidades fugiram da Europa para a Argentina entre 1945 a 1955 (entre 6 a 8 mil “refugiados”, de acordo com alguns historiadores), dentre eles 180 criminosos de guerra (30 alemães, 50 croatas e 100 franceses), segundo um informe da Ceana (Comisión para el Esclarecimiento de las Actividades del Nazismo en Argentina), que funcionou de 1997 a 1999 sob os auspícios do governo argentino. Goñi, porém, contesta a cifra e afirma que suas investigações identificaram 300 criminosos de guerra (incluindo austríacos, belgas, romenos, húngaros, noruegueses), muitos deles já condenados que se abrigaram no país.

Sabe-se que tanto Josef Mengele, conhecido como o “anjo da morte” por transformar prisioneiros em cobaias humanas nos campos de concentração, como Adolf Eichmann, o responsável pela “solução final” que implicaria na eliminação dos judeus da Europa, ambos entraram na Argentina com passaportes expedidos pela Cruz Vermelha Internacional – o primeiro em 1949 e o segundo em 1950.

Por outro lado, uma circular emitida pela chancelaria argentina em 12 de julho de 1938 (Diretiva 11) e enviada a todos os seus consulados e embaixadas proibindo a entrada de judeus no país, funcionou como um decreto de morte para 200 mil judeus que ficaram à mercê de Hitler depois da anexação da Áustria pela Alemanha. Pior, 100 judeus de cidadania argentina foram impedidos de retornar à Argentina. O documento que levava o carimbo de “estritamente confidencial” foi descoberto nos arquivos da embaixada argentina em Estocolmo, em 1998, pela historiadora Beatriz Gurevich, que fez parte da Ceana. Entretanto, por desentendimentos com a comissão, a pesquisadora demitiu-se e o documento considerado “segredo de estado” só veio a público anos mais tarde, com a publicação do livro de Goñi, a quem Gurevich enviou uma cópia. Somente em 9 de junho de 2007 – após 67 anos de vigência secreta – o sigiloso memorando foi revogado em cerimônia na Casa Rosada presidida por Néstor Kirchner, atendendo petição encabeçada pelo jornalista.

Obediência cega

Neto do embaixador Santos Goñi – que no início da década de 1940 servia no consulado da Bolívia –, o pesquisador revela no livro que durante os anos em que seu avô ficou em La Paz, de 1939 a 1944, o diplomata teve de lidar com um grande número de pedidos de judeus da Europa que queriam entrar na Argentina pela Bolívia em razão das dificuldades para a obtenção de vistos na Alemanha. Contudo, devido a esse documento que vedava a entrada de judeus no país, o embaixador negou os vistos a todos os fugitivos em obediência às ordens da chancelaria argentina. Estes, desesperados, tentavam atravessar a fronteira da Argentina clandestinamente, a pé, e muitos foram roubados, assassinados ou abandonados pelos guias que contratavam para a travessia.

Uma das situações que impressionou o avô foi o caso de uma bela jovem que após oferecer as suas joias e implorar pelo visto, tirou a roupa e ficou nua frente a ele. Esta e outras histórias aflitivas contadas por seu avô – que morreu em 1955 – sobre os judeus que se lançavam à temerária aventura de atravessar a fronteira a partir da Bolívia, foram confirmadas pelo escritor ao encontrar documentos a respeito no subsolo do Ministério do Interior em Buenos Aires. Goñi reconhece que houve um fator muito pessoal no seu pedido de revogação da Diretiva 11 porque seu avô foi um dos muitos diplomatas de carreira que aplicaram a ordem, “imbuído de um senso de obediência à moda antiga”.

Na conclusão de seu livro, Goñi afirma que decidiu escrever A Verdadeira Odessa por estar “exasperado” pela falta de justiça contra os crimes cometidos pela ditadura (1976-1983), quando “20 mil pessoas desapareceram nos campos de morte da Argentina” (no período, ele trabalhou no Buenos Aires Herald, de língua inglesa), e também “pelos fatais atentados a bomba contra a embaixada de Israel (1992) e o centro judaico Amia, em Buenos Aires, em 1994 – o ataque mais mortal contra um alvo judeu desde o Holocausto, matando 86 pessoas”. Em 1998, o autor já tinha se iniciado no tema ao publicar Perón y los alemanes, que não provocou o debate que ele esperava. “Vi-me obrigado a cavoucar o passado para traçar um gráfico do longo aprendizado dos argentinos no ato de fechar os olhos diante do mal.”

Enfim, como diria Márquez sobre o ofício do jornalista, “a melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor”. Acrescentando-se que o jornalismo do século 21, com suas investigações mais apuradas, tem feito esse trabalho de reescrever a história de fatos importantes repercutidos pela mídia como reais e verdadeiros e que hoje já se revelam equivocados ou falsos em seu foco e abrangência.

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Sheila Sacks é jornalista