Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crônicas sem rugas

O jornalista Humberto Werneck cansou-se do carro e do trânsito da cidade e transformou-se num andarilho. A caderneta, no bolso desde os tempos de repórter, ganhou uma importância diferente desde que começou a se aventurar pela crônica e assumiu o compromisso de escrever uma por semana para o Caderno 2. “Alguém já disse que a crônica é um gênero a pé. Virei um aspirador de inspiração. Uma coisa pequena, mesmo não sabendo se ela vai ter serventia, eu anoto. Se veio, é porque tinha alguma razão para ter vindo. Depois junto isso com outras coisas e daí pode surgir uma crônica”, diz.

Werneck lança hoje [22/5] Sonhos Rebobinados, com seleção de 54 textos feita a partir de uma lista de centenas de crônicas publicadas – apenas uma delas não saiu no Estado. O primeiro critério para essa escolha foi o da durabilidade. “Vi aquelas que não tivessem sido consumidas pela circunstância, que não tivessem rugas fortes e que ainda dissessem alguma coisa ao leitor”, explica. O autor reconhece nelas uma pitada de humor e de memorialística – mas sem saudosismos, frisa: “Não me sinto como ‘Ah, que saudade da aurora da minha vida’. Aí eu estaria dizendo que tudo foi bom. E nem tudo foi bom. Era bom, era ruim, e era péssimo. É um olhar para trás, mas sem pesar. Sou um guardador de lembranças ao mesmo tempo em que vivo ligadíssimo no que acontece hoje”, diz.

Ao reunir esses textos em livro, acabou fazendo um inventário “não deliberado” do que viveu. Uma entrevista feita no passado, dois silenciosos encontro com Jean-Paul Sartre pelas ruas de Paris e o apartamento em que viveu na cidade, o discurso de Fidel Castro que assistiu em Cuba são algumas das lembranças evocadas nas crônicas. “Pode ser da idade, mas sinto essas coisas vazando semana a semana no que escrevo.”

Do jornalismo para a crônica

A crônica, porém, diz Werneck, é “muito menos um assunto do que uma pegada, um olhar”. E quanto à velha discussão sobre onde se encaixa o gênero, ele comenta. “Na crônica, a maneira de escrever é mais importante do que a coisa que está sendo dita. E quando a maneira de dizer é tão ou mais importante que a coisa dita, você tem literatura. Do contrário, Grande Sertão: Veredas seria a história de um vaqueiro travesti.” Ele completa: “E é literatura até pela exclusão, já que não é editorial, não é jornalismo.”

Ele vê o cronista como uma pessoa que consegue estabelecer uma relação de cumplicidade com o leitor, e que inicia, com aquele texto, uma boa conversa com seu interlocutor. “O bom cronista dá ao leitor a sensação de que aquilo foi escrito para ele.” O que é diferente do texto de um colunista. “Quando leio uma coluna, me beneficio daquela leitura, mas tenho a impressão de que o cara está falando de cima de um caixotezinho. O cronista me dá a sensação de estar sentado comigo no meio-fio.”

Entre suas preferidas, está “Meu Quixote”, sobre o pai. Há, também no volume, “Cemitério Virtual”, escrita quando observou que uma pessoa morre, mas segue viva no Facebook. Quando se tornou avô, se deu conta de que não havia uma palavra para designar sua nova condição, como paternidade ou maternidade, e escreveu sobre o tema em “Papo de Avoado”. “Paixão Encadernada” aborda as marcações que fazemos em nossos livros. Esses são alguns exemplos de crônicas publicadas neste terceiro volume de Werneck – o segundo com textos feitos para o Estado. “Tudo é assunto, e às vezes o assunto é nada”, resume.

Werneck, jornalista, cronista, biógrafo e mineiro que vive há 44 anos em São Paulo, tem como mestres Rubem Braga, Paulo Mendes Campos – de quem gosta cada dia mais –, Fernando Sabino e Antonio Maria. “Eles pegam uma coisa aparentemente insignificante e dela extraem algo interessante e bom de ler”, comenta. A transição do jornalismo para a crônica foi casual. “Mas se for ver bem, ela estava prevista. Fui criado na fase esplêndida da crônica e era natural que ela ficasse em mim. Eu comprava a revista Manchete, que tinha quatro cronistas, sendo que três deles eram Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga. Era o tempo também de Drummond, Bandeira, Nelson Rodrigues, ou seja, uma floração enorme.”

******

Maria Fernanda Rodrigues, do Estado de S.Paulo