Friday, 13 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A EBC e os desafios para a comunicação brasileira

A Empresa Brasil de Comunicação – EBC – completou em outubro quatro anos de existência. Muitos brasileiros sequer saberão do que se trata, já que as emissoras administradas pela EBC ainda possuem pouca audiência nacional, se comparadas ao sistema comercial. Mas talvez a maioria reconhecerá alguns dos trabalhos da EBC, como a Voz do Brasil ou o Café com o Presidente, realizados pela EBC Serviços – uma parte da empresa que presta serviços ao governo.

A constituição de um sistema público de radiodifusão no Brasil é assim: cheio de mas, entretantos e todavias. Por exemplo: a EBC é uma empresa pública que surgiu para realizar um novo serviço, o de radiodifusão pública, mas que para isso precisou herdar antigas estruturas e concepções, editoriais e legais de uma outra estatal, a Radiobrás. Outro exemplo: a EBC luta para manter sua autonomia e independência frente ao governo, mas que precisa garantir dentro do próprio Executivo uma fatia orçamentária para sua sobrevivência.

É fato inegável que a criação da EBC representou um avanço na definição de uma mídia pública no Brasil, e com isso abriu-se uma pequena brecha para se exigir a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado de comunicação, como previsto há duas décadas pela Constituição Federal. “A lei que cria a EBC avançou ao pensar o sistema público em nível federal, ao conceber um fundo para fomento, um conselho da sociedade civil, ao estimular a produção independente regional”, reflete Gésio Passos, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Mas é fato também que a composição da emissora reuniu elementos antagônicos e de difícil compreensão, que podem representar limites para a implantação de uma empresa pública de comunicação, em seu sentido mais autônomo e democrático.

Quadro caótico

Para o atual diretor-presidente da EBC, Nelson Breve, falar do breve histórico da EBC é como relatar Ilíada e Odisseia, os poemas épicos de Homero sobre as batalhas em Tróia e o conturbado retorno de Ulisses à Ilha de Ítaca. Tereza Cruvinel, que ocupou o cargo de diretora-presidente até outubro deste ano, foi quem esteve à frente da construção das condições legais e materiais para o funcionamento da EBC. “Ela venceu Ilíada, mas ainda temos Odisseia pela frente”, afirma Breve. Nascida 60 anos depois das mídias comerciais, a empresa ainda mantém o propósito de romper o paradigma da comunicação brasileira, retirando-a do campo mercadológico e desafiando a sociedade a repensar o modelo de comunicação vigente.

Mas após quatro anos de existência, a EBC enfrenta um momento delicado, particularmente por conta das discussões entre a diretoria e o Conselho Curador sobre a permanência de programas religiosos na grade de programação. O novo diretor-presidente afirma existir apenas divergências de opiniões, resolvidas com aprofundamento de diálogo. Na quarta-feira (23/11), durante a próxima reunião do Conselho, o debate volta à tona e envolvendo um tema até então muito caro para a democracia brasileira: a relação entre política, igreja e comunicação. A presidente do Conselho, Ima Célia Guimarães Vieira, analisa que as divergências de opinião “revelam que o órgão amadureceu muito nestes quatro anos, enfrentando temas de notória delicadeza com cuidado e transparência. Temos a convicção que o resultado final desse debate será um marco para a comunicação pública”.

Para avaliar os quatro anos da Empresa Brasil de Comunicação, é preciso refletir sobre o paralelismo legal vigente no Brasil, de onde a atual composição da EBC é fruto direto. De acordo com a Lei 11.652/2008, a empresa é vinculada a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, tem a União como acionista única e deve ser a gestora do sistema público de radiodifusão. O objetivo ainda está longe de ser alcançado, muito pela dificuldade de administrar o caótico quadro das diversas emissoras públicas, que possuem diferentes regulamentações e são operadas por agentes políticos distintos – entes estaduais e ente federativo – sempre atrelados às mudanças de governo. Existe um quadro incerto nas normativas sobre comunicação no Brasil, que de certa forma sempre priorizou a instalação de emissoras comerciais, em detrimento do caráter público, amplamente instaurado em países europeus, por exemplo.

Financiamento, um desafio

A complementaridade dos sistemas público, estatal e privado, estabelecido pela Constituição, nunca foi regulamentado e as outorgas são dadas de acordo com outras categorias (comercial, comunitária e educativa). “Existe uma larga sobreposição de legislações, não existe nem mesmo um padrão jurídico para as emissoras públicas. É necessário organizar o sistema e ter a Constituição Federal como orientador”, afirma o representante do Intervozes.

A EBC gerencia a TV Brasil (fruto da junção da TVE Rio de Janeiro, TVE Maranhão e TV Nacional de Brasília), oito emissoras de rádio, uma radioagência, uma agência de notícias na internet (Agência Brasil) e a TV Brasil Internacional. Pela Lei, sancionada em abril de 2008, a EBC ficou responsável também em gerenciar os canais de comunicação governamental, através da EBC Serviços. Para Passos, “o problema é que na gestão da EBC não se consegue ter uma distinção com a EBC serviços, que compartilha a infraestrutura, o administrativo e os recursos humanos”.

Para o público, um dos diferenciais mais aparentes da EBC é a ausência de comerciais e venda de espaços publicitários nos programas. Para a manutenção da EBC, a lei estabeleceu um recurso vindo da Contribuição de Fomento à Comunicação Pública, composto a partir de tributação de atividades das empresas de telecomunicações. Mesmo não representando uma nova taxação, as empresas de telefonia moveram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o fundo e, desde então, depositam o valor em juízo, que hoje chega a R$ 700 milhões. “Vamos continuar tentando negociar a retirada desse recurso judicial, pois se trata de empresas que faturam centenas de bilhões de reais por ano e poderiam contribuir com esse projeto de construção da cidadania”, afirma Breve sobre a situação. Mas mesmo que a contribuição chegue ao seu destino, a questão do financiamento seguirá um desafio a EBC, uma iniciativa de altos custos e que, para ser um agente transformador da sociedade, precisa estar acima dos contingenciamentos orçamentários dos governos.

Recursos contra a decisão do Conselho

Existem muitos pontos positivos que podem ser revelados ao se pensar sobre a trajetória da EBC. Ela é, por exemplo, quem mais exibe o cinema nacional de acordo com a Agência Nacional de Cinema. É a demonstração de que uma empresa pública deve estar mais preocupada com a relevância de sua programação do que com sua audiência. Por outro lado, o modelo implantado e a herança herdada pela EBC criam diferentes realidades dentro de um mesmo espaço.

Apesar de lutar pela autonomia editorial frente ao governo, a relação com o Executivo fica evidente ao ter o diretor-presidente e diretor-geral indicados diretamente pela presidência da República. O governo ocupa também a maioria das cadeiras de dois dos três conselhos: o de Administração e o Fiscal. Na prática, a decisão de onde gastar o orçamento e a responsabilidade de fiscalização ficam a cargo de ministérios e secretarias, enquanto o terceiro conselho, o Curador – composto por 22 membros, sendo 15 da sociedade civil – seria o responsável por zelar pelo conteúdo e programação.

Em março deste ano, quando o Conselho Curador votou pela substituição das missas e cultos transmitidos pelos veículos da EBC – que ocupam 2he45min da programação da TV Brasil e da Rádio Nacional de Brasília – a EBC passou a enfrentar um momento delicado, onde declarações públicas da ex-diretora-presidente indicaram uma clara divergência quanto ao papel do Conselho. Cruvinel afirmou na época que “conselho não é gestor da grade” e que mudanças eram necessárias na composição do mesmo, para garantir que ele não estivesse mais preocupado com a gestão do órgão. A decisão do Conselho, por outro lado, estava pautada em outro instrumento de participação social, uma consulta pública que reuniu 141 contribuições sobre o tema. A arquidiocese do Rio de Janeiro e a Igreja Batista de Niterói entraram com recursos contra a decisão e a Justiça Federal decidiu pela manutenção da programação na emissora pública. Reações também surgiram no Legislativo: os senadores Marcelo Crivella (PRB/RJ), Lindbergh Farias (PT/RJ) e Edison Lobão Filho (PMDB/MA) protocolaram um decreto legislativo que susta a decisão do Conselho, apoiando a permanência da programação.

Dez propostas

Para o atual diretor-presidente da EBC, a situação não criou pedras no caminho entre diretoria executiva e Conselho. “Houve divergência de opiniões apenas em relação às atribuições do Conselho, que foi criado para ser uma espécie de consciência crítica da programação e dos conteúdos distribuídos pelos veículos de comunicação da EBC”. Mas o debate sobre o modelo institucional e o papel do Conselho continua. “O papel do conselho deveria ser ampliado, e não simplesmente revisto. Temos que fortalecer, pensar em formas de que a sociedade participe da decisão de quem ocupa a presidência da EBC, por exemplo”, afirma Gésio.

Há dois anos, o Conselho Curador passou por mudanças substanciais, com substituição de parte de sua composição originária – indicada pelo ex-presidente Lula e sem a definição de critérios objetivos. Durante a última renovação de conselheiros, ocorrida em 2011, o Conselho definiu um método mais democrático, com a composição de uma lista tríplice a partir dos mais indicados pela sociedade civil através de uma consulta pública. A movimentação indica um amadurecimento para a atuação do Conselho, mas ainda sem garantia formal de que os mais indicados serão os escolhidos pela presidência. Sobre os próximos objetivos do Conselho, Ima Vieira afirma que deve trabalhar para “ampliar e dar eficiência aos instrumentos de diálogo com a sociedade, pois esse diálogo é a essência da comunicação pública”.

Em resposta ao debate sobre os programas religiosos e pelos quatro anos da EBC, a sociedade civil elaborou uma carta com dez propostas para a estatal, assinada por 51 entidades de todo o país. Os pontos abrangem questões como gestão financeira, infraestrutura, programação, gestão política, audiência, entre outros.

Antigos desafios e novas experiências

A convergência entre a sociedade civil em torno da importância da EBC é um fato crucial para o campo da comunicação no Brasil. Até 2016, todos os canais deverão obrigatoriamente migrar para a TV Digital, o que pode representar um salto para a EBC em termos de audiência. “Trata-se de um momento de transição ideal para assegurar o sucesso deste projeto”, afirma Breve. Um operador de rede digital significa desenvolver a infraestrutura que irá difundir os sinais digitais para a EBC e para os outros canais públicos interessados.

Com isso, a era digital pode ser uma oportunidade para a EBC se equiparar, em termos de alcance ao público, ao sistema comercial. A transição depende ainda do modelo que será escolhido. No horizonte, duas perspectivas possíveis: uma parceria entre a empresa pública e Telebrás ou através de uma parceria público-privado. A Telebrás já se mostrou disposta em firmar parceira por ter rede de fibra ótica em 80% das localidades previstas pela EBC, mas ainda seria preciso alcançar por satélite as demais áreas. Mas dentro do governo ainda existe quem defenda a PPP, e parece que o tema não foi completamente definido.

A sociedade civil aponta para a necessidade da EBC aproveitar a transição para o digital para convergir os canais públicos distribuídos pelo país. Existem ao todo nove canais reservados para a comunicação pública pela Anatel para a nova era digital. E com isso, após quatro anos de existência, os antigos desafios somam-se as necessárias novas experimentações na comunicação pública. Manter programação alinhada com o princípio educativo e cultural, investir para a implantação de um Operador Único de Rede, garantir autonomia financeira, consolidar-se perante um sistema comercial fortemente estruturado no imaginário brasileiro e ainda ser uma experiência exitosa na comunicação pública. Ou seja, repensar o público e ressignificar a comunicação dentro de um novo sentido de sociedade.

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[Laura Bregenski Schühli, do Observatório do Direito à Comunicação]