Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

A fábrica de imagens

No dia 8 de agosto de 1990, às seis horas da manhã, oito ônibus estacionaram na capital do Rio Grande do Sul, desembarcando 400 colonos sem-terra, que trataram de usar os canteiros da Praça da Matriz para montar mais um de seus acampamentos de protesto. Poucas horas depois, esta praça, onde se erguem as sedes do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário e Eclesiástico deste estado, tornou-se cenário de uma verdadeira batalha campal entre colonos sem-terra do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e soldados da Brigada Militar (nome da PM gaúcha). A cidade de Porto Alegre levou um susto. O conflito espalhou-se até a Rua Jerônimo Coelho e chegou ao cruzamento da Rua da Praia com a Borges de Medeiros, a chamada ‘Esquina Democrática’. Houve um tumulto. Um ou dois colonos (como são majoritariamente conhecidos os ‘sem-terra’ deste estado) saíram feridos à bala na perna, a colona Elenir Nunes levou um tiro no abdômen e um policial, Valdeci de Abreu Lopes, levou um corte no pescoço e morreu. Muitos dos sem-terra que fugiram da Praça da Matriz abrigaram se na Prefeitura da capital, que ficou cercada por policiais militares por mais de 11 horas, sob ameaça de ser invadida. Centenas de manifestantes civis passaram todo esse tempo de braços dados, fazendo um cordão em frente aos brigadianos. Depois de difíceis negociações, chegou-se a um acordo para transportar os sem-terra até um local, onde testemunhas identificariam os assassinos do PM. Ao todo, 12 colonos foram inicialmente indiciados e denunciados pelo Ministério Público. Dois anos depois, seis foram condenados pelo ‘golpe de foice que degolou’ o policial. Entre eles, a colona que foi ferida por Valdeci de Abreu Lopes.

Esse episódio, que ficou conhecido como ‘conflito da Praça da Matriz’, é um capítulo extraordinário da luta pela reforma agrária no Brasil, pois promoveu uma ruptura no cotidiano de Porto Alegre, cujos cidadãos assistiram ou participaram de momentos referentes ao conflito e foram receptores de discursos dos meios de comunicação de massa, cujas informações dominaram o presente daquele fatídico 8 de agosto. Pela primeira vez, uma luta que vinha se desenrolando quase que despercebida no interior, irrompera nos domínios da cidade com a força dos eventos traumáticos, produzindo comoção coletiva.

Por esta razão este episódio até hoje ressoa – mesmo que vago – na memória, onde assume tons fortes. Ao se remeter a ele a sociedade gaúcha ainda é dividida. Não há meio tom. Alguns condenam os colonos; outros, a Brigada Militar, revelando com isso, sua tonalidade política, ou melhor, o tipo de discurso que a sustenta. Talvez não exista evento mais paradigmático do que esse conflito da Praça da Matriz para explicitar os significados em luta pela reforma agrária, tão intrincadamente comprometidos com os valores que contribuem para a permanência de determinadas estruturas de dominação ou que buscam transformá-las.

Ao contrário de outros momentos em que os sem-terra foram vítimas evidentes, um golpe no pescoço desferido por um daqueles acampados – que fugia de brigadianos desde a Praça da Matriz – ofereceu uma oportunidade singular para compreender e analisar um processo de construção social de sentido vinculado à questão da distribuição da propriedade da terra no Brasil, cuja concentração fundiária representa um ‘nó’ estrutural secular e marca profundamente a injusta face social do país.

Divisor de águas

A proposta deste trabalho é realizar um resgate do processo social que construiu as versões que se digladiaram na luta simbólica desencadeada a partir do conflito da Praça da Matriz. A luta simbólica está presente em qualquer luta política, que também no caso da luta pela reforma agrária, é ao mesmo tempo teórica e prática, ‘pelo poder de conservar ou transformar o mundo social, conservando ou transformando as categorias de percepção deste mundo’ (Bourdieu, 1989:142). De acordo com Bourdieu, categorias de percepção são estas ‘estruturas invisíveis que organizam o percebido, determinando o que se vê e o que não se vê’ e que ‘são produto da nossa educação e da nossa história, etc’. A metáfora que explica bem este conceito é a do ‘óculos’. Para este sociólogo, os jornalistas têm ‘óculos especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras: e vêem de certa maneira as coisas que vêem’. Dessa maneira, eles operam ‘uma seleção e uma construção do que é selecionado’ (Bourdieu, 1997:25). No que se refere mais especificamente ao conflito da Praça da Matriz, quero destacar o papel contraditório de mediadores, como os jornalistas que, com suas categorias de percepção, ocuparam um lugar central nesse embate simbólico essencial, que é o que fez e faz moverem os processos políticos de qualquer sociedade contemporânea.

Esta pesquisa se baseia na consulta dos 28 volumes dos autos do processo criminal (nº 01390097556) instaurado para apurar a autoria do assassinato do soldado Valdeci de Abreu Lopes (1); na Edição Extra impressa pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, em agosto de 1990, conhecida como Versão dos Jornalistas; em matérias de jornais da ‘grande’ imprensa e nos depoimentos de jornalistas, advogados, militantes do movimento sem-terra, membros da Brigada Militar e militantes de direitos humanos. Este trabalho também é fruto de oito anos de questionamentos provocados pela explosão daquele evento em minha cidade natal, Porto Alegre. Aquela quarta-feira fria de agosto e suas conseqüências jurídicas e políticas desenvolveram também uma ‘ruptura’ na minha formação jornalística que determinou minha aproximação do movimento sem-terra, onde compartilhei este viés particular de ver o Brasil. Esta abordagem, no meu caso específico, foi em grande parte resultante das reflexões e experiências suscitadas por aquele dia.

É interessante retornar um pouco ao passado para compreender como brotou em Porto Alegre um episódio exaltado e divisor de águas políticas como aquele. Houve muita história dentro da construção simbólica resultante do conflito da Praça da Matriz. Esta história marca todo o discurso do episódio.

Monumento ao positivismo

Com cerca de um milhão e meio de habitantes, Porto Alegre é a capital de um estado com características peculiares, determinadas por seu processo de colonização. Com fronteira disputada palmo a palmo em guerras contra os espanhóis, os gaúchos acabaram desenvolvendo uma forte tradição militar que, associada a interesses econômicos e políticos contrariados, desembocou em lutas armadas contra o poder central, como nos casos da Guerra dos Farrapos e da Revolução Federalista, de 1893 e 1923. Este estado é o palco da célebre frase de Gaspar de Oliveira Martins, que, às vésperas do estouro desta brutal guerra civil entre os gaúchos, em 1893, declarou a um jornalista, após uma conversa estéril com seu inimigo político, Júlio de Castilhos: ‘Idéias não são metais que se fundem’. Como resultado desses pontos de vista irredutíveis, a revolta federalista durou dois anos, notabilizando-se por atos de extrema violência de ambas as partes, e onde a degola foi a forma preferida de execução.

É justamente por causa da Revolução Federalista que o conflito da Praça da Matriz se tornou tão fortemente fixado na memória. A imagem da morte do soldado – causada por um corte no pescoço – tornou-se o núcleo de significações do evento, que assumiu a dimensão de uma verdadeira crise entre poderes, desdobrada em outros episódios, por quase dois anos. É a ela que todos se referem e a que todos relacionam quando se fala do conflito do dia 8 de agosto. Mencioná-lo é lembrar o policial ‘degolado com foice’ na ‘Esquina Democrática’ de Porto Alegre.

Esta morte incomum – em termos de luta pela terra – acarretou um processo de isolamento político do movimento sem-terra. Naqueles anos, as forças contrárias a ele conseguiram aproveitar-se do choque provocado pelo episódio para elevar o brigadiano morto a mártir e atacar o MST, caracterizando-o como ‘assassino’ e ‘radical’. Grande parte da facilidade com que se procurou isolar o movimento está associada ao fato de que o dia 8 de agosto encerrou em si grandes inversões. Uma delas e de forte impacto foi o fato de que, ao invés de morrer um sem-terra, morreu um policial, ou seja um membro da instituição que tem o monopólio da violência estatal para garantir ‘a ordem’.

Estampada na bandeira nacional, ‘ordem’ é uma palavra inspirada pelo positivismo, muito em voga na época da formação da república brasileira e de particular impacto no Rio Grande do Sul. Neste estado, a ideologia criada por Auguste Comte deitou raízes, traçou cidades e moldou políticas governamentais. Por várias décadas, essa doutrina influenciou diretamente a história política rio-grandense, quando os chimangos liderados por Júlio de Castilhos e, a seguir, por Borges de Medeiros (no poder até 1927) controlaram o estado. A própria Praça da Matriz, em torno da qual se congregam as sedes de todas as mais importantes instituições de poder desta sociedade, possui em seu centro um monumento dedicado ao positivismo e ao próprio Júlio de Castilhos.

Poder oligárquico

Em 1990, tornou-se fácil marcar a imagem criminalizante do MST porque no processo de cristalização da versão hegemônica da morte do soldado as forças políticas contrárias à reforma agrária contaram com a preciosa e eficaz colaboração da imprensa e do imaginário coletivo gaúcho. Assim, o símbolo ‘colonos sem-terra degolam com foice’ fixou-se. Este enunciado foi escolhido dentro de um sistema de referências já marcado por essa imagem. Provavelmente, ele não ficou gravado na memória pelo número de vezes que esse enunciado foi repetido pelos meios de comunicação de massa, e sim por suas características peculiares e pelas reminiscências presentes no imaginário coletivo gaúcho.

Este imaginário logo associou uma batalha campal e a forma como o soldado aparentemente morreu às milhares de degolas entre ‘chimangos’ e ‘maragatos’, feitas em nome da política, durante a Revolução Federalista, duas vezes explodida no Rio Grande do Sul. Segundo historiadores, no sul da América ‘não havia muita diferença entre sacrificar gargantas de cordeiros, bois e inimigos’ (Zero Hora, 23-8-95). A ascensão de Getúlio Vargas ao poder nacional em 1930 é, em parte, o resultado da resolução desses conflitos locais entre federalistas e republicanos. Foi a primeira vez que os chimangos (‘pica-paus’) e os maragatos deixaram suas diferenças de lado e assumiram o poder local e, logo após, o governo nacional.

Berço do trabalhismo, além ter produzido uma liderança política do peso de Getúlio Vargas na história brasileira, é desse estado que veio também o antagonista de Vargas, à esquerda: Luís Carlos Prestes, que, depois de liderar a ‘Coluna’, converteu-se ao comunismo. É evidente que, também à direita, o estado prestou colaboração para o cenário político nacional. A chamada ‘Era Vargas’ – então conduzida pelo gaúcho João Goulart – foi praticamente sepultada pelo Golpe de 64, que colocou no poder vários ‘presidentes generais’ também gaúchos. O movimento sem-terra é mais um epifenômeno dessa tradição política, já que começou a organizar suas primeiras ocupações de latifúndios neste estado, e de lá se espalhou para o resto do Brasil.

No dia 8 de agosto todos eram herdeiros dessa história, e é talvez essa herança o que melhor explique a atitude dos cidadãos porto-alegrenses que se deram os braços naquele dia, ficando 11 horas protegendo sua Prefeitura e encarando oficiais e policiais da Brigada Militar, corporação formada, justamente no ano de 1891, para ser o exército de Júlio de Castilhos, o governador que preparava-se para lutar contra os maragatos na ‘revolução da degola’.

Esta proposta de reconstrução do conflito da Praça da Matriz tem por objetivo evidenciar o papel dos jornalistas na construção de uma memória que, na verdade, existia antes que o próprio dia 8 de agosto de 90 se consubstanciasse e que contribuiu para tornar a ‘degola com foice’ o núcleo de significação desse evento. A princípio, localizo essa história dentro do recorte que se inicia pouco menos de um ano antes do dia 8 de agosto de 1990, quando começa a luta do acampamento que ficou conhecido como ‘Pinheirinho’, de onde vieram a maioria dos colonos que chegaram para acampar em Porto Alegre naquele dia. E se encerra oito anos depois, quando todos os agricultores criminalizados pela justiça passaram ter seus ‘compromissos saldados’ com essa instituição, desfrutando de liberdade condicional ou prisão domiciliar em seus assentamentos. Em torno desse recorte, procuro abordar a questão agrária e a luta social desencadeada pela reforma dessa estrutura da propriedade da terra como uma ação simbólica e não somente como luta política, econômica e social. É uma maneira de tentar descobrir algumas das razões de porquê as representações sobre a reforma agrária tantas vezes correm o risco de se tornarem criminalizadas neste país, tornando-se tão difícil desmantelar a estrutura de poder oligárquico e patrimonialista amarrado à concentração da propriedade da terra.

História amaciada

O Capítulo I deste trabalho é dedicado a descrever o dia 8 de agosto de 1990, compondo a versão de uma liderança do MST com a de um capitão da Brigada Militar e com os relatos presentes nos autos do processo e em recortes de jornais. O Capítulo II dedica-se a descrever o desenvolvimento do processo criminal instaurado, demonstrando a fragilidade da expressão que acabou por sintetizar este episódio: ‘a degola com foice’. O propósito desta parte do trabalho é demonstrar como foi se cristalizando a teia de meias-verdades que nem tão surpreendentemente ocasionaram a criminalização de seis agricultores.

O Capítulo III inicialmente dedica-se a expor a história de Elenir Nunes dos Santos, a colona baleada na ‘Esquina Democrática’ pelo soldado Valdeci de Abreu Lopes, a vítima mais conhecida daquele dia. Considero que justamente por Elenir ser a personagem mais esquecida das versões da Praça da Matriz, é ela quem melhor simboliza este violento processo de silenciamento que consiste em impedir que o ‘Outro’ possa sustentar seu discurso. A seguir, o capítulo segue descrevendo o desenrolar do processo criminal até o julgamento, ocorrido em junho de 1992. No encerramento deste capítulo procuro descrever um outro personagem que também se tornou vítima daquele episódio: Otávio Amaral, o agricultor apontado na madrugada do dia 9 de agosto como assassino de Valdeci de Abreu Lopes.

Depois de descrever o conflito e seus desdobramentos jurídicos, o Capítulo IV traz os depoimentos de jornalistas que participaram da cobertura do dia 8 de agosto nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e na revista Veja. Personagens ativos na construção simbólica da versão que hoje está afixada na memória sobre aquele momento, procuro expor como são as leituras que esses jornalistas e fotógrafos fazem daquele dia, das condições de produção de sua profissão, da reforma agrária e do MST.

Neste trabalho, o episódio ocorrido no dia 8 de agosto de 1990 será reconstruído como ação simbólica que é ‘tanto comunicativa quanto conceitual’. Ou seja, ‘um fato social retomado nos projetos e nas interpretações dos outros’ (Sahlins, 1990:190). Essa abordagem se utiliza das reflexões de Adam Schaff sobre a possibilidade do conhecimento objetivo em história, para falar da produção jornalística, visto que as duas formas de produção de conhecimento guardam algumas semelhanças (embora o jornalismo perca consideravelmente em rigor). Para Schaff, os fatos por si mesmos não dizem nada, não impõem significado algum. É o historiador (neste caso específico, o jornalista) que fala e é ele que impõe um significado. Assim, para tornar-se significante como fato histórico (jornalístico), um acontecimento deve ser integrado na trama complexa de circunstâncias que conduziram à sua realização: ‘não é o fato que é parcial […], somos nós que temos interesse em expor um único aspecto do problema’ (Schaff, 1987:216). Por essa razão, considero que o conflito da Praça da Matriz guarda em si a possibilidade de atualização das contradições e identidades vinculadas à luta pela reforma agrária.

Examinar como se desenvolveu o processo de significação construído sobre o episódio é tentar estudar um passado recente, onde a atividade do mediador social jornalista esteve evidente dentro de uma luta social, tanto pelo que ele construiu, como pelo que silenciou. Assim, na materialidade do que foi impresso e nas interpretações atuais que alguns desses produtores culturais fazem desse episódio, procuro verificar o processo de imposição do silêncio. Entender como e por que alguns elementos do episódio foram apagados, colocados de lado, esquecidos, excluídos e outros foram realçados, reverberados, repercutidos, é uma tentativa de iluminar um pouco os mecanismos ideológicos que funcionam como bases, pontos de vista da construção de um determinado saber, neste caso jornalístico, sobre essa luta social específica.

Considero o jornalista um produtor de sentidos que atua na malha cultural da sociedade em que está situado (Medina, 1990:193), e o jornalismo, como produto cultural. Esta interpretação parte do conceito de que cultura são os ‘fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social’ (Canclini, 1983:29). Dentro dessa concepção, o fenômeno cultural jornalístico é visto como uma das ‘práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação de sentido’ (Idem) e, portanto, tem um papel fundamental na luta simbólica deflagrada em torno da luta social pela reforma agrária.

O conflito entre colonos sem-terra e brigadianos, ou seja, entre um movimento social com uma proposta política de transformação social e um dos aparelhos de repressão do Estado foi mediado por discursos jornalísticos e jurídicos. Como parte de instituições existentes nesta sociedade, os dois discursos são instrumentos de controle social que, como sistemas simbólicos, estruturam ‘práticas capazes de forjar lealdades, suscitar obediências, gerar conformismos, moldar a opinião pública e organizar o consenso’ (Faria, 1988:100). Mas, como qualquer fenômeno social, essas práticas carregam dentro de si contradição e complexidade. Ou seja, esses dois instrumentos das Ciências Humanas também podem se tornar brechas para a resistência e a luta social.

Verificar como esses processos de significação podem ocorrer, examinando aprofundadamente um episódio traumático da luta pela reforma agrária, é procurar detectar como a história de transformações sociais brasileiras, sempre incorporada e amaciada pelas forças conservadoras, marca os discursos que foram escritos e fixados na memória sobre um dado episódio de uma luta social que, ao questionar uma determinada forma de apropriação da terra, contém em seu interior uma ameaça ao poder oligárquico e patrimonialista que governa o Brasil.

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Jornalista, doutoranda no Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, autora de Reforma Agrária: os caminhos do impasse (Editora Garçoni, 2003)