Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Denúncias e reflexões de Cid Benjamin

Três dimensões virtuosas fazem de Gracias a la vida: memórias de um militante (Rio de Janeiro, José Olympio, 2013), escrito pelo jornalista Cid Benjamin, um livro de alto interesse. A primeira em importância tem a ver com um passado que é hoje tardiamente confrontado: os crimes da ditadura. A segunda, com um debate que só os muito otimistas poderiam supor anacrônico: o recurso à luta armada como instrumento político no contexto brasileiro. A terceira em importância é de insuperável atualidade: uma síntese sobre como o PT esqueceu seus compromissos originais com a ética na política (e muitos de seus integrantes os esqueceram na vida profissional e privada).

Crimes da ditadura e não “praticados sob a ditadura”. A dificuldade de punir esses crimes consiste exatamente no fato de que eles não foram “desvios de conduta” cometidos por esse ou aquele indivíduo ou grupo por sadismo ou interesse (houve torturadores que cobraram para liberar presos com família rica, outros que roubaram bens deles, no ato da prisão), mas uma diretriz governamental arbitrada pelo vértice do poder.

Muito especificamente, os generais-presidentes (Castello, Costa, a Junta Militar, Médici, Geisel; Figueiredo, que participou de todos esses governos em posições de destaque, não quis ou não pôde evitar o atentado do Riocentro, em 1981, inspirado ou dirigido, segundo Geisel – Ernesto Geisel, Maria Celina d’Araújo e Celso Castro, 3a ed., Rio, FGV, 1997, pág. 436 – pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier) e seus ministros militares.

Cadeia de comando

Geisel, por exemplo, no depoimento dado a Maria Celina e Celso, depois de ensaiar a aceitação da versão do suicídio de Vladimir Herzog no DOI-Codi de São Paulo, em 1975, diz que se tratou de um “probleminha” incapaz de merecer a atenção do presidente da República (pág. 371). Depois, reconhece que Herzog foi assassinado (pág. 377).

Antes, dissera que cada comandante de Exército era responsável em última instância por tudo que acontecia sob seu comando (pág. 226). Quem comandava o comandante era o presidente. Tanto que Geisel, tendo julgado que houvera falha de comando no episódio de Herzog, repetida no assassinato de Manuel Fiel Filho no mesmo DOI-Codi, três meses depois, demitiu o comandante do então II Exército, general Ednardo d’Ávila Melo.

Esse foi apenas um episódio, mais clamoroso e chocante porque Herzog não era clandestino, mas diretor de Jornalismo da TV Cultura, e se apresentou às autoridades, mas pode ser citado como demonstração do comprometimento de toda a cadeia de comando do Executivo federal.

O homem da abertura

O pior é que Geisel nem era contra a tortura, apenas achava que ela deveria ser aplicada discretamente. Está escrito na página 225 de seu depoimento:

“Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. […] O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E o nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!”

Geisel não chegava a ser intelectualmente brilhante. Ele mesmo, aliás, citado por Elio Gaspari (A ditadura derrotada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, página do caderno de fotos anterior à 225), não se pretendia dono de muitas luzes: “Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar a presidente da República”. “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?” Ele tinha razão. Comprova-o a falta de senso de dizer que não justifica a tortura – talvez só necessidade de disfarçar o próprio pensamento diante dos pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas – e em seguida justificá-la.

Geisel também não era contra a execução de prisioneiros políticos. Gaspari reproduz, no mesmo livro (pág. 387), diálogo de Geisel com seu auxiliar tenente-coronel Germano Arnoldi Pedrozo. Geisel é informado da prisão de quatro argentinos e três chilenos que saíram do Chile, passaram pela Argentina e foram capturados no Paraná (não se conhecem seus nomes). Pergunta:

“E não liquidaram, não?”

“Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é. Tem elemento que não adianta deixar vivo, aprontando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se não se lutar com as mesmas armas deles, se perde. Eles não têm o mínimo escrúpulo.”

“É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio.” (Fonte de Gaspari: Arquivo Privado de Golbery do Couto e Silva/Heitor Ferreira.)

Torturados e torturadores

O livro de Cid Benjamin denuncia com a minúcia necessária a tortura que ele e outros sofreram, e é, portanto, mais uma contribuição à democratização da vida brasileira e à reafirmação de verdades incômodas. Cid, por sinal, trabalha hoje na comunicação da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro.

Essa disposição de desenterrar a verdade fora demonstrada por Cid quase vinte anos atrás, em 26 de maio de 1995, quando ele assinou no jornal O Globo, onde trabalhava, depoimento em que denunciava como torturador o oficial do Exército Armando Avólio Filho, codinome Apolo, na ocasião adido militar na Grã-Bretanha, o que forçou o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, a exonerar Avólio do cargo.

Outro episódio narrado por Cid também ilustra como os agentes da repressão da ditadura se aproveitaram das características da transição negociada à democracia para se fingir de mortos (embora vivíssimos, nos dois sentidos). O major Valter da Costa Jacarandá, embora fosse do Corpo de Bombeiros (do então estado da Guanabara), era muito influente no DOI-Codi carioca. Quando Leonel Brizola governava pela primeira vez o Rio de Janeiro (estado resultante da fusão da Guanabara com o antigo Estado do Rio), entre 1983 e 1986, nomeou Jacarandá para o Estado-Maior do Corpo de Bombeiros. Um deputado do PDT de Brizola, José Carlos Brandão Monteiro (1938-1991), denunciou Jacarandá, que o havia torturado, e Brizola revogou a nomeação.

O caso mais conhecido é o do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, codinome Dr. Tibiriçá, reconhecido em 1986 pela atriz Bete Mendes, então deputada federal, numa viagem ao Uruguai, onde ele era adido militar, como o homem que a torturara em 1970. Governava José Sarney, o ministro do Exército era o general Leônidas Pires Gonçalves, e Ustra não foi demitido. Mas seria, em 2008, o primeiro oficial condenado pela Justiça comum, por sequestro e tortura, em ação declaratória.

A retaguarda da violência

Literalmente a bem da verdade, é preciso recuperar informações sobre oficiais que não atuaram diretamente na repressão policial-militar (capturas, torturas, execuções e outras barbaridades), mas em funções conexas indispensáveis ao funcionamento da máquina de opressão.

É o caso, entre muitos outros, dos que integraram a Justiça Militar durante a ditadura, em especial após a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Cid relata como foi levado a uma sessão de auditoria militar, indiciado como réu no processo decorrente do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick (setembro de 1969). O advogado de Cid, Augusto Sussekind, tendo em vista a denúncia feita por ele das torturas sofridas, acolhida nos autos, pediu que Cid fosse levado a exame de corpo de delito. O promotor se opôs e o tribunal negou o pedido por unanimidade. Em seguida, Sussekind pediu a quebra da incomunicabilidade de Cid, para evitar que fosse novamente torturado, em represália às denúncias que acabara de fazer. Nova negativa unânime.

E Cid comenta: “Assim era a Justiça Militar.”

Outra categoria de servidores públicos que colaboraram estreitamente com a repressão foi a de médicos e psiquiatras das Forças Armadas. Cid relata que seu irmão César – César Queiroz Benjamin, militante precoce e hoje um intelectual incansável na defesa das boas causas – tinha só 17 anos quando foi preso, em 1971, e não poderia ser responsabilizado como maior de idade.

“O problema”, escreve, foi ‘solucionado’ por um laudo de um tenente médico do Exército, de nome Leuzi, atestando que César tinha ‘idade mental’ de 35 anos. Com base nesse laudo, ele foi considerado maior de idade e julgado como tal. Passou preso cinco anos, dos quais três e meio isolado” (pág. 67).

Lobo/Carneiro

Cid dedica espaço considerável ao caso famoso do médico Amílcar Lobo, codinome Doutor Carneiro, que lhe costurou a cabeça sem anestesia e lhe aplicou pentotal no dia em que foi preso e começou a ser torturado. Descreve como Lobo acabaria fornecendo informações importantes sobre a tortura, depois de dar baixa, por isso sendo perseguido por militares, mas nem por isso isentado da hostilidade de militantes da esquerda, “que não perdoavam seu passado e o acusavam, com razão, de não ter contado tudo que sabia”.

Cid, que na “Apresentação” (págs. 15-20) condena exageros em denúncias de crimes da ditadura (“como se isso fosse preciso para mostrar as iniquidades que ela cometeu…”), lança um olhar sensível e arguto sobre o episódio:

“Considero que o comportamento desses militantes – entre os quais me incluo – foi errado. Houve nele algo de vendeta. Àquela altura, Lobo já era um farrapo e, ainda assim, foi acossado.

“Embora ele tenha sido, sim, um integrante da máquina macabra de torturas, teria sido preferível se tivéssemos compreendido sua angústia e, a seu lado, tratássemos de recuperar tudo o que ele sabia a respeito dos porões da repressão.

“Teria sido, também, mais humano” (págs. 85-6).

Diplomatas

A lista de colaboradores da repressão não pára aí. O livro de Cid fornece elementos que permitem às Comissões da Verdade, e/ou à imprensa, apurar o papel de militares e diplomatas brasileiros na preparação do golpe militar de 1973 no Chile, e, depois do golpe, na perseguição a brasileiros que lá se encontravam exilados.

Mas não só diplomatas lotados no Chile agiram de modo canalha. Cid diz que tentou registrar sua filha Ani (Annie) no consulado brasileiro da Cidade do México. E narra:

“O cônsul brasileiro não nos recebeu. Um funcionário subalterno do consulado conversou conosco [Cid e sua então mulher, Isolde Sommer]. Ficou desconcertado quando soube que eu era banido. Parecia que estava diante do demônio. (…) Os presos libertados em troca de embaixadores eram banidos do país – ficando impedidos de voltar ao território nacional pelo resto de suas vidas.

“O funcionário ensaiou, então, uma tese sui generis:

“– O senhor, como banido, é como se fosse um morto civil. Por isso, não pode registrar um filho.

“A rigor, em lugar algum do ato que criou a figura jurídica do banimento os militares falaram em ‘morte civil’. Mas muitas vezes os pequenos burocratas, para se preservar, se tornam mais realistas do que o rei” (pág. 186).

De volta ao Brasil, no início dos anos 1980, Cid sofreu perseguição política. Foi indicado por um amigo para o cargo de redator numa empresa ligada à TV Globo. Mas não obteve o emprego:

“Dias depois, a pessoa que me recomendou – um amigo com quem jogava futebol – recebeu o telefonema de ‘alguém de crachá prateado’ da Globo, informando-lhe o veto à contratação. Os órgãos de repressão tinham sabido do convite porque meu telefone estava grampeado e resolveram me prejudicar” (pág. 216).

Os infiltrados

Há ainda uma categoria a merecer atenção, a dos informantes infiltrados nos grupos de esquerda, no Brasil e no exterior. Eles eram muito mais numerosos e foram mais eficientes do que se supõe. Tanto que boa parte daquilo que os órgãos de repressão alardearam ter conseguido com a tortura já era conhecida. A finalidade principal da tortura pode não ter sido arrancar informações, mas destruir as vítimas e disseminar o terror.

Molipo

Cid se considera insatisfatoriamente esclarecido sobre o caso do Molipo (Movimento de Libertação Popular). Ele escreve, em nota de pé de página, que o Molipo…

“…foi uma dissidência da ALN surgida em 1971, tendo como núcleo um grupo que treinou guerrilha rural em Cuba. Era formado, em sua quase totalidade, por ex-integrantes da Dissidência Universitária do PCB em São Paulo. A maioria esmagadora de seus membros voltou clandestina ao Brasil em 1971 e 1972 e foi morta. As condições em que o Molipo foi destruído nunca foram inteiramente esclarecidas” (pág. 146).

É pauta para jornalistas e pesquisadores.

Cabe registrar que Cid vê a condição de quem falou sob tortura com um olhar maduro e sensato. Seres humanos não vêm ao mundo para ser torturados. O mesmo militante que resistiu em determinada situação poderia ter sido aniquilado em outra. Apontar um dedo acusador para quem “traiu a causa” é acrescentar, ao drama que a repressão provocou na vida dessa pessoa, uma carga talvez ainda mais dolorosa, porque partida de amigos, ou ex-amigos, não de inimigos.

Um balanço da luta armada

A legendária bravura do jovem integrante da luta armada urbana não ofuscou a técnica, adquirida em longos anos como jornalista, que Cid Benjamin usou em seu livro-reportagem autobiográfico. O texto começa, bem a propósito, descrevendo a primeira página do Jornal do Brasil do dia em que o autor foi preso, 21 de abril de 1970. Embora a ditadura militar tenha cometido todo tipo de violência e tropelia que se possa conceber, Cid não foi preso por ler jornal. Foi preso porque fazia oposição ao regime de arma na mão. No dia a dia, uma pistola Colt 45, “de uso exclusivo das Forças Armadas”. As descrições do armamento são sempre precisas no livro.

Felizmente, também são precisas e sinceras as avaliações políticas. A questão, para um ex-combatente da luta armada, que pagou com clandestinidade, prisão, tortura e exílio sua militância e que se manteve (muito) ativo politicamente –, é sempre e antes de tudo saber se a opção feita em 1968 esteve à altura das esperanças e dos objetivos.

Muito mais do que os costumeiros “tenho orgulho de ter feito o que fiz” e “não me arrependo”, importa saber como Cid avalia hoje o caminho da luta armada, que ele não finge, como tantos outros, alguns notáveis, ter sido “pela democracia”, porque não foi. No dizer de Cid – um homem honesto em todos os sentidos que a palavra possa assumir –, tratava-se de contribuir “para a derrubada da ditadura e a luta pelo socialismo”.

Derrota, não derrubada

A ditadura, como se sabe, não foi derrubada, mas derrotada politicamente. E do socialismo talvez o país esteja mais longe agora do que cinquenta anos atrás. Entenda-se: do socialismo democrático. Que o Brasil estava então e permanece carente de uma revolução social, não se recomenda, a quem pretende entender a chamada realidade nacional, duvidar. Mas uma “revolução” pelo caminho das reformas democráticas, na mais ampla, generosa e inteligente acepção dos termos reforma e democracia

As opiniões atuais de Cid sobre a luta armada estão expostas com clareza. O processo de amadurecimento que o levou a elas é sintetizado com propriedade na já mencionada “Apresentação”. Na página 121, Cid classifica o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, de que participou, em setembro de 1969, como um “verdadeiro gol de placa” (voltaremos a essa expressão), com a ressalva de que a ação foi realizada “dentro de uma estratégia geral equivocada”. Logo em seguida, o autor abandona o eufemismo prestista (Luís Carlos Prestes se referia aos adeptos da luta armada como “patriotas equivocados”), insiste na crítica e emprega qualificativo menos comedido: “Tornou-se incorreta porque estava inserida numa concepção estratégica geral errada e condenada à derrota”.

Sentimentos nobres e fatais

Ele volta ao tema várias vezes, algumas com perspicácia só possível para quem viveu os processos, não apenas ouviu falar. Critica a ida de Carlos Lamarca para o MR-8, quando o grupo a que pertencia, a VPR, entrou em colapso. Nas palavras de Cid:

“Naquele momento, teria sido mais acertado que Lamarca saísse do Brasil, mas ele descartou a alternativa. Em parte, por considerar que ela desestimularia a resistência e, em parte, por um sentimento de lealdade aos que tinham tombado ou estavam presos. Esse nobre sentimento foi responsável por muitas mortes que poderiam ter sido evitadas, quando os grupos armados passaram a viver uma situação de total cerco e aniquilamento” (págs. 148-9).

Ao descrever a derrocada de organizações da luta armada, Cid descarta que tenha sido “o amadorismo da estrutura organizacional”, as falhas operacionais dos grupos que a fizeram, a causa de sua aniquilação. “Naquele momento, a guerrilha era uma estratégia equivocada e seria derrotada de qualquer forma” (pág. 99).

Entre violência e democracia

Cid faz questões de ressalvar, logo em seguida, que não faz…

“…condenação de natureza moral ou ética ao uso da violência para combater um regime ilegítimo e de opressão – possibilidade, aliás, aceita inclusive pela Declaração de Direitos Humanos da ONU. É questão de eficácia política naquela situação concreta” (ibidem).

Dito assim, de maneira genérica, poucos haverão de discordar. O leitor deve arbitrar entre duas hipóteses: ou a ressalva é feita em nome do rigor conceitual, ou corresponde a alguma dificuldade de repudiar a violência como método. Difícil será, em todo caso, compatibilizar a violência com o caminho democrático – defendido enfaticamente por Cid –, que pressupõe um grau relativamente elevado de respeito consensual a regras que condensam o pacto social.

Nas palavras finais, Cid volta a dizer que a luta armada “foi um erro” (pág. 284).

Essa questão é de grande atualidade. Estamos num período de “vale” de manifestações de rua cujo componente de violência, extremamente funcional para a repressão e a extrema direita, é confundido por alguns ingênuos, ou politicamente limitados, ou simplesmente idiotas, com revolucionarismo. Voltarão momentos de pico e é tão previsível como o nascer do sol a cada manhã que alguns grupos e indivíduos vão confundir quebra-quebras e confrontos com radicalidade. Se não arrumarem algo pior.

Afinal, essa componente nunca esteve ausente da vida política brasileira. Com os resultados que se conhecem. A menos que se imagine – e imagina-se, por incrível que pareça, ou não – que o quadro sociocultural e político em que vivemos seja consequência de falta de “violência revolucionária”.

Crime político

Cid não o diz, digo eu: a opção depois de 1964 pela luta armada, cuja estreia no Brasil ocorrera pateticamente em 1935, se desconsiderada a saga da Coluna Prestes, foi também um crime político. Em nenhum momento capaz de colocar em xeque o governo de plantão, deu à ditadura pretexto para recrudescer e prolongar-se. Causou prejuízos tremendos à luta pela redemocratização, com todas as sequelas socioeconômicas associadas a tais prejuízos.

Depoimento de quem viveu politicamente o período. E viveu também as conquistas sociais permitidas pela redemocratização. A ditadura foi derrotada politicamente nas eleições legislativas de 1974, mas sobreviveu ainda dez anos, e não cedeu todo o poder aos civis. Nessa longa transição, substituindo quadros ferozes por outros (ao menos aparentemente) menos ferozes, manteve uma influência política negativa que se prolongou visivelmente até a demissão do ministro José Viegas, da Defesa, em 2004 (episódio das falsas fotos de Vladimir Herzog).

A redemocratização poderia ter sido acelerada se os “porões” tivessem tido menos influência (sequestraram o bispo de Nova Iguaçu, dom Adriano Hipólito, em 1976; torturaram presos políticos até 1977; em 1980, mataram Lyda Monteiro da Silva e mutilaram um tio do vereador Antônio Carlos de Carvalho, do PMDB carioca, e teriam truncado a abertura em 1981 se as bombas do Riocentro tivessem explodido como planejado; em 1984, contribuíram para forçar o Congresso a rejeitar as Diretas; ainda em agosto de 1987, o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, teve a petulância de tentar provocar uma crise militar fazendo, em reunião ministerial, duras críticas à Assembleia Nacional Constituinte; oficiais-generais de pijama continuam periodicamente tentando envenenar o ambiente político).

Se a correlação de forças tivesse sido menos favorável à direita e a redemocratização pudesse ter sido acelerada e radicalizada, no sentido político, o povo teria sofrido menos.

“Gol de placa” – contra

A passagem na qual Cid opina que o sequestro de Elbrick, um “gol de placa”, não foi, em si, responsável por um aumento da repressão contra a esquerda armada, em particular, e a oposição em geral é calcada numa sabedoria retrospectiva indemonstrável. “Já havia um processo de acirramento desde a edição do AI-5 e o início das ações de guerrilha. Ele se aprofundaria com ou sem o sequestro” (págs. 121/2).

O autor destas linhas não teve naquele momento, nem depois, a menor dúvida de que o sequestro de Elbrick – numa guerra perdida, batalha de retaguarda cujo objetivo era evitar mais mortes e tortura de combatentes presos – fez, em si, o jogo da direita. Por mais generosa que tenha sido a reivindicação principal desse e de outros sequestros: a libertação dos presos, que lhes permitiria, entre outras coisas, preservar a vida e denunciar no exterior o regime brasileiro. Foi um gol contra.

Carlos Marighella, ícone da luta armada, foi morto pouco depois do “gol de placa”, assim como outros militantes dos grupos que realizaram o sequestro. Elio Gaspari (A ditadura escancarada, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pág. 160) situa a derrocada a partir de julho de 1969. Havia, portanto, dois mundos paralelos: o das ações audaciosas e o da sistemática demolição dos grupos que as promoviam antes de desaparecerem.

Gaspari apresenta um apanhado numérico da derrota cuja conclusão é a seguinte: “Em apenas cinco meses, de setembro de 1969 a janeiro de 1970, foram estourados 66 aparelhos, encarceradas 320 pessoas e apreendidas mais de trezentas armas” (ibidem; fonte de Gaspari: Veja, 4/2/1970).

Causação invertida

Em outra passagem, ao fazer o balanço do movimento estudantil de 1967/8 (págs. 123-34), Cid ignora a hipótese de que poderia ter sido promovido no segundo semestre de 1968 um recuo das ruas para as faculdades, onde teria sido viável reforçar politicamente as entidades, tendo em vista o êxito da Passeata dos Cem Mil e de outras manifestações Brasil afora, com grande apoio da opinião pública.

Cid não atribui às lideranças da época, entre as quais ele próprio, nenhuma responsabilidade pelo estreitamento das manifestações, que abriu espaço para a Polícia Militar trocar balas de festim por balas de chumbo e começar a matar gente na rua. A ordem das coisas é invertida, como se a repressão tivesse sido responsável pelo estreitamento, e não o contrário, o que de fato aconteceu: o estreitamento político tornou viável a exacerbação da violência.   

Uma menção necessária: Cid diz que Vladimir Palmeira foi um grande líder do movimento estudantil carioca e brasileiro em 1968. É plena expressão da verdade. A imagem que Vladimir projeta é a de uma liderança que sempre se sentiu muito mais à vontade no movimento de massas do que em atividades de outra natureza tão comuns nos partidos e grupos da época.

Com sua voz poderosa e sua retórica talhada para o momento, Vladimir brilhou em 1968. Infelizmente, não soube ou não quis se contrapor aos que desejavam a retirada das massas para dar curso à proposta armada, como se esta tivesse sido uma imposição daquela. A liderança de Vladimir foi levada de roldão por escolhas que lhe escapavam e ele jamais recuperou seu antigo protagonismo.

Do PT ao PSOL

Amigos e companheiros de Cid no PSOL assinam o prefácio (Milton Temer) e a orelha (Cristina e Leandro Konder) de Gracias a la vida. Todos eles deixaram o PT. Temer e os Konder não eram fundadores. Vinham do velho Partidão (PCB). Cid foi fundador e chegou a integrar a executiva do partido de Lula.

Críticas a esse partido aparecem em várias partes do livro, mas estão concentradas nos capítulos “A estrela perde o brilho”, antepenúltimo, e “A estrela se apaga”, subsequente. O ponto de partida é político e pode ser resumido na constatação de que o PT, no poder, manteve em linhas essenciais a política do PSDB, após ter feito uma guinada à direita ao longo de 2002.

Cid recapitula:

“Os novos rumos do partido tinham me afastado dele. E, aqui, não me refiro apenas às mudanças de posições políticas. A frouxidão em questões de natureza ética me incomodava muito.

“Sem qualquer queda para o moralismo, que em geral esconde a hipocrisia, nunca acreditei que uma agremiação leniente no trato da coisa pública e dos compromissos éticos possa ser fiel a princípios políticos e ideológicos que proclama.

“Já  se viam processos de filiação em massa, inteiramente despolitizados, na busca da maioria em convenções partidárias. No Rio, a imprensa chegou a noticiar a tentativa, comprovada por gravações, de compra de delegados para convenções, em troca de cargos” (pág. 243).

Prefeituras petistas

Cid menciona em seguida denúncias nas quais deve meditar quem se preocupa com a verdadeira onda de corrupção em prefeituras acentuada nas últimas décadas. Trata-se do conhecido caso da empresa CPEM, de Roberto Teixeira, grande amigo de Lula, esquema denunciado por Paulo de Tarso Venceslau, antigo companheiro de Cid na luta armada e, depois, no PT. Em síntese, constatou-se que a CPEM era sempre a vencedora de licitações em prefeituras administradas pelo PT no estado de São Paulo e fora dele.

Montou-se uma comissão (Hélio Bicudo, Paul Singer e José Eduardo Martins Cardozo) para analisar as denúncias e ela confirmou sua procedência. Escreve Cid:

“Lula não aceitou o relatório da comissão Bicudo-Cardozo-Singer. Atropelou o partido e, por exigência sua, o trabalho foi desconsiderado sem ter sido avaliado pelo Diretório Nacional. Uma segunda comissão, com integrantes escolhidos a dedo, foi montada para reexaminar as denúncias. Como esperado, ela concluiu pela falsidade das acusações e recomendou ao diretório a expulsão de Paulo de Tarso do PT, o que aconteceu em fevereiro de 1998.

“Para mim, isso foi muito forte. Embora não tivesse vínculos maiores de amizade com Paulo de Tarso, sempre o tive em alta conta. Passei a respeitá-lo ainda mais pela sua coragem em enfrentar Lula e a burocracia partidária, como um Dom Quixote, em defesa de princípios éticos, mesmo abandonado por seus companheiros mais próximos, como José Dirceu. Vi o acontecido como clara demonstração de que o partido que eu ajudara a construir já não era o mesmo. Algumas das piores facetas do stalinismo começavam a dar o ar de sua graça” (pág. 247).

Celso Daniel

O processo que selou o afastamento de Cid do PT foi a cobertura do assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, pelo Jornal do Brasil, no início de 2002, para a qual foi designado pelo então diretor de redação do finado diário, Augusto Nunes. Cid resume o que apurou. Embora sejam fatos razoavelmente conhecidos, mais de uma década já os separa dos leitores de hoje. Mais uma razão para lerem o livro.

Cid acrescenta uma informação que não costuma ser mencionada nas descrições do caso (cf. Wikipedia, verbete Celso Daniel):

“No episódio, pelo que apurei, tudo indica que estava em jogo também a sucessão em Santo André. Celso proibira integrantes do secretariado da prefeitura de se candidatar a prefeito ao fim de seu mandato. A decisão tinha endereço claro: o vereador licenciado e titular da Secretaria de Assuntos Municipais, Klinger de Oliveira, que já se lançara pré-candidato. Sua secretaria tratava, entre outros assuntos, de transportes, ordenamento urbano e coleta de lixo” (pág. 257).

Fins e meios

O arremate de Cid merece transcrição na íntegra, porque ilustra de modo claro preocupações que o norteiam ao longo de todo o livro, que inclui ainda passagens de seu exílio em três países (Chile, Cuba e Suécia) e de sua experiência como jornalista:

“Devo dizer que não passa pela minha cabeça que alguém da cúpula do PT tenha tido relação com o sequestro e a morte de Celso, ou, ainda, com os assassinatos que se seguiram a ela [Cid compila uma pequena ficha para cada um dos sete assassinatos]. Para mim, a explicação mais plausível é a dada por promotores que trabalharam no caso: dirigentes do partido tornaram-se reféns de parceiros de corrupção na prefeitura, passando a ser chantageados por eles. Se não lhes dessem proteção, o esquema de corrupção seria divulgado, com claros prejuízos para a candidatura presidencial de Lula naquele ano de 2002.

“Caso seja correta esta hipótese, haverá quem diga que não havia outro jeito para o PT. Que estava em jogo ali algo mais importante, a possibilidade da vitória eleitoral de Lula meses depois – o que acabou ocorrendo. Se a roubalheira viesse à tona, a candidatura sofreria um duro golpe.

“Mas, então, os fins justificam os meios?

“Penso que não. Fins e meios estão indissoluvelmente ligados. Determinados meios comprometem os fins que se pretende atingir de forma irremediável.

“Finalmente, é inevitável uma constatação: se o PT tivesse refletido de forma mais profunda e tirado as devidas lições do caso Santo André – e, antes dele, do caso CPEM – provavelmente não teria vivido as agruras que viveu no episódio do mensalão, no qual, aliás, foram condenados à prisão alguns dos mais importantes dirigentes que estavam à frente do partido em 2002, ano da morte de Celso Daniel” (pág. 264).

Esse benefício da dúvida – que o PT pudesse ter refletido politicamente sobre suas próprias maracutaias – diz muito sobre o caráter leal e o pensamento otimista de Cid. Triste será constatar (alguns já o fizeram, sem partir de preconceitos), que isso era ontologicamente impossível, não apenas devido à formação de Lula e de muitos de seus companheiros, mas, antes, devido ao grau de corrupção entranhado nas práticas políticas – e em outras práticas sociais – do país.

Nota: falta ao livro um índice onomástico, item altamente recomendável em obras destinadas a figurar na bibliografia da história brasileira recente. Esperemos que na segunda edição ele seja providenciado.