Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Desenvolvimento insustentável

Este artigo é uma versão ampliada de outro que enviei à imprensa cearense intitulado ‘Adeus praia do Titanzinho?’ e trata da espantosa discussão em curso na mídia local acerca da implantação de um estaleiro, que fornecerá navios à Petrobras, no popular bairro Titanzinho, Fortaleza, berço de campeãs e campeões nacionais e internacionais de surf. O espanto não é por conta da suposta ‘falta de argumentos’ de quem é contra o estaleiro, mas da fragilidade, amparada em certa arrogância, nos argumentos de quem é a favor, sejam jornalistas ou políticos.

Ha quem aponte ‘romantismo’ para atacar posições de ambientalistas, surfistas e moradores da área, preocupados com impactos negativos que virão. Pergunto: há um único empreendimento do gênero porto e/ou estaleiro, em qualquer lugar do globo, que deixou de trazer consequências negativas e imprevistas ao meio ambiente? Pernambuco é só o exemplo mais próximo do Ceará. Em Portugal, o porto de Leixões, zona metropolitana do Porto, provocou o avanço do mar em praias vizinhas, obrigando investimentos em contentores tipo ‘espigões’. Ano passado, na disputa pela Câmara Municipal em Lisboa (o cargo de presidente da Câmara cumpre em Portugal o papel de prefeito no Brasil), a ampliação do porto no Tejo foi tema de debate acirrado, e retrocedeu. Viana do Castelo (terra do Caramuru) é uma pérola do litoral norte português em constante estado de alerta dada a existência de um estaleiro no porto local (perigo de incêndio nos depósitos de químicos inflamáveis, contaminação da água e dos peixes com metais pesados etc.).

Esquecimento e abandono

Santos, litoral paulista, maior porto da América do Sul, somente após décadas de investimento e despoluição conseguiu recuperar a balneabilidade de suas praias urbanas. Exemplo contundente na Europa vem da Holanda, onde há cerca de dois anos médicos publicaram diversos artigos em jornais do país alertando para a suposta relação do aumento de alergias, sobretudo respiratórias e de pele, com a poluição crescente nas zonas portuárias e de estaleiros. Suspeita: possível dispersão de substâncias químicas na atmosfera, advindas, talvez, da construção de navios e do fluxo de embarcações e caminhões associados ao movimento nos portos. Em Roterdã, maior porto europeu e dotado de estaleiro, especialistas investigam se o aumento de casos de organo-psicosíndorme entre trabalhadores em estaleiros (soldadores e pintores, principalmente) está relacionado à atividade laboral. A doença, agravando-se, pode levar à perda de mobilidade corporal e da visão e a distúrbios como diminuição das funções intelectuais – concentração, memória etc.

No Ceará, governo e alguns jornais e jornalistas desconsideram que o transporte marítimo do equipamento para implantar o estaleiro polui o mar. O estaleiro constrói navios, mas também lhes dá manutenção e desmonte, atividades de alto risco para o meio ambiente. Porém, o aspecto que considero mais preocupante é a posição de políticos a favor do estaleiro. Se são ‘desenvolvimentistas’, não sei, mas sei que surfistas não são, ou teriam como prioridade, de fato, a condição dos moradores do local, que ficarão ‘só’ 700 metros mais longe das boas ondas, se é que essas continuarão a vir… O ‘só’ ficou por conta do governador Cid Gomes que, provavelmente por ter sido criado em Sobral, ao norte, distante da praia, não tem noção do esforço adicional para um surfista.

Não é novidade que o aspecto humano seja o menos relevante para decisões políticas no Ceará. O surfe tem potencial para ser uma das mais belas atrações do estado, como é em Portugal ou em Santa Catarina etc. Quem pensa o contrário reforça o esquecimento e o abandono com que comumente são tratados/as campeãs e campeões do Titanzinho. Pessoas produtoras de coletividades e individuações, desejos e subjetividades que, talvez tenham outras prioridades que não o tal estaleiro.

Uma pseudo-relação de alteridade

Na mídia, subrepticiamente – pois há nas redações profissionais que não endossam a proposta –, afloram inflamados editoriais, colunas e artigos a favor do empreendimento. Não é de se estranhar que jornais e seus donos se alinhem quase sempre ao governo e projetos desenvolvimentistas, que renderão boas verbas publicitárias. Mas em se tratando dos jornalistas, há que se ter cautela, informando-se acerca de imprevisibilidades, tantos sociais quanto ambientais. Em Fortaleza mesmo, há pelo menos um exemplo de intervenção desastrosa na zona litorânea: uma estação de tratamento de esgoto que há décadas polui o ar na praia Leste-Oeste, de menor porte que um estaleiro, é verdade, mas da qual não se esperava problemas. Não por acaso, a zona da estação, como o Titanzinho, é popular e de surfistas.

Há ainda o risco de os jornalistas se alinharem incondicionalmente ao discurso estatal a ponto de aparentar que isso lhes renda fontes privilegiadas de informação ou apoios para projetos editorias pessoais. Isso cabe melhor aos jornalistas assessores de comunicação que aos de redação e mesmo aqueles não têm que estar o tempo todo vendendo talento e opinião em desacordo com suas convicções pessoais, ou estando a omiti-las a seus chefes. Ora, é possível tanto trabalhar para jornais ou políticos ou para o Estado (eu mesmo o fiz por muitos anos) sem rifar a própria alma ou a de outrem – neste caso, a da população do Titanzinho.

Perigo no discurso jornalístico desenvolvimentista: há o risco de interpretar que a obra será a favor do ‘outro’ – ‘os moradores do bairro terão emprego’ etc. etc. – numa pseudo-relação de alteridade. Jornais e jornalistas estão sempre a falar de contextos que nem sempre correspondem aos seus próprios, para além do bem e do mal que esta prática acarreta.

Aos políticos, é bom lembrar os eleitores

Muitas vezes, apoiar um discurso do desenvolvimento é reproduzir a retórica que cria o tipo ‘subalterno’, é reproduzir a construção imaginária do tipo ‘nordestino subdesenvolvido’ – a mesma que gerou a ‘invenção do Nordeste’, para dizer como Durval Muniz. Tal discurso não só inferioriza um ou outro tipo social, como legitima o defasado e questionável modelo de ‘desenvolvimetno sustentável’ que está a devastar o planeta e a solapar populações locais.

Convém ter em perspectiva que a informação circula hoje por muitos e variados meios que não exclusivamente os mass media. As populações locais estão a se apoderar de meios eletrônicos via internet e determinados discursos jornalísticos podem perder o que lhe deve ser mais precioso: a reciprocidade e credibilidade do público. E ao credível não basta aparência, é preciso sê-lo.

No caso de populações marítimas, em todo o mundo, geralmente são desfavorecidas pela intervenção ou omissão estatal. Aos políticos é bom lembrar que se tratam de seus eleitores, que não deixam de intervir processos institucionais e, diante do distanciamento das autoridades, buscam representação local, quase sempre abandonando os algozes em quem antes depositaram confiança. E Titanzinho, será abandonado pelos 10 vereadores de Fortaleza mais votados no bairro, convocados ao gabinete do governador e seduzidos pelo canto da sereia do desenvolvimento? E o próprio governador, não pensa em seus eleitores locais? E Ciro Gomes, do qual Cid é irmão e cabo eleitoral, sendo candidato à presidência não terá de responder pelo risco social e ambiental que está prestes a ser criado? O PV, virtual adversário na disputa, agradecerá, por certo.

Adeus a mais uma praia

Nos jornais, importantes intelectuais que vivem no Ceará intervêm na imprensa. É o caso do filósofo e sociólogo Daniel Lins, que em O Povo (10/10/2009) antecipava o problema em seu artigo ‘O Havaí é aqui‘, remetendo à alternativa de que o surfe tem potencial turístico, educativo e ecosófico em todo o mundo (de fato, é cada vez mais assim em Peniche, Portugal). Lins, que entre tantos conceitos interessantes ao pensamento contemporâneo tem o de ‘pedagogia rizomática’, lança uma proposta original, ousada e interessante: a implantação de uma universidade do surfe no Titanzinho. Sendo ele um dos grandes intérpretes de Nietzsche no plano mundial, deve pensar como o filósofo de Humano, demasiado humano: pode ser mais interessante o que não tem fim do que exatamente o sucesso. Este, almejado pelos ‘criadores de emprego’, nem sempre tem sentido duradouro. No último dia 30 de janeiro de 2010, o psiquiatra e antropólogo Antonio Mourão lembra que em Fortaleza existe um estaleiro privado e questiona por que não investir então nessa estrutura e know-how e segurança que funciona há décadas (ver artigo ‘Estaleiro no Ceara‘. Além dos intelectuais, cerram fileiras políticos importantes que não se renderam ao deslumbre (a prefeita Luiziane Lins, do PT, à frente) e associações de moradores e ambientais as mais variadas.

O embate é necessário. Caso contrário, pobre Fortaleza, que terá mote para dar adeus a mais uma praia, talvez a mais duas, pois a Praia do Futuro, cartão postal e maior balneário urbano de fim de semana, terá o estaleiro como vizinho. Pois a cidade perdeu a Praia de Iracema, conforme os versos da bela canção de Luiz Assunção: ‘Adeus, adeus/Só o nome ficou/Adeus, Praia de Iracema/Praia dos Amores que o mar carregou…’

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Jornalista, mestre em História (UFC) e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal