Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Política em rock ‘n’ roll

A morte no domingo (18/12) do escritor e dramaturgo Václav Havel, último presidente da Tchecoslováquia e primeiro presidente da República Tcheca, ganhou espaço merecido na imprensa. Graças às agências de notícias que suprem o buraco das demissões de jornalistas especializados nas redações de hoje, desta vez a realidade foi mais forte do que a ficção, coisa rara no Brasil. Porque o mesmo não aconteceu com o genial Tom Stoppard, que veio à Festa Literária de Paraty (Flip) em 2008 e recebeu da mídia algum espaço, mas nada comparável à sua espetacular obra teatral que no Brasil não recebe espaço algum. Nenhuma de suas peças havia passado no Brasil até 2008, nenhuma traduzida para o português.

O que Havel tem a ver com Stoppard que na mesa literária de Paraty foi anunciado como inglês?

Um dos maiores dramaturgos contemporâneos, dono de mais de 25 prêmios no teatro, Stoppard nasceu tcheco (Thomas Straussler) e sem nunca ter pisado na América do Sul é autor do roteiro do filme de mesmo nome (Brazil, 1985), também deO Império do Sol(Spielberg, 1987) e A Casa da Rússia(com Michelle Pfeiffer e Sean Connery, 1990). Na Flip, é óbvio, virou alvo de perguntas sobre sua carreira de roteirista de cinema, que lhe rendeu um Oscar por Shakespeare Apaixonado(1998). Teatro? Nada. O brasileiro não sabe por que não viu as peças que os antenados caçam pelo mundo em filas de espera intermináveis.

Show na praça

Stoppard trocou a faculdade pela redação de jornais com o pseudônimo William Boot, personagem de Evelyn Waugh em Scoop(“Furo!”, bíblia dos jornalistas publicada com atraso de meio século no Brasil, em 1989, pela Companhia das Letras). Mas nada supera seu talento como dramaturgo. E foi durante sua estada no Brasil que ele deu força para que o público brasileiro conhecesse pelo menos uma delas, a última, sucesso em todos os palcos incluindo a Broadway. Aqui passou sem o menor estardalhaço, graças ao esforço pessoal do dramaturgo carioca Filipe Vidal, 44 anos, do grupo Tropel, que fez a tradução por conta, risco e puro deleite, e a quem Stoppard fez questão de conhecer.

Chama-se Rock ‘n’ Roll.Nela, Sttoppard metamorfoseado de Jan é um tcheco criado na Inglaterra e tem a cabeça feita pelo marxista Max, seu professor de filosofia em Cambridge. A Primavera de Praga se instala com a invasão dos soviéticos em 1968 e Stoppard-Jan, fascinado pela ideologia, decide voltar ao seu país. Ali, siderado pelo rock, se junta à banda que realmente existiu, The Plastic People of the Universe.Os cabeludos são perseguidos como alienados; Václav Havel, que na peça se chama Ferdinand, cria na oposição a Carta 77 e Jan vai preso com a banda. Seus LPs são estraçalhados como material burguês e, dissidente, mendiga pelas ruas. Só volta a ouvir o som do vinil quando Max, prestigiado pelo regime, visita Praga com mimos para o ex-aluno em desgraça.

O segundo ato é o da virada, da perestroika, da queda do muro de Berlim, da Revolução de Veludo. O ano é 1990. Max, desiludido, sai do Partido Comunista, Ferdinand-Havel torna-se presidente e Jan se recompõe na vida. O final é um apoteótico show dos Rolling Stones na Praça de Praga. Em tempo, Stooppard é amigo de Mick Jagger, com quem, aliás, se parece fisicamente.

“1968 foi uma coisa para o mundo, outra para os tchecos invadidos pelos tanques soviéticos!”, disse Stoppard, que na vida real largou tudo e foi aliar-se a Havel em Praga.

Dúvida existencial

Deixou mal o público brasileiro a hipótese de que Stoppard seria muito sofisticado para merecer traduções e encenações. Embora tenha recusado uma ida ao Programa do Jô, esteve atento aos 35 mil anônimos da Flip respondendo ao que lhe perguntavam pelas ruas.

“O teatro nos torna civilizados”, explicou, modesto, Stoppard – autor de 30 peças e 17 roteiros para rádio, filme e TV, sem usar computador, escrevendo e reescrevendo 40 vezes com caneta tinteiro seu material que envia por fax para a secretária, recebe por fax o texto impresso, corrige, manda de volta (envia e-mails por fax, responde por fax).

Craque no jogo de palavras e também em críquete, saiu pela culatra ao responder à pergunta de Luis Fernando Verissimo na Flip: “Dizem que os ingleses se dividem em dois grupos. Os jogadores de críquete, como você, jogam à direita, os futebolistas, à esquerda. Em A Costa da Utopia[sete Tonys, o Oscar do teatro, bateu Arthur Miller que levou seis em A Morte o Caixeiro Viajante] você foi conservador, mas como Jan às vezes concordava com Max em Rock ‘n’ Roll.Há chance de você jogar futebol um dia?” Stoppard contemporizou: “Não jogo mais”. E depois, longe do público: “A realidade para os tchecos era diferente, as questões políticas se transformam em questões morais, somos seres morais”.

O ex-jornalista não desfiou regras, não se revoltou com o fato de não ser conhecido aqui (“Como poderia? Minhas peças não foram traduzidas nem encenadas”), disse que não tinha culpa do que Terry Gilliam fez do seu roteiro Brazil,que apesar da Aquarela do Brasil de Ary Barroso está mais para 1984 de George Orwell (“ O filme não é meu, é dele”). E, paciente, explicou o que os brasileiros não viram nem comentaram porque não tiveram tempo de se conectar com Rock ‘n’ Rollno curto período de menos de um mês em que a peça esteve em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues no Rio e no Paulo Autran, do SESC Pinheiros, em São Paulo. A crítica Barbara Heliodora justificou a alienação do público à peça pela “distância política e cultural, Rock ‘n’ Rollé uma experiência a que não estamos muito acostumados, porém a todos passa a ideia da importância que o teatro pode e deve ter para nossos caminhos de conhecimento do mundo em que vivemos”. Explicação dura e justa, que a rigor nos desmerece culturalmente.

Enquanto a estética for a novelesca global, o texto primário para alargar cada vez mais o público na classe emergente e a encenação, naturalista, Stoppard fica a quilômetros de distância, junto com Havel, a Tchecoslováquia e a dúvida existencial que o levou a escrever Rock ‘n’ Roll: “Resolvi um tormento: o que teria acontecido se minha família tivesse voltado a Tchecoslováquia depois da Segunda Guerra?”

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[Norma Couri é jornalista]