Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Literatura em ritmo de jazz

Da mesma maneira que o poeta é um fingidor, como escreveu Fernando Pessoa, podemos dizer que o ficcionista é um mentiroso. Mais que isso, é um profissional da mentira, pois seu ofício consiste em fazer parecer verdade aquilo que deveras mente. Nesse sentido, Paulo Vilara revela-se um grande ficcionista no livro Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria, publicação viabilizada em 2011, com patrocínio da Cemig pela Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Jornalista e diretor de documentários, entre eles Guignard – Educação do Olhar, Paulo Vilara também publicou Palavras Musicais – Entrevistas com os compositores Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral (2006) e Congresso Internacional da Bicharada (1996). Como crítico musical, sempre dedicou especial atenção ao jazz, tema dos oito contos reunidos em seu novo livro. Dedicado ao maestro Moacir Santos e à cantora Alaíde Costa, Jazz! Interpretações tem prefácio assinado pelo jornalista norte-americano James Gavin, autor de biografias de Chet Baker e Lena Horne. Ele lembra que o jazz fascinou Vilara desde a infância e que o autor, mesmo não sendo músico, “procurou levar a busca pela verdade dos músicos de jazz para o seu trabalho”.

Com expressivas gravuras de Eri Gomes transformadas em ilustrações pelo fotógrafo Miguel Aun, o livro homenageia grandes nomes do jazz, a começar por John Coltrane, cuja composição “Naima” dá título ao primeiro conto. O narrador define com precisão sua viagem lisérgico-musical: “Aproximando-se da paleta de um pintor, os sons que emergiam do saxofone dourado se exprimiam em profundo tom de azul, acentuado por manchas amarelas, brancas, vermelhas e alaranjadas”.

Encontros improváveis

O segundo conto, intitulado “Tenderly”, nome da canção de Walter Gross e Jack Lawrence imortalizada por Chet Baker, narra um encontro improvável com o trompetista cujo modo de cantar lembra João Gilberto. Vilara remete ao último concerto do grande músico, realizado em 28 de abril de 1988 na cidade alemã de Hannover. Dias depois, o artista morreria em virtude de uma queda da janela do quarto de hotel onde estava hospedado, em Amsterdam.

“Evidence” homenageia Thelonious Monk, imaginando a maneira embaraçosa como um paparazzo tem seu trabalho interrompido, vendo-se obrigado não só a sair do show que está fotografando, no Village Vanguard, em Nova York, como também a deixar para trás a mulher que o acompanha – para alegria da mesma.

“Once Upon a Summertime” é um dos textos mais simples e geniais do livro. A começar pelo personagem central, Miles Davis, e sua relação com as drogas. Vilara registra o que seriam pensamentos do músico e do seu fornecedor, um querendo descartar o outro. De repente, muda o tom introspectivo da narrativa para um mini-roteiro cinematográfico, no qual ganha força o grito libertador do artista: “Bye bye blackbird!”

A voz mais linda do mundo

“Digression” é o título do quinto conto e de uma composição do pianista Lennie Tristano; “Bright Moments” homenageia Roland Kirk, autor de uma música que tem o mesmo nome; “Los Mariachis” começa com uma cena de pujilado entre o genial contrabaixista Charles Mingus e o saxofonista J. R. Monterose, nos fundos do Café Bohemia, famoso clube noturno do jazz. A história é narrada do ponto de vista de um jornalista brasileiro que deseja entrevistar o autor do cultuado álbum “Pithecanthropus Erectus”.

Contudo, o conto mais comovente, talvez o mais emblemático de todos, seja “Strange Fruit”, no qual o escritor presta tributo à memória da cantora Billie Holiday. A narrativa é feita por um suposto jovem de 17 anos e descreve a solidão e os traumas de vida daquela que ainda é considera a voz mais linda do mundo.

Os contos seriam bons por eles mesmos, mas Paulo Vilara teve o requinte de enriquecê-los com notas que não só apresentam a biografia dos músicos citados, como também remetem a discos, canções, lugares e à própria história do jazz. Não bastasse isso, ele publica no posfácio a discografia básica de cada um dos homenageados.

Como escreveu o crítico musical José Domingos Raffaelli, “uma obra desse quilate deve ser conhecida por todos que se interessam por jazz e pela música em geral”. No entanto, poderíamos acrescentar que Jazz! Interpretações deve ser lido – antes de tudo – por aqueles que cultuam a boa literatura.

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[Jorge Fernando dos Santos é jornalista e escritor, Belo Horizonte, MG]