Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Outubro, 1975

Só na sexta-feira (15/3) Clarice Herzog obteve o atestado de óbito corrigido de Vladimir Herzog, assassinado durante sessão de tortura, no dia 25 de outubro de 1975. Em vez de “suicídio”, farsa montada pelos torcionários, o documento agora informa que a morte “decorreu de lesões e maus tratos sofridos em dependência do II Exército de São Paulo”.

Nasceu Vlado Herzog na Iugoslávia. Judeu, sua família precisou fugir para a Itália em 1941. Com o fim da guerra, seus pais decidem não retornar, mas emigrar para o Brasil. Aqui adota o nome Vladimir. Inicia-se profissionalmente em 1959 ainda muito jovem no Estado de S. Paulo. Mas seu sonho era ser cineasta. Em 1966 vai a Londres onde trabalha na BBC. Retorna no final de 1968. Já em 1972 estará na TV Cultura de São Paulo. Sai por pressões políticas no final de 1974.

O ano de 1975, no qual a morte de Vladimir Herzog foi o momento mais tenso, começou com novidades. Em 4 de janeiro, no dia do seu centenário, o jornal O Estado de S. Pauloé premiado com o fim da censura prévia. Mas ela continuaria em O São Paulo, jornal da Cúria Metropolitana, na revista Veja, nos jornais alternativos Pasquim,Opinião, Movimento(que nasceria sob censura) e tantos outros. Eram dos poucos que ousavam enfrentar, como o Jornal do Brasilaté 1973. Praticamente todos os demais nunca foram censurados previamente. Recebiam bilhetinhos ou telefonemas e as ordens eram cumpridas. Os recados por vezes nem eram necessários.

Naquela altura, a luta armada já tinha sido liquidada. Mas o aparato repressivo seguia firme, sem controle. A Operação Radar, destinada a exterminar a direção do PCB, já estava em andamento capturando e “desaparecendo” dirigentes desde 1974. No mesmo janeiro de 1975, a repressão desmantela a gráfica clandestina do PCB mantinha havia anos, dois militantes são assassinados. Pouco depois, captura o ex-deputado Marco Antonio Coelho. A mulher de Marco Antonio consegue fazer com que a notícia da prisão chegue ao então presidente Geisel, à Câmara dos Deputados e à imprensa.

O general Ernesto Geisel anunciara um projeto conhecido como distensão, qualificada numa expressão que se consagrou: lenta, gradual e segura. Ilusão cogitar retorno à democracia; precisava por ordem na anarquia do “porão”. A “linha dura” tinha o ministro do Exército, Sylvio Frota, e o general Ednardo d’Ávila Mello comandava o II Exército em São Paulo.

Sindicato

Os jornalistas de São Paulo já vinham se mobilizando desde 1974. Esta mobilização toma forma em 1975 quando organizam um movimento para montar uma chapa para o Sindicato dos Jornalistas. Este seria um espaço importante para dar voz à sociedade civil que, no final de 1974, votara maciçamente no MDB, único partido de oposição. Na montagem da chapa, venceu o grupo que entendia que o momento pedia um “figurão”, um nome cujo atributo maior fosse respeitabilidade. Jornalista da melhor linhagem, com reportagens publicadas na Folha de S. Paulo, em O Cruzeiro, Manchetee na consagrada e hoje “sagrada” Realidade, o alagoano Audálio Dantas termina sendo o nome escolhido para presidir a chapa. Chapa fechada, campanha e eleições em março e abril. Posse no começo de maio.

A “linha-dura” não aceitava a distensão, mesmo precaríssima. Os “desaparecimentos” se tornaram política de Estado – Geisel não apenas consentia, aprovava. O “porão” sabia necessitar manter a “ameaça comunista”, era ela que justificava a existência do aparato repressivo que operava ignorando até mesmo a “legalidade” do AI-5. Em agosto, intensificam-se as denúncias de “infiltração comunista” na imprensa. Resultam numa nota de protesto do Sindicato e Audálio logo conheceria os comandantes militares.

Também em agosto, cai a base que o PCB tinha há muitos anos na Polícia Militar de São Paulo. Nesta operação dois policiais seriam assassinados, um deles tem o corpo em frangalhos jogado no portão de casa, outro “desaparece”. Absoluto silêncio dos jornais.

Dirigentes comunistas que viviam na clandestinidade seguem sendo presos pela Operação Radar. José Montenegro de Lima é capturado em 29 de setembro, Edwaldo Alves da Silva dia 30, Orlando Bonfim em 8 de outubro. Estes foram assassinados e desapareceram.

Vlado seria morto dia 25 de outubro. À Operação Radar se sobreporia a Operação Jacarta. O nome remete a um golpe de Estado em 1966 na Indonésia onde cerca de 5 mil comunistas são assassinados. Em setembro, os DOI-Codi intensificam as prisões. Os cárceres vão amontoando militantes do PCB. Agora também aqueles de vida legal, emprego e residência fixa. Estudantes, médicos, advogados, arquitetos. Estes não poderiam “desaparecer”. O DOI-Codi de São Paulo chegaria a contar com duas centenas de encarcerados. Mas eram prisões clandestinas, quando o DOI-Codi admitia, informava estarem incomunicáveis. Faziam política no movimento estudantil, outros tantos eram do MDB, único partido de oposição.

No final daquele setembro, também jornalistas vão sendo apanhados. A cada um deles – quando a informação do “sumiço” chegava – o Sindicato emitia uma nota, que sairia quase sempre em pé de página dos jornais. Era o possível; era fundamental.

O metalúrgico José Ferreira da Silva também foi capturado. Conhecido como Frei Chico, militava no PCB. Tentara sem sucesso recrutar o irmão Luiz Inácio da Silva, já conhecido como Lula. Quando foi preso o irmão já presidia o Sindicato dos Metalúrgicos, que não se manifestou. O “novo sindicalismo” só se manifestaria com suas primeiras greves em 1977.

Campanha sórdida

Em setembro, Vladimir retorna à TV Cultura para assumir a direção de jornalismo. Imediatamente tem início uma campanha sórdida, agora denunciando nominalmente a emissora vinculada à Secretaria de Cultura de São Paulo. À frente, o “jornalista” Claudio Marques que tinha um programete numa TV e uma coluna num jornal dominical. Na Assembleia Legislativa, os deputados Wadih Helu e José Maria Marin (hoje presidente da CBF) se somariam denunciando os comunistas da TV Cultura.

Em sua coluna dominical, Claudio Marques destilava veneno e ironias perversas contra Vlado. Numa delas usou a expressão “Tutoia-Hilton”. Hilton era o mais luxuoso hotel de São Paulo. Tutoia era o nome da rua onde ficava o DOI-Codi, centro de torturas vinculado do II Exército. Esta nota saiu no domingo em que Vlado já estava morto. Fora escrita antes; ele sabia o que iria acontecer.

Já eram 11 jornalistas presos. Na noite de sexta-feira, 24 de outubro, Vlado foi procurado em seu domicílio e na TV Cultura. Deveria “prestar esclarecimentos”. Após negociações, permitiram que dormisse em casa e se apresentasse na manhã do dia seguinte. O jornalista que cobria a área militar dormiu com ele. Acordaram, chegaram a parar num bar para tomar café. Vlado apresentou-se pontualmente às 8h daquele sábado, 25 de outubro.

“Você fica e você vai”. Poucas horas depois Vlado estaria morto. A notícia da morte propagou-se rapidamente. E o enterro na segunda-feira se deu com enorme tensão, e rapidez. No mesmo dia à noite haveria uma reunião no Sindicato. Naquela tarde a diretoria foi chamada ao II Exército. A multidão que se aglomerou no saguão e nas escadarias, e foi contida com enorme habilidade por Perseu Abramo. Com o retorno da diretoria, a reunião é realizada, num clima onde era preciso ter uma decisão coletiva de denúncia com as cautelas que o momento exigia. A sugestão de um culto ecumênico na catedral da Sé é aprovada e marcada para a sexta, 31. Foi uma semana de enorme tensão e muita pressão.

No dia 31, o trânsito da cidade é todo fechado por blitze para dificultar o acesso. Mesmo assim, cerca de 8 mil pessoas comparecem ao culto. A tensão entre os setores militares era tamanha que o presidente Ernesto Geisel veio a São Paulo e as ligações de Brasília congestionaram. No caminho a pé para a catedral, era visível a presença de homens armados nos prédios e entre a população. Um grito detonaria uma carnificina. O grito que deveria ecoar era o do silêncio. E foi assim que as 8 mil pessoas fizeram do silêncio o grito de “Basta”. A liderança de Audálio, operando no fio da navalha, foi bem sucedida.

A morte de Herzog e o grito silencioso do dia 31 abortaram a Operação Jacarta, uma conspiração dos duros a qual a Comissão da Verdade precisa se debruçar detidamente. A morte, em janeiro de 1976, do operário Manoel Fiel Filho deixa Geisel insone. No dia seguinte, o general Ednardo d’Ávila Mello, comandante do II Exército seria exonerado. O jogo só seria definido em 12 de outubro de 1977 quando Geisel demite o ministro do Exército Sylvio Frota. A derrota faria os duros iniciarem uma onda de atentados. A morte de uma secretária da OAB ao abrir uma carta e a fracassada Bomba do Riocentro que seria outra carnificina são apenas alguns exemplos mais conhecidos e marcantes. O ex-delegado do Dops capixaba Claudio Guerra, que lançou livro no ano passado, relata bem este período, do qual foi ativo participante.

Mas não era o fim da ditadura como Elio Gaspari faz supor. O governo Geisel seguiria e ainda viriam seis anos de João Figueiredo.

Dificuldades persistem

Em seu livro, Audálio Dantas produziu a mais completa obra sobre Vladimir Herzog. Ouviu todos os jornalistas que foram presos e também aqueles que conseguiram escapar. Fez uma pesquisa minuciosa em arquivos públicos. A reconstituição daqueles dias e em especial daquele 25 de outubro é leitura sofrida e tocante. Mas um imperativo: o Brasil precisa saber o que ocorreu naquela cela onde Vlado estava diante do ainda desconhecido “capitão Ramiro” e de Pedro Antonio Mira Granciere.

A obra tem dois fios condutores muito bem amarrados. De um lado, a vida e a morte de Vladimir Herzog; de outro, o desenrolar do ano de 1975 em especial do mês de outubro e da semana entre o dia 25 quando se deu o assassinato e o 31, do culto na Sé.

Outro grande mérito do trabalho é destacar em sua devida dimensão o papel que o Sindicato dos Jornalistas desempenhou sob o comando do autor. O culto na Sé não foi o primeiro, já houvera um anterior quando da morte de Alexandre Vannuchi Leme no início de 1973. Não era apenas o Sindicato que denunciava as prisões, o MDB também o fazia. Mas a ação do Sindicato foi fundamental e foi ela que abriu a voz da sociedade civil e norteou o caminho da oposição fazendo daquele momento uma virada na ação oposicionista. Não à toa, Audálio seria eleito deputado federal em 1978 para um mandato único mas brilhante.

Audálio Dantas seguiu no sindicalismo, na vida pública e no jornalismo. O repórter aparece em livros como uma biografia de Lula ainda menino e o belíssimo O chão de Graciliano, em parceria com o repórter-fotográfico Tiago Santana. Também escreveu livros infantis. Uma coletânea de suas melhores reportagens foi editada na obra Tempo de Reportagem.

Incrível que as dificuldades para se conhecer a ditadura persistem. Quando da pesquisa para o livro, em 2011, a Biblioteca Nacional fez exigências absurdas para que Audálio tivesse acesso a documentos. Pediram até o mentiroso atestado de óbito. Foi preciso a interveniência do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Há muito ainda a conhecer sobre a ditadura. Mas Audálio Dantas dá uma contribuição fundamental.

Lançamento no ES

O Sindicato dos Jornalistas e o Fórum Memória e Verdade são os organizadores do lançamento do livro na terça-feira (19/3), no Instituto Federal do Federal do Espírito Santo, em Jucutuquara. Sessão de autógrafos a partir das 18h, lançamento da Comissão da Verdade do Sindicato às 19h e debate a partir das 20h.

Na mesma terça, às 9h, no auditório do Centro de Artes da Ufes, Audálio participa de uma conversa com estudantes de jornalismo mediado pelo signatário e pela presidente do Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo, Marília Poletti.

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Victor Gentilli é jornalista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo