Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo não é ficção

A maioria dos textos deste livro se enquadra num tipo de reportagem que se costuma classificar de ‘novo jornalismo’, ‘nova não-ficção’ ou ‘parajornalismo’, sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo falecido crítico Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos, que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito dramático.

Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio.

Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta, observando-os em situações reveladoras, atentando para suas reações e para as reações dos outros diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o diálogo e o clima, a tensão, o drama, o conflito, e então em geral a escrevo do ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando o que esses indivíduos pensam durante os momentos que descrevo. Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o que se passa na mente de outras pessoas.

Recorri muito a essa técnica em meus quatro últimos livros, inclusive A mulher do próximo; este, publicado em 1980, descreve a vida sexual privada e os valores morais cambiantes de muitos casais americanos na era ‘liberada’ de antes da aids. E em 1990 meu interesse jornalístico pela esfera da intimidade fez com que eu me afastasse de meu papel de ‘observador neutro’, e me surpreendi invadindo minha própria privacidade e a de meus antepassados estrangeiros, em meu livro Unto the sons, publicado há pouco tempo.

Mas relendo Unto the sons agora, em 1992, notei que ele contém numerosas observações, e mesmo frases, que foram publicadas pela primeira vez nos idos da década de 60, quando eu estava envolvido com o livro que o leitor tem nas mãos, Fama e anonimato. E embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática tudo que creio ser possível na não-ficção criativa, com certeza marca a passagem do ‘velho’ jornalismo que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire aceitava e estimulava, sob a editoria do falecido Harold Hayes.

Cena de rua

Comecei a escrever na Esquire em 1960, com um ensaio sobre as pessoas anônimas de Nova York, uma série de vinhetas sobre as pessoas que ninguém vê, fatos estranhos e acontecimentos bizarros que me seduziram durante minhas andanças pela cidade como jornalista. Quando a Esquire publicou o ensaio, eu o ampliei para produzir um livro ilustrado que a Harper & Row lançou em 1961, com o título de New York – A serendipiter’s journey [Nova York – A jornada de um serendipitoso]. O texto desse livro constitui a primeira parte desta edição de Fama e anonimato; para mim, agora ele representa minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto, e me lembra também de quão destrutiva uma cidade pode se tornar, quanto ela promete muito mais do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu, muitos anos atrás: ‘Ninguém deve vir morar em Nova York a menos que esteja disposto a ter muita sorte’. Há também nesses escritos os primeiros sinais de meu interesse pelo uso de técnicas de ficção, um desejo, de certa forma, de dar à reportagem o tom que Irwin Shaw e John O’Hara deram ao conto.

Na segunda parte de Fama e anonimato, chamada ‘A ponte’, minha escrita é menos difusa, porque me concentrei, meses a fio, num grupo de homens extraordinários que começaram a trabalhar em Nova York, em 1961, na construção da grande ponte Verrazano-Narrows, entre Staten Island e o Brooklyn. Entre 1961 e 1964 passei todo o tempo que me foi possível no canteiro de obras da ponte, não apenas visitando os barracões dos operários de ambos os lados do rio Hudson, mas também muitas vezes pondo um capacete e misturando-me aos homens nas vigas de aço e nos cabos que se estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Muitos desses operários de pés firmes eram índios da reserva de Caughnawaga, perto de Montreal, e vez por outra eu os acompanhei nas visitas que faziam a suas famílias nos fins de semana, achando as viagens de carro, com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras que minhas andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte, em dias de mais vento. Nunca vou esquecer as ocasiões em que vi nosso carro sair da estrada e atingir de raspão renques de sequóias e, uma vez, um cervo saltitante que fez um pequeno estrago.

Essas excursões acabaram para mim em 1964, com a publicação, pela Harper & Row, do livro ilustrado The bridge, texto que é reproduzido nesta edição de Fama e anonimato tal qual foi escrito; assim sendo, a linguagem que nele se encontra nem sempre é ‘politicamente correta’, segundo o jargão desta década de 90: não transformei meus índios em ‘americanos nativos’ nem impliquei com meus personagens masculinos que assobiavam para belas ‘garotas’ e não para ‘jovens mulheres’; tampouco atualizei as minhas cifras, mesmo se minha definição de ‘abundância’ hoje em dia se reduz à linha de pobreza.

A terceira parte de Fama e anonimato se concentra nos sonhos e nas aspirações declinantes de muita gente bastante familiarizada com o errático vaivém dos holofotes da fama – pessoas como o cantor Frank Sinatra, a lenda do beisebol Joe DiMaggio, o ex-campeão de boxe Floyd Patterson, o ator Peter O’Toole, as garotas da capa da Vogue, a personalidade literária George Plimpton e o que um agente chamou de ‘gangue nova-iorquina de East Side’ de Plimpton – estes e vários outros temas da terceira parte são apresentados num estilo que se aproxima bastante da invejável e aparentemente fácil leveza de meus contistas preferidos.

Um dos primeiros exemplos desse estilo é o perfil que fiz para a Esquire em 1962, de Joe Louis, um pugilista que, embora afastado do boxe, insiste em lutar; a matéria começa com o cinqüentão Louis, cansado de três dias e noites de diversão em Nova York com algumas fãs, desembarcando no aeroporto de Los Angeles, onde é recebido por sua terceira mulher, uma advogada – uma cena em que eles se desentendem, com diálogos que parecem ter sido inspirados pela cena de rua entre marido e esposa do conto ‘Girls in their summer dresses’, de Irwin Shaw.

Primado da imaginação

Em meu perfil do diretor teatral Joshua Logan (‘A psique sensível de Joshua Logan’), eu estava no teatro certa tarde assistindo Logan ensaiar sua peça quando, de repente, ele e a atriz principal, Claudia McNeil, entraram numa discussão que, além de assumir um tom mais dramático que a própria peça, revelava algo do caráter de Logan e de McNeil que eu não poderia ter apreendido se tivesse adotado um estilo de reportagem mais convencional.

Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra (‘Frank Sinatra está resfriado’) descobri que a cooperação – ou a falta dela – por parte da pessoa a ser retratada não importa muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda que à distância. Durante o tempo que passei em Los Angeles, Sinatra não se dispôs a cooperar. Eu cheguei num momento muito ruim para Sinatra, pois ele padecia de um resfriado e de muitos outros incômodos, e não consegui a entrevista que me havia sido prometida. Mesmo assim, pude observá-lo durante as seis semanas que passei fazendo a pesquisa, assistindo a sessões de gravação em estúdio, vendo-o no set de filmagem, nas mesas de jogo de Las Vegas, e testemunhei suas mudanças de humor, sua irritação e desconfiança quando achava que eu estava me aproximando demais, e seu prazer e gentileza quando, cercado de gente de sua confiança, conseguia relaxar. Foi mais proveitoso observá-lo, ouvir as suas conversas, estudar a reação das pessoas à sua volta do que me sentar e conversar com ele, caso tivesse me concedido a entrevista.

Joe DiMaggio (‘O outono de um herói’) se mostrou ainda mais relutante, no início de minha pesquisa sobre ele em San Francisco, em 1965. Eu conhecera DiMaggio seis meses antes, em Nova York, e na ocasião ele tinha prometido cooperar.

Mas sua atitude mudou radicalmente quando cheguei à porta de seu restaurante em Fisherman’s Wharf, em San Francisco. Ainda assim, o modo tenso e irritado como ele me recebeu em San Francisco me valeu uma interessante cena de abertura que não apenas testemunhei mas da qual participei, sendo expulso do local pelo próprio DiMaggio. Consegui me reaproximar dele alguns dias depois porque lhe pedi, por intermédio de um amigo seu, também parceiro de golfe, que me permitisse acompanhar as duas duplas de jogadores em sua volta pelos dezoito buracos. Durante a partida de golfe, DiMaggio, que odeia perder bolas de golfe, perdeu três. Eu as encontrei. A partir daí sua atitude com relação a mim mudou sensivelmente; fui convidado a assistir a outras partidas de golfe e a acompanhá-lo num encontro com outros amigos no Reno’s, um bar em San Francisco onde fiz boa parte do trabalho.

Exceto uma ou outra mudança de palavras, como as que fiz visando recuperar as obscenidades pitorescas de Peter O’Toole, amenizadas pelos editores da Esquire, não atualizei nenhum dos textos deste livro. Eles se apresentam simplesmente como uma coletânea de meus primeiros trabalhos; não obstante, como já disse, existe uma relação entre estes trabalhos e os que eu viria a desenvolver em meus livros mais conhecidos. Os textos sobre Joe DiMaggio, Frank Sinatra e também o que trata do gângster Frank Costello (‘A ética étnica de Frank Costello’) contêm temas que aprofundei mais tarde em meu livro sobre a máfia – Honrados mafiosos. Esse material é retomado e desenvolvido de forma diferente e pessoal em meu livro mais recente, acima mencionado, Unto the sons, há pouco publicado pela Ivy em brochura. O último perfil de Fama e anonimato (‘Sr. Má Notícia’) descreve a vida de um obscuro jornalista especializado na redação de obituários, que conheci à época em que eu trabalhava na editoria de Notícias Locais do New York Times. Escrevi sobre ele para a Esquire, e aquela foi a primeira vez que descrevi um colega de jornalismo para os leitores de todo o país; quatro anos depois, em 1969, continuei com uma galeria desses colegas num livro sobre o New York Times que se tornou meu primeiro best-seller, O reino e o poder. A mulher do próximo nasceu de minha curiosidade pelos ‘maus pensamentos’ e pelos pecados sexuais de que as freiras da minha escola paroquial e o vigário não paravam de falar durante toda a minha infância – infância que retomei em Unto the sons.

E por aí vai. As obsessões de um escritor vêm à tona e voltam a aflorar numa espiral imprevisível; as técnicas evoluem, mas a imaginação permanece. (Agosto de 1992)