Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O espetáculo da impunidade

Desta vez a imprensa não poderá ser acusada de parcialidade. A cobertura do julgamento do jornalista Pimenta Neves foi absolutamente correta. Só houve uma falha: não perceber que a revolta com a liberdade do jornalista, enquanto recorre da sentença, revela uma indignação que vai além do fato de ele ter matado a namorada ‘por motivo torpe’. O que o julgamento revelou é a indignação popular com a impunidade que está tomando conta do país.

Já que não pode protestar contra a impunidade dos políticos acusados (o que foi exaustivamente confirmado) na CPI dos Correios, já que é mais cômodo acreditar que o presidente não sabia de nada, já que é melhor acreditar que um dia tudo entra nos eixos, o povo acaba se manifestando como pode ao dizer que Pimenta Neves está em liberdade porque é rico.

Não sejamos otimistas a ponto de achar que os populares, reunidos em volta do Fórum de Ibiúna, estão defendendo a igualdade dos sexos ou indignados com o machismo que ainda domina nossas instituições. O que o povo quer mesmo é se manifestar contra a impunidade dos ricos, e por ricos entenda-se os que têm dinheiro, os que têm projeção e os que ocupam cargos obtidos com o voto popular.

O protelado julgamento de Pimenta Neves serviu para acabar de vez com o ditado popular ‘a Justiça tarda, mas não falha’. Embora condenado, o réu vai continuar em liberdade e, como está quase com 70 anos, poderá ter a pena reduzida. Seria diferente se ele fosse pobre, se não tivesse projeção, se não contasse com um bom advogado?

‘No caso de assassinato de mulheres, 86% dos criminosos ficam livres’, afirma a professora Eva Blay, do Núcleo de Estudos da Mulher, em entrevista ao jornal O Globo (4/5/2006). Diz Eva:

‘Cinco em cada 10 mulheres assassinadas são mortas por maridos, noivos, namorados ou companheiros. O número sobe para 7 em cada 10 quando considerados os crimes cometidos por ex-parceiros. Só 14% são julgados e condenados. Muitos somem da Justiça virando foragidos. Quando são processados, muitos homens contam com a morosidade da Justiça, como foi o caso de Pimenta Neves, para ficar em liberdade’.

Impunidade revoltante

Mas para a mídia, cada vez mais, o que interessa são crimes que possam dar ibope, como os casos de Suzane von Richthofen e Pimenta. Casos que mobilizam a opinião pública e que levam gente à porta do fórum. Não seria o caso de um jornal ou revista discutir o que está por trás do comportamento dos populares, dos gritos de ‘assassino’? Será que foi a morte de Sandra que indignou as pessoas ou o que motivou os protestos foi a chance de aparecer no jornal ou na TV?

Não seria o caso de a imprensa ficar mais atenta ao seu efeito sobre o público, discutindo – com seriedade – essa tendência do jornalismo-espetáculo que, a cada dia, parece mais forte do que o jornalismo informativo e investigativo? Em vez de dizer que Pimenta foi xingado e teve o carro apedrejado, a imprensa prestaria um serviço melhor às mulheres – em sua luta por direitos iguais – se mostrasse por que, no ano da graça de 2006, os homens ainda ficam impunes quando matam mulheres por ‘amor’.

A impunidade de Pimenta Neves é revoltante. Mas é apenas um caso entre tantos que existem neste país. E que vão do marido pobre lá da periferia que mata a mulher ao deputado de Brasília que age em prol de si mesmo. Cometem crimes igualmente graves, com a desculpa de que foi por amor, ou ‘pela causa’, ou ‘pelo partido’. Continuam impunes, para desespero de todos nós.

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Jornalista