Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

O Estado de S. Paulo

TELEVISÃO
Keila Jimenez

Quem será o Alemão da vez?

‘Na terça-feira, entra no ar a oitava edição do Big Brother Brasil e com ela a dúvida: Quem serão os mocinhos e os vilões da vez? Mais importante do que a briga pelo milhão são os holofotes em cima do maniqueísmo do reality, a divisão perfeita da turma do bem contra a do mal.

Foi isso que garantiu o sucesso da última edição. A boa química entre o odiado Alberto, o Cowboy, e o herói da vez, Alemão, fez a audiência bombar no BBB7. A final do programa chegou a bater a casa dos 50 pontos de ibope, muito para uma atração que amargou 40 pontos em edições com cast fraco.

Enquanto as novelas lutam para que os bons não naveguem sempre em um mar de virtudes e os maus também tenham lá seu encanto, o BBB segue em sentido contrário. O que interessa é um vilão óbvio, e um salvador da pátria por quem o público adore torcer. Fato que o próprio diretor do programa, Boninho, admite (veja box ao lado). Mas nada que um cast bem escolhido e uma boa dose de edição não produza. E bota edição nisso.

AO VIVO

Mas vamos ao BBB8, que promete ser mais dinâmico que os anteriores.

De segunda a domingo o programa terá blocos ao vivo. Apenas a edição que irá ao ar às quartas-feiras será gravada. Segunda-feira é dia de Bial entrevistar os emparedados usando a máquina da verdade. O paredão da eliminação permanece às terças-feiras. Quarta é dia de festa. Prova do líder, às quintas. Sábado é a vez da prova do anjo (aquela que dá imunidade a outra pessoa) e mais festa. Domingo é a votação dentro da casa.

E por falar nela, o espaço de confinamento continua o mesmo, mas redecorado. Boa parte dos móveis é inspirada na Grécia antiga. Haverá ainda um quarto só com desenhos de vacas, outro com monstros e um terceiro com listras.

Sobre os novos inquilinos da casa, a Globo garante que os 14 participantes ao lado foram selecionados dentre mais de 160 mil perfis postados no site do programa.

Dessa vez, os bizarros vídeos de candidatos a uma vaga na atração deram cartaz à internet. Alguns deles bateram recorde de acessos, o que não era passaporte garantido para a casa.

Cerca de 150 autores de vídeos postados que caíram na graça da produção foram chamados para a fase de entrevistas. Dali saíram os 14 convocados.

Mas já começam a pipocar aqui e ali ´coincidências` que ligam os eleitos da vez à Globo. Entre eles, há até quem já fez ponta em novela das 8 e corre atrás de estender seus 15 minutos de fama. Pois tão certo quanto a busca da Globo por um novo Alemão é o fato de que, assim como ele, ex-BBB é esquecido tão logo estréie uma nova edição.’

Etienne Jacintho

´Recebi convites para ir a vários velórios`

‘Jennifer Love-Hewitt é aquele tipo de atriz que acredita que pode ser seu personagem. Quando interpretou Audrey Hepburn em um telefilme, Jennifer passou a se vestir apenas com figurino dos anos 50. Agora, com a Melinda Gordon em Ghost Whisperer (Sony, quintas, 22h), a atriz descobriu que possui um ´pequeno dom` mediúnico. No set da série, a atriz falou à imprensa internacional sobre essas experiências sobrenaturais.

Na última vez que conversamos, você disse que havia vivido algumas experiências sobrenaturais. Esses eventos continuam?

Sim. Sempre acontece algo aqui e ali, mas nada assustador. Apenas algumas coisinhas…

Quais coisinhas?

Qual foi a última coisa que aconteceu? Ah, estávamos filmando em uma rua atrás do set e havia umas sete ou oito pessoas da equipe. De repente começamos a sentir alguém puxando nossas roupas. Não sabemos como explicar o que aconteceu.

Você sente que tem um dom?

Tive experiências, mas isso não é algo em que eu queira me aprofundar. As experiências me provaram que, além de Melinda e do meu trabalho, o que estamos fazendo aqui é especial e que pessoas como James Van Praagh (médium e inspirador da série) possuem um dom apurado. Não sei se existem pessoas como as que Melinda vê, mas acredito que elas deixam uma energia para nos dizer algo.

Como isso afeta você?

Adoro. Pego todos os lados bons do trabalho de Melinda e nada do lado ruim. Não preciso ficar acordada até tarde trabalhando, como ela. Mas existem aspectos da vida dela que adoraria ter. Por exemplo, falar com fantasmas. Acho que seria incrível ter essa experiência ao menos uma vez.

Com qual fantasma você gostaria de conversar?

Com qualquer um, mas não com os assustadores… Infelizmente, meu dom é diferente. É um pequeno dom que me permite viver através do dom de Melinda. E agradeço por todos os dias em que sigo a jornada dela, pois é fascinante.

Você já se consultou com James Van Praagh?

Já, algumas vezes. Pude falar com Alan, um amigo meu que morreu há muito tempo e que foi um tipo de mentor para mim. Soube que era ele, porque houve coisas específicas que ele me disse. E também falei com minha avó. Foi muito legal. Foi interessante vê-lo em ação. Todos têm um dom e o dele é único e é ótimo fazer parte disso.

Foi assustador?

Não. Achei muito interessante. Quer dizer, tenho certeza de que, se eu chegasse à noite em casa e houvesse um fantasma na minha sala, minha resposta seria diferente. Seria: ´Nunca mais quero ver um fantasma! Foi muito assustador e obrigada por perguntar (risos).` Mas não. Foi maravilhoso.

Como o papel de Melinda afetou sua vida?

No primeiro ano da série, fui convidada para vários velórios (risos)! Esperei minha vida toda para ser convidada para eventos, mas não desse tipo! Foi estranho. Há pessoas que não falam nada, mas andam na minha direção e me olham estranho. Aí penso que tenho duas opções. Posso assustá-las e dizer algo como: ´Ok, sua avó está aqui´. Ou posso falar: ´Tudo bem, você está limpa.` E deixá-las voltarem às suas vidas sem saber se há ou não um fantasma em seus cangotes.’

 

Luiz Carlos Merten

Fernanda, nossa querida amiga

‘´Minha geração é a da música latina – mambo, bolero, conga. Depois vieram o chachacha e o twist. Até o twist ainda arrisquei, depois parei.` Quem fala é Fernanda Montenegro, a grande dama da interpretação no País – número um no teatro, cinema e televisão -, que precisou voltar às aulas de dança (com Carlinhos de Jesus) para fazer sua personagem na minissérie Queridos Amigos, de Maria Adelaide Amaral.

Em dezembro – no ano passado! -, quando esteve na cidade para promover o lançamento de seu filme estrangeiro, O Amor nos Tempos do Cólera, adaptado do romance do Prêmio Nobel Gabriel García Márquez, Fernanda comentou do seu entusiasmo por participar da nova minissérie da autora de Um Só Coração.

´A gente tem uma tradição de falar muito e muitas vezes não dizer nada. Somos um País muito verborrágico e o bom da Maria Adelaide é que ela é contida. Escreve só o necessário. Nos textos dela não existe gordura, nada supérfluo.` Há duas semanas, Fernanda imaginava que começaria logo a gravar Queridos Amigos. ´Denise Saraceni é uma diretora muito meticulosa, que gosta de preparar bem os atores. É muito comum com a Denise a gente ensaiar como se fosse para teatro.´

As aulas de dança faziam parte da preparação, porque Iraci, a personagem de Fernanda, é uma mulher que adora dançar. Só que passaram as festas de fim de ano – o Natal e o ano novo – e Fernanda ainda continua esperando o início das gravações de sua personagem.

Queridos Amigos tem estréia anunciada para 18 de fevereiro. A data tem sido anunciada pela própria Globo, inclusive em publicações impressas como o Estado, onde saiu nesta semana um anúncio com foto dos principais personagens reunidos. Depois de contar, em A Casa de Sete Mulheres, a história da Revolução Farroupilha por meio de um romance envolvendo uma de suas figuras emblemáticas – o italiano Giuseppe Garibaldi -, e de revisar o modernismo paulista em Um Só Coração, Maria Adelaide Amaral volta-se agora para os anos de chumbo da ditadura militar, contando as histórias destes guerrilheiros e guerrilheiras que combateram o regime. Não foi uma fase fácil da vida do País nem dessas pessoas. Muitas carregaram cicatrizes pela vida afora e é um pouco sobre isso que Maria Adelaide fala – nós que amávamos tanto a revolução.

De todas as suas minisséries, talvez seja a mais ´geracional´, no sentido de que a autora está falando dos sonhos e fracassos de sua geração. Iraci, a personagem de Fernanda Montenegro, é uma viúva, funcionária pública aposentada, que adora dançar. Mulher extrovertida e exuberante, ela tem um amante, com o qual, no entanto, não quer compromisso. Iraci vive dizendo a Alberto, o Betão (que será interpretado por Juca de Oliveira), que o casamento é o túmulo do amor e, tanto isto é verdade, que ele é casado e busca satisfação na relação extraconjugal com ela. Iraci poderia aproveitar mais a vida, mas ela carrega um ônus. É mãe de Bia, ex-presa política, torturada nos porões da ditadura. Bia nunca conseguiu superar completamente a experiência. Não tem emprego. Depende da mãe.

Bia é Denise Fraga e a minissérie, como diz Fernanda, vai reunir os melhores atores desta geração que está hoje batendo nos 50 anos. Ela considera muito positiva a atitude de Iraci, que continua querendo ter uma vida na terceira idade. ´Não estamos inventando nada, Maria Adelaide nem eu. A gente está simplesmente dando voz, e vida, a uma temática que está aí.´’

 

MÍDIA & POLÍTICA
Eugênia Lopes

´Confissão de Dirceu põe em dúvida argumento de que Lula nada sabia´

‘Sub-relator de movimentação financeira da CPI dos Correios, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) considerou uma confissão de crime as declarações do ex-ministro José Dirceu de que recursos provenientes de caixa 2 financiaram a construção da sede do PT em Porto Alegre – segundo entrevista à revista Piauí, ´era com mala de dinheiro` que os recursos para pagar a obra chegavam. Para o tucano, o objetivo de Dirceu é enfraquecer o ministro da Justiça, Tarso Genro, petista gaúcho que nos últimos anos foi um crítico contundente dos métodos usados pelo ex-ministro da Casa Civil no comando do PT.

Os ataques do ex-ministro foram dirigidos mais explicitamente aos petistas Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre, e Olívio Dutra, presidente do partido no Rio Grande do Sul. De acordo com ele, ´esse pessoal` procurava o então tesoureiro do partido, Delúbio Soares, peça-chave do esquema do mensalão, para pedir dinheiro. ´Chegava para Delúbio e falava: ?Delúbio, preciso de 1 milhão.?` Quando não recebiam, contou o ex-ministro, acusavam a direção do partido de autoritária e de privilegiar sua própria corrente. ´O pobre do Delúbio tinha de ir aos empresários conseguir doações. Aí, estoura o mensalão e esse pessoal vem dizer que o Delúbio era o homem da mala. O que não dizem é que a mala era para eles´, declarou Dirceu na entrevista, na qual também dirigiu farpas para a ex-senadora Heloísa Helena (AL) – que deixou o PT para fundar o PSOL.

O episódio valeu reações indignadas dos petistas gaúchos e uma cobrança do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Marco Aurélio Mello, para quem a Receita Federal deve investigar o caso.´Se a sede foi construída com dinheiro de caixa 2, que ela fiscalize. Ela não precisa da quebra generalizada do sigilo de dados para isso´, defendeu anteontem. Para Marco Aurélio, a Justiça Eleitoral não pode investigar um assunto já passado. Ainda na sexta-feira, Dirceu negou em nota ter afirmado que a sede do PT em Porto Alegre foi construída com recursos de caixa 2 e pediu desculpas pelos ´transtornos` causados por sua entrevista. ´Deixei claro que houve uma denúncia que a Justiça rejeitou por falta de provas´, sustentou. Mas o estrago estava feito.

Para Gustavo Fruet, as declarações justificam até a abertura de nova investigação parlamentar sobre o caso, pois põem em dúvida o argumento de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não sabia do esquema do mensalão. ´Era o braço direito do presidente da República´, observa nesta entrevista ao Estado.

As declarações dadas pelo ex-ministro José Dirceu servem para a abertura de uma nova CPI?

Sou favorável a outra CPI, até porque muitas coisas não acabaram de ser investigadas. Existem informações enviadas à CPI dos Correios que até hoje não foram abertas, porque estão sob sigilo. Esse material está todo parado e só pode ser aberto se for criada uma comissão de inquérito sobre o mensalão. Mas acho muito difícil porque não temos maioria na Câmara para instalar uma CPI. Veja o caso da CPI da Crise Aérea, que só começou a funcionar por decisão do Supremo Tribunal Federal.

Nada será feito com a confissão do ex-ministro?

Primeiro, eu acredito que o advogado do ex-ministro José Dirceu não foi consultado sobre essas declarações. Acho que o procurador-geral da República deve juntar essa entrevista ao inquérito do mensalão, que está em andamento no Supremo Tribunal Federal. O Zé Dirceu sempre negou que soubesse do esquema montado pelo ex-tesoureiro petista Delúbio Soares. Essa confissão do ex-ministro reforça também o fato de que o Delúbio não agia sem o respaldo do partido.

As declarações do ex-ministro atingem o presidente Lula?

Isso coloca em dúvida o argumento de que o presidente Lula não sabia de nada. O Zé Dirceu fez uma confissão e era o ministro da Casa Civil de Lula. Era o braço direito do presidente da República.

Qual o objetivo de José Dirceu em confessar a existência de caixa 2 para construir sede do PT no Rio Grande do Sul?

O Zé Dirceu retomou um tema que estava adormecido. Acho que ele fez isso para enfraquecer o ministro Tarso Genro. Além disso, o ex-ministro está contradizendo toda sua defesa, que afirma que ele não sabia de nada. Para mim, essas declarações são um recado interno. Existe uma briga interna no PT. E o Zé Dirceu se diz vítima do que chamou de falso moralismo de integrantes do partido, principalmente dos gaúchos.

O que a oposição pode fazer com essa denúncia?

Pela Câmara, nós podemos fazer um pedido de informação ao ministro Tarso Genro sobre as declarações de Zé Dirceu. Para mim, o mais grave é contra o Tarso Genro, porque ele é o ministro da Justiça. Ele tem de se explicar. O Zé Dirceu pode ter bala na agulha e pode estar querendo acuar o Tarso Genro. O ministro tem de vir a público esclarecer isso. Também vamos pedir para que essas denúncias sejam incluídas e investigadas no inquérito ainda em andamento na Polícia Federal sobre o mensalão.

É o caso de convocar o ministro Tarso Genro?

É claro. Mas onde isso tem chances de acontecer é no Senado. Na Câmara é pouco provável porque o governo tem maioria para derrubar nossos pedidos. Já no Senado é mais fácil, porque a oposição é mais forte. Como tem relação com o mensalão, acredito que o ministro poderia ser convocado para se explicar na Comissão de Fiscalização do Senado. Qualquer dos envolvidos pode ser convocado por uma comissão permanente da Câmara ou do Senado para dar explicações.

Quem é:

Gustavo Fruet

É advogado e está em seu terceiro mandato na Câmara dos Deputados pelo PSDB

do Paraná.

Foi sub-relator de movimentação financeira da CPI do Correios.

Sua primeira vitória em eleições foi para vereador em Curitiba em 1986, pelo PMDB.’

 

VENEZUELA
Ruth Costas

Após série de fiascos, Chávez faz menção de adotar discurso ´light´

‘Tradicionalmente, a virada do ano costuma ser uma época de balanços, reflexões e revisões estratégicas, mas partindo de Hugo Chávez a mudança surpreendeu. Conhecido por seu caráter combativo – que o faz vociferar contra os ´inimigos` por horas e gabar-se de nunca voltar atrás -, o presidente venezuelano entrou em 2008 com um discurso relativamente conciliador, no que, segundo analistas, parece ser um recuo tático após um longo período em que ele se sentiu onipotente.

´Queremos o caminho da paz. Que haja um forte debate ideológico e político, mas em paz´, disse Chávez, apenas um mês depois de ameaçar ´varrer a oposição´, caso ela se mobilizasse contra seu governo. As declarações foram feitas num evento no qual o presidente anunciou uma anistia para os envolvidos na tentativa frustrada de golpe contra seu governo em 2002 e funcionários da PDVSA que, na época, participaram de uma greve para desestabilizá-lo. ´Precisamos virar essa página´, disse.

No mesmo dia, Chávez também anunciou mudanças em sua ´revolução bolivariana´. ´Há falhas latentes no processo revolucionário e elas estão à vista´, admitiu ele numa entrevista em que preferiu não usar o termo ´socialismo do século 21` – uma constante em seus discursos do início de 2007. ´Toda a revisão leva à correção de idéias, planos, programas e dos trabalhos do governo. Vou pôr em prática os três ?Rs? – revisão, retificação e reimpulso.` Para arrematar, ele reconheceu que a TVES, televisão estatal criada para substituir a opositora RCTV, que teve de sair do ar por causa de uma polêmica decisão do governo, é um fracasso de audiência. ´Quase ninguém assiste a esse canal. Para mim dói muito dizer isso, mas é verdade´, lamentou.

Dada a imprevisibilidade do presidente venezuelano, não há como saber se a mudança é pra valer, ou se, como aposta a maior parte dos analistas, é apenas uma trégua temporária como a que se seguiu ao golpe de 2002, quando ele prometeu diálogo. De fato, na quinta-feira, ao anunciar mudanças em seu gabinete, ele já criticava os grupos estudantis que pediam a ampliação da anistia para que os políticos foragidos da Justiça também fossem indultados.

ERROS ESTRATÉGICOS

Por outro lado, há poucas dúvidas sobre as razões desse recuo. ´O presidente deu um passo atrás porque uma série de erros estratégicos pôs seu governo contra a parede´, diz Francine Jácome, diretora do Instituto Venezuelano de Estudos Sociais e Políticos, em Caracas. ´Após oito anos no poder, esse foi sem dúvida o ano das decepções para Chávez tanto interna quanto externamente.`

Após vencer as eleições de dezembro de 2006 com 61% dos votos, o líder venezuelano entrou em 2007 prometendo usar os recursos do petróleo para implementar no país uma experiência socialista radical. No plano externo, a idéia era fazer essa revolução espalhar-se como uma epidemia ´roja, rojita` pelos países da região. Doze meses depois, nenhum dos dois objetivos está perto de se concretizar. Os analistas apontam ao menos três importantes derrotas do presidente no último ano.

A primeira refere-se ao desgaste de sua imagem internacional. ´O fiasco da operação para resgatar os reféns que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) prometiam entregar a Chávez encerrou um ano em que a simpatia dos europeus pelo presidente venezuelano minguou e a sua influência em países latino-americanos motivou grandes polêmicas´, opina Manuel Caballero, considerado um dos principais historiadores da Venezuela. ´Chávez fez um papelão diante de representantes dos países chamados para avalizar a entrega dos seqüestrados.´

Na Argentina, o grande escândalo do ano foi a apreensão de uma maleta com US$ 800 mil não declarados de um empresário venezuelano que viajava com funcionários da PDVSA, a estatal petrolífera que enche os cofres de Chávez. Na Bolívia, o governo voltou a ampliar seus negócios com a Petrobrás, após um ano em que a parceria com a PDVSA mostrou-se ineficiente. Lá, a rejeição de alguns setores da população à influência de Chávez é tanta que a embaixada venezuelana tem sido alvo de diversos ataques.

Chávez brigou com o presidente colombiano, Álvaro Uribe, bateu de frente contra o Congresso brasileiro e ouviu do rei espanhol, Juan Carlos, um sonoro e inesperado ´cala a boca` na última Cúpula Ibero-Americana. ´Obviamente, o interesse de todos esses países em fazer negócios com a Venezuela persiste por causa do petróleo e da quantidade de dinheiro que circula por aqui´, diz Carlos Romero, autor do livro Brincando com o Globo, sobre a política externa de Chávez. Isso explicaria, por exemplo, o apoio à entrada do país no Mercosul. Mas, segundo Romero, tal interesse nem de longe significa compromisso com os princípios da revolução chavista, como o presidente venezuelano esperava. ´A América Latina vive um momento muito fluido em termos econômicos e políticos para envolver-se em experiências radicais e os países mais propensos a seguir o caminho de Chávez, como a Bolívia, enfrentam obstáculos imensos para isso´, afirma.

TRIUNFO DO ?NÃO?

O segundo grande revés para Chávez – e talvez o mais significativo dos três – foi a vitória do ´não` no referendo sobre a reforma constitucional proposta pelo presidente. Após ganhar nove processos eleitorais consecutivos, Chávez estava confiante de que incluiria mais esse na lista. Ao final, porém, não conseguiu levar às urnas nem seus aliados mais próximos. Votaram em favor da reforma 4,3 milhões de eleitores, 1 milhão a menos que o número de inscritos no Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), criado pelo presidente para reunir todos os ramos do chavismo. ´Com a máquina eleitoral usada nesse processo é surpreendente que a proposta tenha sido rejeitada até por chavistas´, diz Romero.

Entre os pontos mais polêmicos estavam a reeleição presidencial ilimitada e a criação de outros tipos de propriedade além da privada, como a coletiva e a social. ´O projeto foi rejeitado porque, na percepção da população, concentrava muito o poder nas mãos do presidente e contrariava princípios importantes da democracia, como a pluralidade de opiniões políticas´, diz o cientista político Oscar Reyes, professor da Universidade Católica Andrés Bello. ´Além disso, as pesquisas demonstram que a população venezuelana não quer saber dessa história de socialismo porque todos têm muito medo que o país acabe como Cuba. A aceitação seria maior se a proposta fosse uma social-democracia.`

O referendo também refletiu o descontentamento da população em relação a uma série de problemas econômicos e sociais que ganharam impulso nos últimos anos e pelos quais pouco a pouco o presidente começa a ser responsabilizado.

Apesar de todos os recursos que entram na Venezuela com a venda do petróleo, a violência é endêmica, não há uma política habitacional sólida e as prateleiras dos supermercados estão vazias por problemas no abastecimento de produtos básicos como carne, leite e açúcar. A inflação, que em 2007 bateu em 22,5% – o maior índice da região -, também é implacável sobre o poder de compra dos mais pobres. ´Os venezuelanos simplesmente não conseguem entender por que não conseguem comprar um litro de leite se o nosso país está ganhando tanto dinheiro´, diz Reyes. ´Todos estão começando a relacionar essa dificuldade à falta de estímulos para o setor privado investir na produção e até quem simpatiza com o presidente já percebeu que, se algo está errado, é por culpa do governo.`

As mudanças no gabinete de Chávez são, em parte, uma tentativa desesperada de mostrar que algo está sendo feito para solucionar esses problemas. Ao longo da semana, o governo anunciou alterações nos rumos das políticas econômica e antiinflacionária.

RCTV

Outra derrota do presidente venezuelano no último ano, segundo os analistas, foram os custos causados pelo fim das transmissões da opositora RCTV, a emissora mais popular da Venezuela, com 40% de audiência. Após cinco décadas no ar, ela teve seu sinal cortado em maio porque Chávez se recusou a renovar sua licença. A medida foi vista como uma decisão pessoal do presidente, que acusava os diretores do canal de participarem do golpe de 2002. Na cabeça dos venezuelanos, por um capricho do presidente eles ficaram sem a novela, o programa de auditório favorito e o humorístico do domingo. Pegou muito mal. Para piorar, a RCTV foi substituída por uma emissora estatal com uma programação ´educativa` que não consegue 3% na audiência – a TVES. Nas ruas, essa foi a primeira vez que se ouviram aliados de Chávez criticarem abertamente uma medida do presidente. ´A decisão afetou os venezuelanos mais pobres, que não têm TV a cabo´, diz Francine.

Também foi o caso da RCTV que começou a mudar a cara da oposição venezuelana – outra transformação importante que se consolidou em 2007. Saíram de cena os empresários e elites políticas tradicionais – muitas vezes, vinculados à tentativa de golpe de 2002 – e entraram estudantes, intelectuais, artistas e uma nova classe política, mais jovem e com um discurso mais palatável em defesa dos princípios democráticos e melhoras sociais. O movimento estudantil, adormecido por duas décadas no país, tomou as ruas das grandes cidades venezuelanas e até partidos da coalizão chavista, como o Podemos, começaram a dizer que o presidente já estava indo longe demais.

Ainda assim, a falta de líderes fortes, capazes de vencer eleições, continua a ser um dos obstáculos para que a oposição possa forjar uma alternativa viável a Chávez. ´O presidente ainda é muito popular por seus programas sociais e discurso em favor dos mais pobres – isso não há como negar´, diz Caballero. Ele explica que Chávez tem muitos recursos e uma série de mecanismos para levar a cabo suas reformas de outras maneiras, agora que o referendo se mostrou uma opção inviável. ´O que 2007 mostrou ao presidente é que isso lhe dará muito mais trabalho do que ele imaginava. A popularidade não lhe concede um cheque em branco para promover todas as reformas que ele quiser, onde e como quiser.´’

 

CRIME
O Estado de S. Paulo

Cinegrafista de TV é assassinado a tiros

‘O jornalista Valter Lessa de Oliveira, de 53 anos, que atuava como cinegrafista da TV Assembléia, foi executado na tarde de ontem, com quatro tiros na cabeça, em um ponto de ônibus na periferia de Maceió. De acordo com a Polícia Militar, o principal suspeito é um traficante conhecido como Aranha – Oliveira teria gravado imagens do criminoso.’

 

BRASIL, HISTÓRIA
Ubiratan Brasil

Dos salões à senzala

‘Um embaixador elegante e gentil, culto e bem falante, um verdadeiro gentleman. Também um intelectual abolicionista, cujo trabalho foi decisivo na libertação dos escravos. E ainda um homem de bigodes longos, voz imperiosa, olhos penetrantes, dono de um charme irresistível. Diversas facetas apresentava Joaquim Nabuco (1849-1910), dono de atitudes liberais ao mesmo tempo em que defendia a monarquia, que tanto lutava contra o imperialismo como defendia laços com os americanos.

Tal personalidade singular (seus livros fascinaram políticos tão díspares, como Ernesto Geisel e Fernando Henrique Cardoso) motivou Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap, a debruçar-se sobre mais de 700 cartas inéditas e escrever Joaquim Nabuco – Os Salões e as Ruas (354 págs., R$ 39,90), recentemente lançado pela Companhia das Letras. Neste belo perfil biográfico, Angela recupera um momento decisivo da história brasileira (o fim da monarquia com a chegada da República) para retratar o homem que dialogava com várias tendências ideológicas (o monarquista pioneiro na defesa da liberação dos escravos, ato que acelerou a própria queda do regime) e que viveu uma paixão não consumada com Eufrásia, mulher que pediu para ser enterrada sobre cartas enviadas por ele. Sobre o trabalho, Angela respondeu às seguintes questões.

Nabuco não previa que, ao apoiar o abolicionismo, encurtava o caminho da monarquia e favorecia a implantação da República?

O diagnóstico dele era que a monarquia precisava passar por reformas estruturais para sobreviver. A geração 1870 inteira defendia reformas políticas, econômicas e sociais que modernizassem o País. A maioria acreditava que a monarquia era inepta para fazê-las. Por isso mesmo, Nabuco pensava, a única possibilidade de sobrevivência da monarquia consistia em fazer, ela mesma, reformas drásticas, mexendo nos próprios pilares da sociedade imperial, a escravidão e a grande propriedade. A abolição da escravidão e a reforma agrária seriam, na opinião dele, condições para a modernização do País, isto é, dariam base tanto para o desenvolvimento do capitalismo quanto da democracia. O que Nabuco viu em O Abolicionismo e não quis ver depois do 13 de Maio é que a monarquia se assentava sobre a escravidão e que, por conseqüência, a extinção de uma era o dobre de finados da outra.

Durante o período dele como embaixador brasileiro nos EUA, você acredita que ele foi ingênuo ao acreditar que a influência americana seria mais benigna que a européia?

Havia naquele momento, o começo do século 20, uma disputa entre imperialismos, todos muito belicosos. A Alemanha, por exemplo, tinha uma política externa bastante agressiva. Nabuco sabia bem que os Estados Unidos também eram imperialistas, mas achava que os americanos podiam funcionar como um escudo, barrando o imperialismo europeu sobre as Américas Central e do Sul. Nisso, a postura dele foi bastante realista. No que ele era mais otimista que a maioria – que o barão de Rio Branco, por exemplo -, era imaginar que fosse viável uma aliança privilegiada dos Estados Unidos conosco, em pé de igualdade – ou quase.

Você diria que a trajetória política de Nabuco chega a ser premonitória, especialmente em relação às obrigações do Estado?

Tanto Nabuco quanto a maioria dos membros do movimento reformista da geração 1870 entendiam que a escravidão era uma mudança decisiva, mas longe de suficiente. Duas questões estavam na agenda desde bem antes da Abolição: o que fazer com o ex-escravo e quem colocar no lugar dele. Nabuco, e seu companheiro André Rebouças, pensavam em educar o ex-escravo, dar-lhe profissão e, eventualmente, terra. Mas queriam também o que então se chamava ´imigração de colonização´, isto é, a atração de famílias com uma pequena poupança, que operariam como dinamizadoras da economia. Logo depois da Abolição, Nabuco e Rebouças começaram a fazer projetos nesse sentido, pois tinham o diagnóstico de que, sem políticas públicas específicas, os ex-escravos permaneceriam em situação de subcidadania. No entanto, tanto o último gabinete da monarquia quanto o primeiro governo republicano foram pressionados pelas reclamações de cafeicultores e ex-donos de escravos. A República acabou tomando a decisão de curto prazo, substituindo os escravos pelos imigrantes proletários, sobretudo italianos, e praticamente nada fez em prol dos ex-escravos, postergando a solução do problema que, como você diz, se arrasta até hoje.

Como era a relação de Nabuco com a política?

Ambivalente. A princípio, não tinha vontade de ingressar nela. No entanto, no século 19, os pais definiam as profissões dos filhos, normalmente mantendo-os na própria. Filho de político, Nabuco tinha baixas chances de se tornar outra coisa. Mesmo a diplomacia era uma carreira conjugada com a política, não era ainda autônoma. Há várias cartas dele lamentando ter de virar deputado, mas, quando chegou ao Parlamento, tomou gosto pela coisa. O que Nabuco quando jovem não tinha, porém, e que era fundamental na política aristocrática, era a reverência pelos chefes partidários. A atitude de independência que assumiu permitiu-lhe brandir sua bandeira, a abolição, mas também o impediu de fazer a carreira canônica de ´estadista do Império` – que ele mais tarde descreveu com tanta admiração.

Nabuco é um bom exemplo de como é possível conciliar vida política e verdadeiro engajamento na atividade intelectual?

Na verdade, Nabuco pertence a um tempo em que esses dois mundos ainda não tinham se separado. No século 19, em toda a parte, política e vida intelectual eram dois lados da mesma carreira. Tanto assim que grandes políticos europeus escreviam ensaios de interpretação e, mesmo, caso do primeiro-ministro inglês Disraeli, literatura. O mesmo ocorria dentre nós. José de Alencar é o melhor exemplo de político bem-sucedido e romancista de sucesso. No fim do século 19, começa uma especialização da atividade intelectual que, em muitas partes, passa a ser exercida como uma carreira própria, associada cada vez mais à docência. A política, de seu lado, também gradualmente constitui uma carreira profissional, com exigências próprias. Nabuco viveu justamente esse momento de transição, que obrigou muitos membros de sua geração a optar por um de dois caminhos. Ele próprio não foi político e intelectual simultaneamente. A maior parte de seus escritos foi produzida já na República, quando ele, que se manteve monarquista, estava alijado da política militante.

Quando exaltou o livro Minha Formação, de Nabuco, em 2000, Caetano Veloso partiu daquela análise sobre a cultura e o povo brasileiros para falar, por exemplo, da incapacidade do cidadão de obedecer às leis de trânsito. Qual a melhor leitura a se fazer hoje dos escritos de Nabuco?

Acho que há dois Nabucos a serem lidos. Há o autor de O Abolicionismo e de outros panfletos políticos dos anos 1880. Esses textos são clamores por reformas profundas – na estrutura produtiva, na organização do Estado e, mesmo, nos costumes – e explicações muito persuasivas sobre a necessidade delas. E há os livros da década de 1890 em diante, donde se incluem a biografia que fez do pai, Um Estadista do Império, e a autobiografia Minha Formação. Neles, Nabuco evoca e enaltece a tradição monárquica e aristocrática. São textos nostálgicos, de reação à sociedade republicana. Os três livros são notáveis tanto no estilo quanto na análise – para dizer uma única palavra: excelentes. Mas apontam em direções diferentes, um para a modernização, os outros dois para a conservação. A escolha da melhor leitura vai depender, portanto, dos próprios pendores do leitor.

Em sua vida pessoal, é possível dizer que Nabuco teve menos sucessos que na vida pública?

Depende um pouco do ângulo. A vida amorosa foi muito atribulada até os 40 anos, por conta do casa/não-casa com Eufrásia. Agora, se considerarmos a vida pessoal como rede de amizades e relações pessoais, aí o Nabuco foi extremamente bem-sucedido. Era realmente amado pela maioria das pessoas que conheceu. Esse seu magnetismo pessoal foi, aliás, um de seus grandes trunfos na política e na diplomacia.’

 

Antonio Gonçalves Filho

Um senhor de engenho briga pelos escravos

‘Traçar o perfil de um homem público não é das tarefas mais fáceis, ainda mais quando a vida privada e a pública se confundem a ponto de tornar impossível distinguir em que ponto começa uma e termina a outra. O liberal abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), cujo papel foi decisivo na libertação dos escravos no Brasil, foi um caso não de dupla, mas de tripla personalidade. Antes de ser herói nacional, o recifense Nabuco foi um dândi que a vida se encarregou de ver transformado em católico pai de família e político reformista, um homem que, no balanço final da vida, concluiu ser apenas um conformista. Como observa a socióloga Angela Alonso em seu livro Joaquim Nabuco – Os Salões e as Ruas (série Perfis Brasileiros da Companhia das Letras, 354 págs., R$ 39,90), o militante da causa abolicionista ´se reinventou três vezes ao longo da vida´, adaptando-se às diferentes situações graças à erudição, às boas maneiras e ao seu poder de sedução.

Do ´dândi frívolo` a ´embaixador americanista´, passando por ´político arrebatado´, Nabuco integrou-se à política do Império por identificação com a tradição aristocrática e também porque a proclamação da República significaria, de fato, não apenas o fim de um regime, mas de uma era – adaptável que fosse, Nabuco jamais teve vocação para a autofagia. Tanto que o advento da República significou para ele a necessidade de colocar mais uma vez os pés na estrada, de volta a um país onde a monarquia continuava a reinar absoluta. Com o exílio da família imperial e a formação do governo provisório em 1889, a primeira atitude de Nabuco foi a de vender a casa que comprara em Paquetá e partir para a Inglaterra no ano seguinte.

Nabuco e os republicanos apenas viriam a se aproximar quase dez anos depois, em 1898, quando Campos Sales venceu o candidato jacobino Lauro Sodré, ainda assim porque lhe interessava usar a República como trampolim. Um ano depois Nabuco voltou a Londres, nomeado para defender o direito brasileiro sobre o território das Guianas, enquanto seu amigo Machado de Assis publicava aqui Dom Casmurro. Essa amizade com o fundador da Academia Brasileira de Letras, para a qual Nabuco foi eleito secretário-geral em 1897, é pouco explorada pela autora no livro, que preferiu destacar a polêmica entre ele e José de Alencar. Teria sido interessante verificar se a personalidade de Nabuco, de alguma forma, inspirou ou não o amigo Machado a criar o conselheiro Aires na história dos dois gêmeos que divergem sobre a monarquia e a república em Esaú e Jacó.

A exemplo do machadiano conselheiro Aires, Nabuco sempre preferiu manter cautela em relação a novidades. No ano de sua morte, em 1910, vitimado por congestão cerebral, estourou a revolução mexicana. Freud, nesse mesmo ano, perambulou pelos Estados Unidos divulgando seu métier. Nabuco passou ao largo tanto da insurgência política antilatifundiária de Zapata como da novidade psicanalítica vinda da Áustria. Nem ao menos lia os modernos, preferindo Tito Lívio. No fim da vida, seu poder de sedução era tristemente nulo: a leitura de seus textos provocava, no máximo, sono da audiência, como Rui Barbosa. Os tempos de ativismo político já eram pura nostalgia quando Nabuco morreu em Washington. Embora reverenciado por senadores americanos, não era nem uma sombra do abolicionista popular que virou rótulo de cerveja na época do movimento pela fim da escravidão.

O principal ponto de discussão do perfil traçado pela socióloga Angela Alonso, aliás, diz respeito à atuação de Nabuco na libertação dos escravos. Moderado, estava longe do radicalismo e mesmo atrás de sua geração, essencialmente reformista, defende a autora. De qualquer modo, conclui, Nabuco era branco e tinha trânsito por conta de sua origem, ao contrário do briguento Patrocínio e do tímido Rebouças, que, além de tudo, eram mulatos, sem a menor chance de assumir a liderança ou corporificar o movimento abolicionista. Entre a possibilidade de apoiar a República e a abolição, Nabuco preferiu ficar com a última não apenas por convicção ideológica e influência do líder abolicionista inglês William Wilberforce, mas para herdar a bandeira política de seu pai senador, o homem que financiou todas as suas extravagâncias da juventude.

É nesse estágio da vida de Nabuco que a autora se detém por mais tempo, contando seu romance com Eufrásia Teixeira Leite, pioneira mulher de negócios que arriscou dinheiro – e reputação – aplicando nas bolsas internacionais. Essa independência atraiu e repeliu Nabuco. Ele, por precaução, preferiu a segurança da bolsa de Evelina Torres Soares Ribeiro, mesmo sem ter se impressionado com sua dona. No fundo, o adjetivo oportunista lhe caía bem como os trajes de ocasião que vestiu nas três vidas que teve. Enfim, um Zelig da política.

PERFIL

Político, escritor e diplomata, Joaquim Nabuco escreveu livros e manifestos, tornando-se líder do movimento abolicionista que garantiu a aprovação no Senado e promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Foi também um cortesão. Tentou se equilibrar entre a tradição e a reforma, dividido entre a lealdade ao imperador e a sedução dos republicanos, que lhe ofereceram cargos de prestígio, entre eles o de embaixador em Washington, em 1905.’

 

Leonardo Trevisan

A difícil passagem para o mundo dos brancos

‘O que é mais efetivo para a democracia racial brasileira: um casal negro no anúncio para vender apartamentos de alto luxo, ou a imposição de cotas raciais na USP, a melhor universidade pública do País? É curioso, mas Florestan Fernandes, professor aposentado pelo regime militar, deputado pelo PT, que conheceu o sindicalista Lula dizendo: ´não me ajoelho para o deus operário´, que passou a vida combatendo o mito da democracia racial brasileira, provavelmente responderia a pergunta sobre apartamentos ou cotas discutindo sua premissa. Será que entrar nos melhores lugares dos brancos resolve o problema dos negros no Brasil?

Aliás, tratar dessa dúvida foi o que fez Florestan no livro de 1972, O Negro no Mundo dos Brancos (Global, 315 págs., R$ 45). Três décadas e tanto depois, pouca coisa se moveu nessa situação. Por exemplo, os dados do IBGE de 1960 sobre a porcentagem de estudantes negros nos cursos universitários de elite são praticamente os mesmos de hoje. No livro, Florestan reconhecia que sua maior preocupação era pôr em evidência o ´sentido global e as conseqüências fatais do ajustamento` do negro e do mulato à sociedade brasileira. Antes de atingir a democracia, o negro e o mulato têm de ´aceitar a padronização e a uniformização` e, então ´eles se perdem como raça e como raça portadora de cultura´. A imagem de Florestan é forte e objetiva: as portas do mundo dos brancos ´não são intransponíveis´, mas para atravessá-las os negros passam por um processo de ´branqueamento´; nele ´unidade nacional, civilização moderna e dominação dos setores privilegiados dos brancos` estão misturados e darão as cartas do jogo.

É preciso cautela para entender o que queria dizer Florestan com essa imagem. Embora parcela da população negra participe, até em número considerável, das ´conquistas do progresso` não se pode afirmar, como garantia o ex-professor da USP, que eles compartilhem ´coletivamente das correntes de mobilidade social vertical da sociedade de classes´. Ele reconhecia que essa conclusão contrariava o que se costumava dizer sobre democracia racial e ponderava: é que se confundem padrões de tolerância, imperativos no decoro social com ´igualdade racial propriamente dita´. Com rigor científico, via estatísticas do IBGE, Florestan mostrava que negros e mulatos estavam longe de participar de oportunidades ocupacionais em condições de igualdade com o branco. Depois de décadas, o que mudou? Há meses, a mesma fonte, o IBGE, mostrou as diferenças salariais entre brancos e negros, com idêntica escolaridade.

No Brasil, na opinião de Florestan, o negro não entrou no mundo dos brancos. Foi o branco que construiu, na visão dele, o mito de que o negro entrou no seu mundo, por meio do ´preconceito de não ter preconceito´, a base do mito da democracia racial brasileira. A atitude dos brasileiros diante do ´preconceito de cor` é de considerá-lo ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para os que praticam). O autor do clássico Integração do Negro na Sociedade de Classes (esgotado) notou que essa polarização de atitudes é fruto do ethos católico e está tão forte, no presente, pelo modo como se desagregou a sociedade tradicional. No passado, a escravidão minava os mores cristãos por pedir aos católicos uma visão de mundo cristã, o lado de uma prática adversa ´às obrigações ideais do católico´. Mesmo com o fim da sociedade tradicional, o branco continuou exibindo severa consciência de sua responsabilidade na degradação do negro, ao mesmo tempo em que encontrava grande dificuldade em converter em realidade o ideal de fraternidade cristão católico que professava. Era, no dizer de Florestan, uma típica ´acomodação contraditória´, construindo uma moral reativa que gera o ´preconceito de não ter preconceito´. Ao contrário do branco reconhecidamente racista, a ideologia racial dominante no Brasil é construída por ´subterfúgios´. Nesse quadro, questão racial é vista a partir do risco da imitação, da influência externa (´inovação estranha ao caráter brasileiro´), ou pior, do ´complexo do negro´.

No mundo do trabalho, a questão da raça assumiu outras características. Por exemplo, a imigração européia, acelerada no final do século 19, coincidindo com a Abolição, teve papel essencial no modo de inclusão do negro na sociedade de classes. O maior problema do negro recém-liberto estava na incapacidade da sociedade nacional de criar economia capitalista expansiva capaz de absorver o ex-escravo. Como perdia a competição com o imigrante livre, o negro se converteu na expressão de Florestan em ´resíduo racial´. Perdeu a condição social que tinha no regime da escravidão e se transformou na categoria mais baixa da ´população pobre´, exatamente quando alguns estratos dessa população participavam das novas oportunidades do trabalho livre. Nesse quadro forma-se um monopólio das melhores possibilidades pelos brancos. A imagem mais significativa de Florestan é que a revolução burguesa barrou o negro da cena histórica brasileira.

Na grande acomodação contraditória que vive a chamada democracia racial brasileira, o cidadão consciente reclama e exige que negros não tenham só o papel de serviçal na novela das oito, mas não aceita sequer participar do debate sobre cotas raciais no trabalho ou na universidade por considerar a iniciativa um racismo às avessas. A questão não está no fato de cotas representarem boa ou má solução (um outro problema), mas na forma que toma o debate, monotonamente repetitiva da ´acomodação contraditória` que Florestan percebeu nos anos 60.

É possível também criticar Florestan, como muita gente fez nos últimos anos. Enfim, os negros libertos não agiam apenas passivamente, na lógica da sobrevivência e nada mais. Muitas vezes enfrentaram a sociedade que os excluía. O importante, no entanto, está na percepção do professor sobre a ´reposição do preconceito` mesmo quando a ordem histórica que o gerou já acabou. Na verdade, isso é o que mais incomoda: a interpretação de Florestan sobre o mito da democracia racial brasileira permanece atual, depois de tantos anos. Era exatamente o que ele não queria.

Perfil

FLORESTAN FERNANDES: Professor marxista da USP, ele criou uma trajetória singular na sociologia brasileira e militou em movimentos contra as injustiças sociais. Perseguido pela ditadura militar, Florestan (1920-1995) estudou a realidade social do País e consolidou a sociologia crítica com obras fundamentais, entre elas Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968) e A Revolução Burguesa no Brasil (1975).’

 

Francisco Quinteiro Pires

A utopia nacional passa por uma democracia sem barreiras étnicas

‘O que causa mais prurido no leitor – o batuqueiro fez um bozó na macumba ou o percussionista fez uma oferenda propiciatória em um culto afro-brasileiro? O antropólogo e poeta baiano Antonio Risério, que está lançando A Utopia Brasileira e Os Movimentos Negros (Editora 34, 440 págs., R$ 54), mostra com este e outros exemplos como a colonização mental e o discurso politicamente correto atingem o que ele chama de ´arautos neonegros do nosso racialismo político-acadêmico´.

Nas universidades e nos poderes públicos, desde os anos 1970 os movimentos negros nacionais importam o conceito racional binário dos EUA. Essa perspectiva faz crer que no Brasil não haveria mestiços, somente negros e brancos. Não se pode ignorar o fato óbvio de que a mestiçagem impera no País, alerta Risério. Dono de estilo a um só tempo incisivo e caudaloso, Risério escreve 16 ensaios contra a confusão atual entre ideologia e genética. E a favor do projeto utópico de uma democracia social sem barreiras étnicas, como se lê no depoimento a seguir.

O NEGRO BRASILEIRO

Os negromestiços, hoje, se distribuem, variavelmente, por todas as classes sociais no Brasil. Estão no poder político, fazem parte do empresariado, ocupam ministérios. Houve, ainda, uma ampliação nada insignificante da classe média negra no País e de sua participação no mercado consumidor. A Associação Nacional de Empresários Afro-Brasileiros estimava, anos atrás, que mais de 10 milhões de negromestiços se encontravam nesse segmento social. É para eles que é feita, entre outras coisas, uma revista como Raça. E toda uma série de produtos cosméticos e vestuais. Os assim chamados ´afrodescendentes` (que são todos, também, ´eurodescendentes´) constituem um considerável nicho de mercado, que atrai investimentos de empresas multinacionais. Note-se que esses mais de 10 milhões de negromestiços não são cantores de rádio nem jogadores de futebol. Sociologicamente, o País mudou. São muitos os caminhos da ascensão social. Mas, em sua maioria, os negromestiços são pobres.

OS INTELECTUAIS E A POLÍCIA

Ao mesmo tempo, chega-se sempre, num certo momento, a uma dificuldade em classificar quem é e quem não é negromestiço no Brasil, às vezes, numa mesma família. Como classificar Lula, Joãozinho Trinta, Caetano Veloso, a cantora Marina e Juliana Paes? Afora isso, o que fazer com a população cabocla da Amazônia? Aqueles caboclos amazônicos não são negros nem brancos. E estão sendo discriminados por conta disso. Os militantes dos movimentos negros costumam dizer, na sua ânsia de dividir o País em brancos e pretos, segundo o modelo racial norte-americano: os intelectuais não sabem quem é negro, mas a polícia sabe. Uma polícia racista, corrupta e criminosa não pode servir de critério para nossas visões e idéias sobre o Brasil e o povo brasileiro.

RACISMO DE ESTADO

O Congresso Nacional está prestes a votar o Estatuto da Igualdade Racial, que é racialista e racista. Vai instaurar o racismo de Estado, aqui. Quer promover fechamentos neo-étnicos, compartimentalizando o País. Impondo identidades aos cidadãos brasileiros. E o que é pior: podendo comprometer futuros avanços sociais do País. O que me preocupa é que a Câmara dos Deputados não parece preparada para discutir a questão. Ninguém, no Congresso Nacional, se mostra disposto a uma discussão séria com os ideólogos do racialismo neonegro. Por demagogia ou covardia política.

FUTURO DE IGUALDADE

O conjunto da sociedade brasileira não aceita o racialismo, mas há uma perversão partidocrata aí – e uma reverência injustificável diante dos discursos das ´minorias´, que, na verdade, são minorias dentro de minorias. Talvez seja querer demais, mas, sinceramente, espero que os membros do Congresso Nacional encarem o assunto com responsabilidade e sensatez. Nós temos de caminhar para um futuro de igualdade, não para um futuro de diferenças. Não temos razão para repetir erros absurdos que outros países cometeram e de que hoje se arrependem.

PAÍS SINCRÉTICO

O multiculturalismo é um discurso ideológico que prega que cada comunidade ou ´etnia` pode e deve ter um desenvolvimento próprio, autônomo, sem se deixar imiscuir no movimento real do mundo. É uma espécie de autismo antropológico, um apartheid de esquerda, porque o exemplo maior de separação étnica ou racial foi dado pela África do Sul, antes de Nelson Mandela. O sincretismo, ao contrário, é um festival de misturas, pessoais e grupais. Misturas genéticas e simbólicas. O Brasil conta com meio milênio de experiências nesse campo. Hoje, a Europa, cheia de imigrantes, não sabe o que fazer com eles. Nós sabemos – e muitos estudiosos europeus, como Jacques Attali, Marc Ferro e Massimo Canevacci, para dar alguns exemplos, sabem disso. Nenhum japonês, árabe, judeu, etc., fica por aqui impunemente, por mais de uma geração. São todos sobretudo brasileiros, sem se sentirem obrigados a renunciar a práticas ancestrais de cultura. Nós, ao contrário dos EUA, temos um precioso know-how de relacionamentos interétnicos e interpessoais. E isso é o que interessa.

FLORESTAN FERNANDES

Tínhamos leituras antropológicas do Brasil. Florestan entrou em cena centrado na sociologia. É a sua virtude e o seu pecado. Diante de uma fábrica de defumadores, um sociólogo se pergunta sobre o número de pessoas empregadas, sua composição racial, seus salários. Mas não se pergunta sobre o uso dos tais defumadores nesse ou naquele sistema simbólico. Afinal, para que produzimos defumadores? Não é para empregar gente, é para incensar terreiros, para exorcizar espíritos. Florestan responde a uma dimensão da questão, não a todas. Ele, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque são grandes mestres e nos ensinam coisas diferentes sobre o Brasil. Temos de aprender com os três, que não são opostos, mas complementares.

JOAQUIM NABUCO

Nabuco aponta, de uma parte, para o passado. É quando idealiza o reinado de Pedro II como a ´Grande Era Brasileira´. De outra parte, ele se acha inteiramente voltado para o futuro. Ainda hoje, não realizamos o que ele considerava essencial para o Brasil, no fim do século 19. Não fizemos a reforma agrária nem a revolução educacional que os abolicionistas propunham. São as revoluções que nos faltam: o Brasil precisa dividir mais justamente a sua vasta extensão territorial e socializar mais amplamente o conhecimento. Estamos atrasadíssimos a esse respeito, por mais que falemos de ´inclusão social´. E enquanto essas coisas não forem feitas, Nabuco vai continuar aí, apontando para o futuro.

ANTROPOFAGIA E RAÇA

O antropofagismo oswaldiano, regra geral, é muito mal compreendido. Fornece álibis para as mais diversas ignorâncias. Mas, se você olhar bem, o antropófago do Oswald de Andrade nunca teve estômago de avestruz. Ele se colocava sob o signo da devoração crítica. Não era pela importação de qualquer coisa e muito menos de modelos prontos. Mas pela ´deglutição` das informações internacionais relevantes e de ponta, que deveriam ser relidas e recriadas em nosso contexto, com o objetivo último de produzir informações originais, invertendo o influxo cultural dos países centrais para os periféricos. Isso não tem nada a ver com o que se faz atualmente em meio ao nosso racialismo neonegro, que voltou as costas às realidades brasileiras e adotou, sem o menor senso crítico, o discurso de uma certa faixa da militância política e do mundo universitário norte-americano, como se a história de um povo pudesse ser substituída pela história de outro. E justamente num campo, o das relações raciais, em que a experiência norte-americana nada tem de exemplar.

GENÉTICA E IDEOLOGIA

Nós somos mestiços. Este é um dado objetivo, biológico. Além disso, a existência de seres mestiços é socialmente reconhecida em nosso ambiente, ao contrário do que vemos nos EUA, onde o próprio censo demográfico do país não permite que um mulato se defina como tal: ele é obrigado a ser negro, com o queriam os senhores escravistas das plantações dos Estados sulinos. Mas, além do fenômeno genético e do fato de termos aprendido a nos ver, histórica e culturalmente, como mestiços, existem as ideologias da mestiçagem. Os pregadores do racialismo neonegro parecem não conseguir entender que uma coisa é o fenômeno objetivo da mestiçagem e outra coisa, bem diferente, são as ideologias do ser mestiço. Uma coisa é a troca biológica de genes, outra coisa é o que você pode pensar sobre isso. Acontece que as ideologias da mestiçagem no Brasil foram produzidas, desde o século 19, a partir de uma perspectiva senhorial. Reagindo contra isso, os movimentos negros escolheram o caminho mais fácil e, ao mesmo tempo, mais falso. Copiaram o padrão binário em vigor nos EUA, que é o único país do planeta que não reconhece a existência de mestiços de branco e preto – e baixaram um decreto ideológico racista, afirmando que não existem morenos, mulatos, jambos ou sararás no Brasil.

HARMONIA SOCIAL

Só existiriam negros e brancos, o que é historicamente insustentável e sociologicamente absurdo. Não só porque há milhões de morenos e mulatos no Brasil, de Luíza Brunet a Camila Pitanga, como temos filhos de negros e índios, a exemplo de Garrincha, que descendia dos índios fulniôs do Nordeste, e caboclos que descendem de brancos e índios, sem interferências negras mais visíveis, como se pode ver tanto no vale do Rio de São Francisco, quanto em toda a região amazônica, para não falar do caleidoscópio de cruzamentos em São Paulo. Então, para combater esta ou aquela ideologia senhorial da mestiçagem, é uma ilusão simplesmente fechar os olhos para as trocas genéticas e decretar, em panfletos e manifestos, que não temos mais mestiços entre nós. Temos, sim – e é a maioria da população brasileira. Fazer de conta que não somos mestiços é se condenar a não entender o País. E tem uma outra coisa, fundamental: mestiçagem nunca foi sinônimo de harmonia social. Pelo contrário, tem implicado disputas, conflitos, confrontos. Como aqui, no Brasil. Alguém, nascendo brasileiro, vai querer se enganar sobre isso?

COTAS RACIAIS

As grandes divisões sociais brasileiras não dizem respeito somente à cor da pele. Entre numa grande favela paulista, nos bairros mais pobres de Natal, etc., e é o que se vai ver. A luta por cotas raciais para pretos é um equívoco, ao racializar inadequadamente a esfera pública em que nos movemos e ao criar privilégios, num país onde nem todos os pretos são pobres e nem todos os pobres são pretos. Por que uma filha do atual ministro da Cultura, que é um mulato escuro e um sujeito rico, tem direito a esse privilégio – e o filho de um motorista do Ministério, por ter a pele mais clara do que a filha do ministro, não? O conjunto da sociedade brasileira não embarca nessa canoa furada. Mas ainda não articulou as suas vozes. Sarney, Fernando Henrique e Lula, muito mal assessorados, baixaram decretos ou adotaram posturas racialistas. Só uma luta ideológica ampla e profunda poderá reverter esse quadro. Quer encarar mesmo a questão social brasileira? Vamos então ampliar a igualdade de oportunidades, educar, propor políticas próprias para o mercado, novos modelos de trabalho e propriedade, abolir o instituto da herança. Chega de profissionais da negritude. Sejamos sensatos, sejamos sérios.

UTOPIA BRASILEIRA

A utopia brasileira é o grande sonho social com que este país sonhou. E este grande sonho social é o de uma democracia. Uma democracia não somente política, mas social. E uma democracia social que transcenda e ultrapasse o que ainda não fomos capazes de transcender e ultrapassar: as barreiras étnicas. Mas, como temos apostado nessa direção, ninguém vai me convencer de que não temos tudo para fazer com que o mito se encarne na história.

Perfil

ANTONIO RISÉRIO: Nascido em Salvador, em 1953, o poeta e antropólogo fez política estudantil nos anos 1960 e mergulhou na contracultura. Ajudou na implantação da Fundação Gregório de Matos, na Bahia, e elaborou o projeto geral de criação do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Participou das duas campanhas vitoriosas de Lula à Presidência. É autor de Caymmi: Uma Utopia de Lugar e Avant-Garde na Bahia, entre outros.’

 

Lilia Moritz Schwarcz

A violência contra os mortos

‘Em janeiro de 1996, o casal Petruccio e Ana Maria Mercedes Guimarães deram início à reforma de sua nova casa, localizada na Rua Pedro Ernesto 36, na Gamboa; zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Mal os pedreiros começaram a tarefa, notaram que em meio à terra revirada surgiam ossadas e alguns objetos espalhados em meio aos detritos. Para tornar breve uma longa história, depois do espanto inicial constatou-se que lá se localizava um antigo e pequeno jazigo coletivo, mais conhecido como ´Cemitério dos Pretos Novos´. Descoberto acidentalmente, o ´campo santo` foi tombado e gerou esse pequeno mas importante livro, que acabou por reconstruir mais uma das várias facetas da história deste país, marcado de ponta a ponta pela escravidão. Não são poucos os livros que trazem os números de escravos vindos com o tráfico negreiro – mais conhecido na época como o ‘comércio de almas` -, ou que analisam os horrores do Valongo: o mercado de escravos que ficava aberto à visitação do público no Rio de Janeiro. Viajantes narraram com detalhes as práticas violentas, a sujeira e, sobretudo, a maneira inumana como os africanos eram tratados; tudo isso sem qualquer disfarce ou preocupação em escamotear o tipo de comércio lá realizado. Mas quase nada se disse sobre os mortos.

O fato é que bem ao lado do Valongo foi criado um cemitério para dar conta dos escravos que não sobreviviam à travessia do Atlântico ou que morriam logo ao chegar ao Brasil. Assim, enquanto o mercado cuidava dos vivos, o cemitério se encarregava dos mortos, os quais nem nome chegavam a ganhar. Em 1814, G. W. Freyreeyss descrevia o cemitério da seguinte maneira: ´No meio deste espaço de 50 braças havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pela chuva que tinha carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido ainda enterrados.` Pretos novos eram, pois, aqueles que morriam no traslado, na chegada à Baía de Guanabara ou imediatamente após o desembarque e, de toda maneira, ainda não haviam sido vendidos. Os motivos de morte eram muitos e freqüentes – varíola (na época conhecida como bexiga), furúnculos, congestões, enfartes, sarna… – e, dessa maneira, a necessidade condicionou o costume. Assim, de 1772 a 1830 funcionou no Valongo – uma faixa do litoral carioca que ia da Prainha à Gamboa – um espaço destinado ao sepultamento de negros enterrados ´à flor da terra´.

É esse inclusive o nome do livro de Júlio César Medeiros da Silva Pereira – À Flor da Terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro (Garamond, 204 págs., R$ 32,40) -, que não só se limita a analisar o ´campo santo´, como dá elementos para entender sua importância dentro da lógica escravista da corte, relaciona as formas mais freqüentes de mortes e explica os rituais que giravam em torno das práticas de sepultamento. Recobertos pela terra restaram os corpos e o próprio cemitério, mas é possível, a partir dessa obra, entender sua relevância no interior do sistema local. Como explicava o vice-rei, o marquês de Lavradio, já em 1769, ´os negros novos, que vêm dos portos de Guiné e Costa da África` deveriam ser conduzidos para o sítio do Valongo ´sem saltarem à terra´. Seria lá que ´se curariam os doentes e se enterrariam os mortos, sem poderem jamais sair daquele lugar para esta cidade, por mais justificados motivos que existam e nem ainda depois de mortos, para se enterrarem na cidade…´. Os doentes eram, assim, separados dos contatos dos sãos e entre eles as epidemias e a mortalidade grassavam.

Mas o cemitério era também parte necessária e inseparável desse mercado, uma vez que o modelo em curso pressupunha a violência e a própria morte. Além do mais, o mercado e o cemitério ficavam afastados da cidade, e assim deveriam permanecer, para que o espetáculo ´não degradasse os olhos e o olfato´. Dessa maneira, a desigualdade terrena se espelhava nas diferenças dos sepultamentos e os rituais simbólicos referendavam o que era, de fato, resultado da ação dos homens. No entanto, a cidade que já nascera apertada cresceria demais, e por volta de 1821 a população alcançava a marca de 333 mil habitantes, e só os escravos representavam metade deste número. Não é de se estranhar, portanto, que o que era longe se tornasse perto, e não à toa os moradores reclamariam da existência de um cemitério como esse bem nas redondezas.

Assim, se a parte comercial do Valongo crescia, e em 1817 já existiam 34 estabelecimentos dedicados ao comércio de almas – sendo essa região uma das mais freqüentadas do Rio -, já o cemitério manteria seu aspecto malcuidado, sua parede fina a separá-lo do mundo dos vivos e seu tamanho acanhado: tinha apenas 50 braças, o que corresponderia à dimensão de um campo de futebol. Por isso, a população que foi se achegando ao local não tardou a protestar por conta do mau cheiro e a acusar o campo santo de ser ´o principal produtor dos miasmas que grassavam na cidade´. O suposto era que as matérias orgânicas em decomposição, especialmente de origem animal, sob influência de elementos atmosféricos – como o calor e a direção dos ventos -, formavam vapores danosos à saúde. Os gases emanados dos cadáveres foram considerados os verdadeiros causadores das doenças e os vizinhos do cemitério do Valongo logo pediriam não a supressão, mas sua transferência de local. Por outro lado, requerimentos dirigidos ao príncipe regente d. João exigiam que o cemitério fosse removido para ´um lugar remoto´. O fato é que os corpos ficavam praticamente sob uma fina camada de terra e a própria quantidade diária de sepultamentos não permitia que a prática se alterasse, com os cadáveres sendo jogados uns sobre os outros. Entre 1824 e 1830, por exemplo, foram sepultados 6.119 escravos no Cemitério dos Pretos Novos, o que dava uma média de 1.019 sepultamentos por ano, num lugar cujas dimensões permaneciam restritas.

Mas a grande e única maneira de entender a persistência do cemitério é a partir do tráfico: quanto mais ele aumentava maior era o número de escravos enterrados. Afinal, a partir da chegada da corte em 1808, a compra de cativos crescera enormemente. Se em 1807 entraram menos de 10.000 escravos, em 1822 o número cresceu a quase 21.000, e em 1828 a 45 mil. Como decorrência, só nesse último ano foram dois mil os pretos novos enterrados no Valongo.

E a violência não era apenas física, como também cultural. Nus ou envoltos e amarrados em esteiras finas, jogados em covas rasas que logo apareciam com as chuvas, os negros eram enterrados sem qualquer reza, sacramento ou ritual religioso. Afinal, muitos eram batizados já na África ou logo ao chegar ao Brasil, isso quando não guardavam seus próprios costumes de origem. Como mostra Júlio César, na cultura banto a morte é tema dos mais complexos, e o falecido, desde que tratado de acordo com os rituais, incorpora-se à comunhão dos antepassados e integra a cadeia que une vivos e mortos. Porém, sem o devido enterramento o morto converte-se num desgarrado, um ente sem lugar entre os vivos e os mortos. Tal prática e compreensão eram tão disseminadas que, na hora da morte, escravos ladinos – já acostumados com o cotidiano e as práticas locais – evitavam as valas comuns e cuidavam de se filiar a alguma irmandade, que lidaria com seu enterro. A morte relacionava-se à idéia de viagem, de transição e de mudança, e sem os processos fúnebres necessários o corpo defunto ficava condenado a ´não viajar´; violência suprema e terror maior até mesmo para aqueles já tão acostumados à perversidade de sua condição.

O Cemitério dos Pretos Novos foi finalmente fechado em 1830, por conta das reclamações dos moradores e do tratado de extinção do tráfico imposto pela Inglaterra em 1827, e que entraria em vigor três anos depois. Teoricamente, se não existia mais tráfico também não poderia haver pretos novos, ou um cemitério a eles destinado. Mas, se a história do tráfico foi diferente – e o mesmo só acabou em 1850 -, já o campo santo foi finalmente encerrado. O local sim, mas não a prática, uma vez que escravos continuaram a ser enterrados à flor da terra.

Muito tem se comentado acerca da violência praticada contra os escravos vivos; pouco acerca dos mortos. Em tempos de comemoração da vinda de d. João, vale a pena olhar para outros lados que também caracterizaram essa época. Foi durante o período em que a corte esteve no Brasil que se incrementou o tráfico negreiro e com ele as práticas de morte. Morrer na viagem ou logo na chegada à colônia portuguesa era uma fatalidade esperada e previsível. Difícil mesmo, como mostra Júlio Cesar com cuidado e sensibilidade, era pensar em como se desfazer de corpos, que, em princípio, não davam mais lucro a ninguém.

Em Memorial de Aires, Machado de Assis coloca na boca do Conselheiro uma bela reflexão sobre túmulos e cemitérios. ´Não é feio o nosso jazigo (…). Creio que um velho túmulo dá melhor impressão ao ofício, se tem negruras do tempo que tudo consome. O contrário parece sempre de véspera.` O que chocava no Cemitério dos Pretos Novos era o pouco cuidado com a morte e a exposição dos corpos. A escravidão era um espetáculo restrito. Já a morte de escravos deveria ser invisível; caso não fosse, precisava ser apagada do cenário dos vivos.

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis

Glossário

VALONGO: nome da localidade onde ficava um mercado de escravos, mantido entre 1772 e 1830 numa faixa litorânea que ia da Prainha à Gamboa, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Ao lado dele estava localizado o Cemitério dos Pretos Novos, pequena sepultura coletiva para onde eram levados os negros mortos. Valongo se tornou sinônimo do local utilizado para venda de mão-de-obra negra no Brasil escravagista.’

 

ESTUDOS AVANÇADOS
Francisco Quinteiro Pires

Um dossiê contra o crime organizado no Brasil

‘Fatos recentes no País comprovam que o crime organizado é uma ameaça concreta à sociedade civil e ao Estado brasileiros. Mas o entendimento das causas e o enfrentamento dos efeitos da criminalidade ainda estão longe de ter êxito. Para contribuir no debate sobre o tema, a revista quadrimestral Estudos Avançados (edição 61, 332 págs., R$ 30), da USP, produziu o dossiê Crime Organizado.

A publicação apresenta texto de vários especialistas, como Guaracy Mingardi, que escreve sobre o trabalho da inteligência policial, e Luiz Eduardo Soares, que trata da política nacional de segurança pública. Sérgio Adorno e Fernando Sallo lançam luzes sobre a organização dos criminosos a partir das ações do PCC (Primeiro Comando da Capital) nas prisões e nas ruas de São Paulo.

As entrevistas com o delegado da Polícia Federal Getúlio Bezerra Santos e com o padre Valdir João Silveira, vice-coordenador da Pastoral Carcerária, trazem a experiência de quem está envolvido diretamente no combate e no tratamento da criminalidade no Brasil.

A representação da violência nos documentários brasileiros é o objeto de estudo de Paulo Roberto Ramos. Os atos criminosos se intensificaram a partir dos anos 1980, durante o período de transição política, depois o fim da ditadura militar, marcado por fortes turbulências econômicas. Como conseqüência, a criminalidade se tornou assunto inevitável das artes, da música ao teatro. O ensaísta elegeu os seguintes longas-metragens: Notícias de Uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, Ônibus 174, de José Padilha, Justiça, de Maria Augusta Ramos, e Falcão: Meninos do Tráfico, de MV Bill e Celso Athayde. Essas obras cinematográficas representam um amplo leque em relação à delinqüência brasileira – tráfico de drogas, discriminação social, a Justiça.

O autor alerta que outros filmes, como O Prisioneiro da Grade de Ferro, Carandiru e Quase Dois Irmãos, podem ser exemplos de aproximação com os quatro documentários escolhidos, pois apresentam uma visão sombria sobre a violência no Brasil. O que importa, segundo ele, não é a capacidade da obra de arte de solucionar problemas, mas a sensibilidade dela a respeito das coisas da vida.’

 

JOGO DE CENA
Daniel Piza

Teatro da realidade

‘O documentário Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, é muito simples; talvez ele seja o último cineasta a adotar o lema ´uma câmera na mão e uma idéia na cabeça´. A câmera, na verdade, fica num apoio fixo o tempo todo; a máxima variação que existe é entre o plano médio e o close. A idéia é misturar depoimentos reais com os de atrizes – Andréa Beltrão, Fernanda Torres, Marília Pêra e outras menos manjadas – e nos levar a pensar sobre a exposição de emoções, sobre como, em especial, aquelas mulheres encaram aquelas perdas com um vocabulário de expressões um tanto diferente do que se utiliza ao representar. Muita gente interpretou o filme como a velha demonstração das tais fronteiras nebulosas entre realidade e ficção, etc. Para mim, é uma afirmação sobre a irreprodutibilidade do real.

Sim, temos dúvidas sobre alguns depoimentos, mas não demora muito para distinguir qual é qual. Os ´encenados´, pode notar, são mais redondos e enfáticos, ao passo que os ´autênticos` (sempre entre aspas, afinal há muitos traços comuns) evitam ser desabridos, pois trazem um convívio ambíguo entre a memória da dor e o relativo distanciamento dela. A boca pode sorrir enquanto os olhos marejam, e a fala pode descrever em tom seco os fatos que mais as feriram. Não que uma atriz – como a que conta a história do filho que morre ao reagir a um assalto – não nos emocione até com a mesma intensidade; só que não tem os cacos e hesitações da memória mais profunda, por mais que tome emprestado de suas próprias vivências afetivas.

Outro ponto que não foi observado é a linha comum entre os depoimentos, imagino que proposital. Todas são mulheres; todas contam a dor de perdas de entes queridos como filhos e pais; todas mencionam sonhos relacionados a eles; e todas citam uma religião ou uma terapia como apoios para sair da depressão decorrente desses traumas, embora uma delas diga que ainda não teve a resposta de Deus sobre o motivo de ter tirado seu filho. Esse é outro tema antigo e espinhoso, e o documentário não se aprofunda nele. De qualquer modo, há uma relação clara com o tema principal. Expor as emoções é um exercício insuficiente, mas, quando se permite sua teatralização sem escapismo, como num ritual sem máscaras, há uma abertura para a superação.

Imprecar contra o destino pouco adianta. É a consciência que, pelas vias mais distintas, na bendita diversidade da natureza humana, traz forças – e é sua ausência que faz que as atrizes não consigam simular à perfeição essas forças, mas apenas as fraquezas. A idéia de que razão e emoção operam em circuitos paralelos, nesse documentário tão livre de efeitos ou julgamentos e tão sem medo dos assuntos fortes, é derrubada como tem sido em pesquisas de neurociência. Coutinho, conhecido por sua capacidade de fazer o entrevistado se abrir emocionalmente para a câmera, como aquele homem que canta My Way em Edifício Master, deu novo passo com esse Jogo de Cena. Somos todos atores – muito antes de Shakespeare já se dizia. Mas a vida não tem roteiro pronto e o desfecho não cabe em definições como ´feliz` ou ´infeliz´. A função da arte não é ordenar a realidade, senão até o ponto em que ela se mostra inordenável.’

 

HISTÓRIA, RÚSSIA
Caio Blinder

Sussurros e gemidos na Rússia de Stalin

‘Este não é um livro de gritos e sussurros. O historiador britânico Orlando Figes escreve sobre os sussurros e gemidos emocionais na Rússia do algoz Josef Stalin. Eram tempos em que diante de perguntas inconvenientes dos filhos, os pais respondiam que ´as paredes têm ouvidos´. Pais tinham medo dos próprios filhos em uma sociedade em que se forjou o culto de Pavlik Morozov, o garoto que denunciou o próprio pai por ser contra-revolucionário, um ´inimigo do povo´.

O título do livro de Figes (The Whisperers, Metropolitan Books, 784 págs., US$ 35) capta a natureza de uma sociedade com o duplo sentido da expressão na Rússia de Stalin. Os sussurradores tinham medo de serem ouvidos e eles eram também os informantes. Mais do que sobreviver, sussurrar era um modo de vida. E nem podia ser diferente no inferno revolucionário que tentou assassinar a individualidade. Nos anos 30, 3/4 da população de Moscou e Leningrado vivia nos apartamentos comunais. O poder de vigilância do Estado foi ampliado nos ´kommunalki´.

Há fatos e estatísticas neste livro maciço e pungente que dão a medida precisa da barbárie stalinista. Apenas em 1937, o número de crianças nos orfanatos soviéticos quase dobrou de 329 mil para 610 mil (excluindo os órfãos acima de 14 anos despachados para trabalhar em fábricas e fazendas coletivas), pois os filhos dos ´inimigos do povo` eram separados dos irmãos e espalhados pelo país. Mas na obra de Figes o mais importante são as histórias individuais ou as vidas privadas do subtítulo.

Figes recorre a cartas, diários, memórias e fotografias que famílias esconderam durante o jugo de Stalin. O rico material foi suplementado por entrevistas de sussurradores (nos dois sentidos) daqueles dias e familiares. O livro relaciona mais de 500 entrevistados e, como no caso das histórias orais de sobreviventes do Holocausto, havia pressa, pois a idade média deles na época da pesquisa era de 80 anos.

Orlando Figes é especialmente grato ao diretor de cinema, jornalista e ativista dos direitos humanos Aleksei Simonov, filho do escritor Konstantin Simonov (1915-1979), favorito de Stalin e que racionalizou a prisão do padrasto e a deportação de três irmãs da mãe, repetindo a infame expressão leninista de que ´não se faz uma omelete sem quebrar os ovos´. As trajetórias das famílias Simonov e Laskina (das quais Aleksei é fruto) são centrais no livro de Figes.

Sicofanta e ocasionamente decente, Simonov deixou na mão e eventualmente ajudou o amigo e crítico teatral Alexander Borshchagosvky, perseguido durante a campanha stalinista de 1949 contra o ´cosmopolitismo` (que basicamente alvejou judeus). Ao recordar os eventos e o papel de Simonov, Borshchagosvky disse em uma entrevista a Figes em 2003: ´Você cresce acostumado à dor.`

Existe este tom estóico entre muitos sobreviventes do terror stalinista. E Figes presta um grande serviço ao reavivar a memória desses sobreviventes, pois suprimi-la estoicamente, assim como as emoções, era uma maneira de sobreviver. Inna Gesiter reflete que ´nos tempos de Stalin as pessoas não choravam´.

Claro que choravam, inclusive vítimas quando o algoz morreu em 1953. Vera Bragin conta que sua mãe idolatrava Stalin, embora tenha sido exilada e o marido enviado para o campo de trabalhos forçados, onde morreu em 1944. ´Quando Stalin morreu, minha mãe não jogou fora o seu retrato´, relata Vera Bragin. ´Ela o manteve na parede, ao lado da fotografia do meu pai.´

Figes escreve que uma conquista duradoura de Stalin foi criar uma sociedade em que o estoicismo e a passividade eram normas sociais. Quando Zinaida Bushueva foi reabilitada em 1957, ela recebeu dois meses de salário, calculados nos valores de 1938, ano de sua prisão, em compensação aos oito anos passados em um campo de trabalhos forçados e outros dois meses de salários pelo marido, fuzilado em 1938 e reabilitado postumamente. Zinaida usou o dinheiro para comprar um casaco para as duas filhas, um terno para o filho e uma mesa com seis banquetas para seu apartamento de um quarto.

No final das contas, na avaliação de Orlando Figes, o poder real do sistema stalinista não estava nem nas estruturas do Estado nem no culto do líder, mas, como observou o historiador Mikhail Gefter, ´no stalinismo que entrou dentro de todos nós´.’

 

 

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