Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O Estado de S. Paulo

REDE SOCIAL
O ano de Zuckerberg. o pai do ‘feice’ é o nome de 2010

2010 foi o ano do Facebook. Não apenas dele, claro: na retrospectiva que estamos fazendo em três partes no caderno Link (a terceira parte sai na edição de amanhã), escolhemos, além da rede social, os aplicativos e geolocalização como três dos principais temas do ano. Mas o Facebook foi além do universo digital e ganhou o planeta. Não foi à toa que seu criador, Mark Zuckerberg, foi eleito a Personalidade do Ano segundo a revista Time.

Exagero? Vejamos: um universitário cria um site que conecta estudantes de Harvard. O site cresce e começa a permitir estudantes de outras universidades americanas. Cresce ainda mais e abre para o público em geral. E deixa de ser só um concorrente do Orkut, graças a uma série de programas e ferramentas (os tais aplicativos) que o transformam em um lugar em que é possível jogar games, fazer compras, agendar eventos, discutir em grupo, enviar mensagens, armazenar vídeos, fotos e se informar. Mais do que um simples site de relacionamento, o Facebook aos pouco se tornou um ambiente virtual facilmente familiarizável a todos que usam computador e internet atualmente.

E em 2010 foi quase todo mundo mesmo: o site passou o meio bilhão de cadastrados; criou o botão ‘Curtir’, que possibilitou a integração da rede social com todos os outros sites do mundo; abriu escritórios em ainda mais países; passou o Orkut na Índia, único país, além do Brasil, em que a rede social do Google dominava.

No Brasil, ele só faz cócegas no Orkut: são 8 milhões de usuários do Facebook contra 43 milhões de cidadãos da rede do Google. Mas já dá para perceber os sinais de seu avanço – quem está no site há tempos já deve ter percebido que, de uns meses para cá, os novos cadastrados na rede social não são mais jovens adultos, gente do meio digital ou de comunicação. São parentes mais velhos, vizinhos, conhecidos, gente que até outro dia se conformava apenas com o Orkut. E arrumaram um apelido específico para o site, chamando-o apenas de ‘feice’, abrasileiramento que colocamos na capa da primeira edição de retrospectiva do ano, há duas semanas.

O Facebook pode se tornar a grande rede social do mundo de fato – alguns países (como Rússia e China) nem sequer começaram a ser ‘colonizados’ pelo site. Se isso acontecer, Zuckerberg substituirá Bill Gates. O pai da Microsoft, nos anos 80, foi um dos inventores do computador pessoal e criou o sistema operacional Windows, um ambiente virtual que ainda domina, 30 anos depois, a paisagem digital.

O Facebook pode virar uma espécie de Windows da web – e esta é a ambição de Zuckerberg: fazer com que todos naveguem na internet sem precisar sair de seus domínios.

Ajuda também o fato do criador do Facebook passar a ser uma figura pública, principalmente após o lançamento do filme A Rede Social, que já está recolhendo prêmios pelos EUA e que tem grandes chances de se tornar o principal concorrente ao Oscar do ano que vem.

Não que isso afete os planos de dominação de Mark. Mas graças ao filme, seu rosto na capa da Time não é mais apenas o de um certo geek desconhecido.

 

WIKILEAKS
Celso Lafer

Diplomacia, sigilo, vazamentos

Suscita múltiplas indagações a divulgação de mais de 250 mil telegramas diplomáticos dos EUA pelo WikiLeaks. Capitaneada pelo australiano Julian Assange, a organização objetiva combater, pela publicidade, más condutas governamentais de variável gravidade – da hipocrisia a crimes de guerra. Entre as muitas perguntas que cabe fazer a propósito desse caudaloso vazamento, menciono: é possível preservar o sigilo na era da revolução digital? Numa democracia existem limites aceitáveis à instantaneidade da transparência da conduta governamental? Qual é hoje o papel do sigilo na vida diplomática?

A possibilidade de resistir ao devassamento da vida privada, de preservar o sigilo de dados bancários e fiscais, de manter o segredo profissional e o sigilo de comunicações diplomáticas se viu significativamente reduzida pela tecnologia. Esta, com as inovações da revolução digital, ampliou enormemente a facilidade do acesso a documentos, a escala do seu armazenamento e a ubiquidade do potencial de sua divulgação por meio da internet. A manipulação clandestina de arquivos com suporte no papel era e é muito mais difícil do que a manipulação de arquivos de computador. Senhas e os múltiplos mecanismos de defesa, inclusive a encriptagem, voltados para preservar a intangibilidade dos arquivos de computador, enfrentam diariamente tanto os riscos de manipulação clandestina por seus usuários autorizados (que foi a base dos vazamentos do WikiLeaks) quanto a competência dos hackers. Esta é uma realidade tecnológica do século 21 que põe em questão a possibilidade do sigilo, mesmo em esferas em que é legalmente tutelado.

Numa democracia, no conceito do público, convergem tanto o que é do interesse da res publica quanto o que é acessível ao conhecimento de todos. O exercício em público do poder comum é uma das ‘regras do jogo’ da democracia, pois a transparência dá à cidadania a possibilidade de avaliar e controlar as decisões dos governantes, inclusive em matéria de política externa.

A batalha em prol da transparência do poder integra a agenda de combate ao Estado absolutista e ao segredo como componente do exercício do poder. Está ligada à afirmação que fez Kant, no Projeto da Paz Perpétua, sobre a publicidade como critério de julgar a moralidade e a crítica ao realismo político da razão de Estado que, para dominar, oculta informações. Neste encobrir se escondem tanto segredos – que podem ter a dimensão do aceitável – como mentiras.

A temática do acesso aos documentos contidos nos arquivos públicos é, assim, inerente aos regimes democráticos, pois informações disponíveis indefinidamente apenas para um limitado número de governantes não cabem numa democracia. Nesta, a publicidade e o acesso são a regra, que comporta certas derrogações que tornam o acesso pleno só possível depois do transcurso de um certo período de tempo. Essas exceções permitem qualificar como documentos originariamente sigilosos os que são imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado, para usar a linguagem da Constituição de 1988.

Naturalmente a classificação de documentos como sigilosos e sua subsequente desclassificação devem obedecer a critérios de razoabilidade e prudência, ligados ao interesse comum. Esses critérios sempre comportam uma margem de apreciação discricionária do poder público, que podem ser discutíveis na perspectiva da cidadania e do jornalismo investigativo de qualidade, cabendo ressaltar que hoje os guardados sigilosos nas arcas do Estado estão em arquivos de computadores, muito vulneráveis ao devassamento por obra da revolução digital e da ação dos internautas. É nessa moldura que cabe analisar o papel do sigilo na vida diplomática e o que significa o fenômeno WikiLeaks.

A diplomacia tem sua raiz na necessidade dos Estados e suas sociedades de se comunicarem e interagirem de maneira institucionalmente organizada. Tem hoje a complexidade que provém da dinâmica de um mundo globalizado, interdependente e heterogêneo, e de uma pauta que vai da paz, da guerra, da segurança, dos direitos humanos à cooperação financeira e à sustentabilidade ambiental. Tem os componentes de uma diplomacia aberta, advogada por Wilson no final da 1.ª Guerra, e os da diplomacia de combate político, com seus ingredientes de batalha ideológica, tão presentes, por exemplo, na guerra fria.

Se a diplomacia atual não é mais, como foi no passado, uma atividade preponderantemente sigilosa, convém que tenha facetas de uma atividade discreta, para o bom exercício de suas funções. Estas são basicamente a da representação do Estado, a da proteção dos seus interesses, incluído o dos seus nacionais no exterior, a negociação, a promoção econômica e cultural do país.

Todas essas funções requerem boa informação. Por isso o inteirar-se por todos os meios lícitos do que se passa num Estado ou numa organização internacional, para bem informar a sua Chancelaria, é da essência da atividade diplomática. Essa atividade de garimpagem deve ser discreta e seu resultado, transmitido por telegramas diplomáticos, comporta, para ser eficaz, uma certa liberdade de linguagem. Daí a frequente conveniência do sigilo, por um certo lapso de tempo, de muitas comunicações diplomáticas, para evitar constrangimentos e assegurar a uma missão diplomática a continuidade da sua essencial função de informar. É isso que, com boa-fé, justifica, numa democracia, a existência de certos limites à plena instantaneidade da transparência da atividade diplomática.

O grande mar de informações vazadas pelo WikiLeaks vem revelando condutas mais ou menos discutíveis. É, no entanto, e sobretudo, um precedente que, facilitado pela revolução digital, precariza a plenitude da atividade de informar, negociar e representar da função diplomática. Nem os seres humanos nem a atividade diplomática suportam, com facilidade, a instantaneidade diária das luzes da plena transparência.

PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC

 

TELEVISÃO
Alline Dauroiz

Unidas pelo marido

Natal em família costuma ser mais ou menos parecido em qualquer lugar do mundo: depois da comoção e euforia comuns à data, e alguns brindes a mais, combinados ao estresse de fim de ano, não é raro que, ao fim da noite, chegue a hora de acertos de contas e desabafos que quase sempre terminam ali mesmo com um prato de pudim. Foi num cenário parecido que a ideia da série da HBO Big Love – Amor Imenso nasceu, conforme contou um dos criadores, Will Scheffer, ao Estado durante visita da imprensa internacional ao set de gravação da série.

‘Eu e meu parceiro de criação (Mark Olsen) voltávamos de um Natal em família – o da família dele – que havia sido um tanto confuso, aquela coisa de bebida, brigas… Natal (risos). Já no carro, conversávamos sobre projetos para a TV, acho que ele estava com aquelas confusões na cabeça, quando disse: ‘E se a gente fizesse uma série sobre uma família poligâmica?’.

Aficionado por História, o roteirista Mark Olsen quis explorar, além da poligamia, a rica cultura mórmon, que teve sua importância na história americana. ‘Na hora, pensei: ‘poligamia mórmon? Eca!’ Imagino que foi o que a maioria das pessoas pensou quando vendemos o projeto’, confessa Scheffer.

Quase cinco anos depois, a polêmica série sobre um mórmon fundamentalista casado com três mulheres – que vivem na mesma casa – chega agora a sua quinta e última temporada como sucesso de crítica e, segundo o autor, a aprovação da comunidade religiosa.

‘Os fundamentalistas de verdade nunca nos mandaram nenhum tipo de manifestação, acho que nem assistem à TV. Mas outros grupos fundamentalistas, polígamos mais modernos, adoram, porque retratamos muitos aspectos da cultura deles’, diz Scheffer. ‘Já a Igreja Mórmon tradicional não aceita a poligamia e se preocupa em como vamos retratá-la.’

De acordo com Scheffer, a preocupação em mostrar a religião de forma fiel e sem pré-julgamentos baseou toda a criação do programa. Para a pesquisa, que não contemplou visitas às comunidades poligâmicas, os criadores gastaram quase três anos.

‘A ideia de poligamia é tão vaga… Mas, depois que começamos a pesquisar e criar os personagens, pensamos: ‘Não é tão ruim assim.’ Eles são todos adultos, é uma sociedade patriarcal, mas as mulheres podem não ser subjugadas. Nos preocupávamos com o que as feministas iam pensar, mas depois achamos que seria uma boa maneira, subversiva, de explorar o feminismo.’

Essa visão imparcial, porém, cairia por terra em maio de 2006, apenas dois meses após a estreia da série nos EUA, quando o caso Warren Jeffs veio à tona. Polígamo e autoproclamado profeta de uma seita religiosa mórmon do sudoeste dos EUA, Jeffs foi acusado de ser cúmplice no estupro de uma adolescente em 2001, além de ter promovido um casamento forçado entre uma adolescente de 14 anos e seu primo de 19. Jeffs também admitiu ter mantido atitudes imorais com uma de suas irmãs e uma de suas filhas. Em 2007 ele seria condenado a 10 anos de prisão.

‘Depois de todo aquele escândalo, dos casos de abusos e daquele homem tão nojento, ficou difícil não fazer julgamentos’, relembra Scheffer. ‘Decidimos que precisávamos dramatizar de uma forma a expor como certas coisas funcionam, responsabilizando-os por certos atos.’ A reflexão explica as atitudes imorais de alguns dos personagens da série, como os ‘profetas’ Roman Grant (Harry Dean Stanton) e seu filho Alby (Matt Ross).

Assumido. Neste quinto ano – que estreia nos EUA em 16 de janeiro e na HBO brasileira apenas uma semana depois, em 23 de janeiro, às 21h30 –, a história deixa o tom de novela que assumiu na 4.ª temporada e volta a centrar no relacionamento de Bill Henrickson (Bill Paxton) com suas mulheres.

Agora senador por Utah, Estado com grande concentração de mórmons, Bill terá de lidar com as consequências de ter ‘saído do armário’ e assumido sua poligamia publicamente, no último capítulo do 4.º ano (temporada que será reprisada diariamente, de segunda a sexta, às 23 horas, a partir de 4 de janeiro). A prática, vale lembrar, é proibida no país desde 1862 e foi abandonada, oficialmente, pelos mórmons de Utah nos anos 1890. Assim, ele e sua grande família enfrentarão não só o preconceito da sociedade, mas do eleitorado mórmon e de outros polígamos que temem ser descobertos.

Outro fato que promete desequilíbrio à família Henrickson é a saída de Amanda Seyfried da série. Famosa pelo papel da protagonista adolescente de Mamma Mia, a atriz decidiu investir na carreira cinematográfica. Na série, Sarah, a filha de Bill e sua primeira mulher, Barb (Jeanne Tripplehorn), casa-se com o namorado, Scott (Aaron Paul), e se muda para Portland.

O relacionamento entre as três mulheres, Barb, Nicki (Chloë Sevigny ) e Margene (Ginnifer Goodwin) também será intensificado neste ano e Scheffer explica o porquê. ‘Essas mulheres se amam. Confesso que no começo também pensava: ‘Meu Deus, isso é possível?’, lembra o roteirista. ‘Mas vários livros falam dessa estranha relação. Enquanto umas cuidavam das crianças, outras exerciam profissões, eram médicas, advogadas. É interessante como elas se ajudam, não importa o que aconteça. Claro que há muito ciúme e dificuldades no casamento. Mas uma coisa é certa: todas amam Bill.’

VIAGEM FEITA A CONVITE DO CANAL HBO

 

‘Família é família’

Protagonista e coprodutor da série, Bill Paxton estabeleceu tamanha relação com a personagem, seu homônimo, que fala dele em 1ª pessoa. ‘Admiro o senso de comunidade extremamente forte dessas pessoas’, diz. ‘É uma das razões pela qual amo o que faço, o espírito colaborativo com produção e elenco. É maravilhoso fazer parte de algo maior. E adoro a ideia de ‘revelação (divina)’ Já experimentei isso na minha própria vida.’

Como será a vida do Bill agora que ele se assumiu?

Eu e minha família estamos lidando com grande pressão externa. Será um novo capítulo na vida dele, que sempre viveu na mentira. Fazendo um paralelo, é como um gay que tem de viver como hétero. É um alívio viver do jeito que você quer. Acho que vou gostar mais. Poderei pedir: ‘Quero uma mesa para mim e minhas esposas (risos)’.

A série fica mais política nesta temporada?

A série sempre foi provocativa e política, mas também pegamos caminho nas clássicas Restoration Comedy italianas, francesas, inglesas (comédias obscenas e satíricas realizadas no teatro do século 17 e início do 18). Um cara que tem três mulheres, três casas… é uma comédia, de certo modo.

Você teve de criar personalidades diferente para lidar com cada uma das mulheres?

Não. Com cada uma eu tenho um tipo de relacionamento. A Jeanne (Barb) é mais da minha geração. Chloë (Nicki) é de Connecticut, a escola dela é Nova York, gosto disso. E a Ginnifer (Margene) é quase que uma melindrosa do século 20, tem aquela efervescência. Jeanne é como se fosse minha rainha, e Cloë e Ginnifer são quase suas damas de companhia.

Qual a parte mais difícil?

Fazer um personagem que está sempre em crise, sob pressão. Fisicamente é difícil. Vivo como um monge quando gravo. Decorar cinco páginas de diálogo densos por dia.

Visitou comunidades mórmons para compor o Bill?

Não. Li muito sobre o assunto, conversei com muita gente, mas não achei que devesse ir às comunidades. Não sabia se eles iriam me receber. Não queria ir e ter de ficar explicando coisas. Mas interpretamos de forma honesta, respeitando suas crenças. A série é sobre tolerância. Quando você humaniza e mostra que essas pessoas são como qualquer outra, é uma forma de aproximação. Todos podemos coexistir.

Problemas de família sempre rendem boas histórias. O que dizer de uma família com três mulheres e tantos filhos?

Dramas familiares são muito reais. Todos nós somos fascinados por isso. E ainda que você não concorde com a forma social de viver dessa família, não tem como não torcer por ela. Mas se eles vão ter paz ou não, se vão se acertar no final… quem sabe? Família é família.

 

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