Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O olhar redentor

“Não sei por que vocês vivem fazendo tantas matérias com esses pobres, índios, sem-terra, favelados, moradores da periferia, da Amazônia… Essa gente toda nem lê o nosso jornal…”.

A frase está no livro de memórias de Ricardo Kotscho, Do golpe ao planalto – uma vida de repórter, e teria sido dita por Julio Neto, da família Mesquita, dona do Estadão. Ainda bem que Kotscho nunca deu ouvidos ao ex-patrão, e jamais desistiu de ir em frente como repórter. Felizmente, enquanto houver jornalismo, haverá repórteres com talento singular para farejar histórias e contá-las, não importa se essas histórias tenham origem nas vidas sofridas dessa “gente que nem lê jornal”. Pois é a esses repórteres que pertence o Olimpo da reportagem.

Exemplos de repórteres dispostos a sujar o sapato não faltam, ainda que possam ser enquadrados como espécie em extinção. E um bom exemplo do que é capaz o poder do olhar e de um bom texto para que se possa tocar o leitor está no livro A vida que ninguém vê, que acaba de chegar às livrarias.

Eliane Brum, a autora, é o que se pode chamar de repórter com maiúscula. A rua e seus personagens, suas surpresas diárias, seus anti-heróis, é sua matéria-prima. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como párias, ou invisíveis, numa linguagem mais moderninha, ou não-incluídos socialmente, segundo o dicionário do politicamente correto. É o mendigo que passa o dia inteiro deitado numa rua de Porto Alegre, vendo a vida do rés-do-chão. Ou um pai que acaba de enterrar o filho natimorto. Ou um louco da comunidade.

Esses são personagens que vimos no nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. No máximo, estendemos a mão e derrubamos uma pequena esmola, se for o caso de um mendigo. Mas Eliane é diferente. Ela tem a sensibilidade à flor da pele, e entende que, para descobrir o tema de uma grande reportagem, basta mudar o ângulo, o foco – ou, numa palavra, o olhar.

O avesso da lenda

Os textos de A vida que ninguém vê são crônicas que Eliane produziu e foram publicadas pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 1999. O livro acabou valendo à repórter o Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul daquele ano. Os textos são crônicas, mas podem ser lidos como reportagens. Hoje as fronteiras entre os gêneros se confundem. E a própria crônica é uma espécie de híbrido entre o jornalismo e a literatura. Mas o fato é que as histórias que Eliane descobriu e contou com singularidade jamais seriam narradas se ela tivesse permanecido numa redação, pendurada num telefone ou observando o mundo por trás da tela de um computador – ou seja, se não tivesse fugido do convencional.

Com 40 anos, gaúcha da pequena cidade de Ijuí, a própria Eliane fugiu do convencional ao ser mãe aos 15 anos e deixar tudo para trás, inclusive a filha pequena, que confiou à guarda dos avós, para conhecer a vida. “Eu fugi de casa porque não queria casar e ficar em Ijuí. Sempre sonhei em conhecer o mundo”.

Sempre navegando na contramão dos temas oficiais, do jornalismo de pompa e circunstância, em 1993, aos 26 anos Eliane botou na cabeça que refaria o percurso da Coluna Prestes. O tema já a interessava há muito tempo. Ela viu, foi e venceu. Acabou contando a anti-história da célebre coluna, pois o que viu e narrou contradisse o véu de heroísmo e bravura que sempre recobriu os feitos de Prestes e companheiros de aventura. A reportagem foi publicada em 1994 com o título “Coluna Prestes – O avesso da lenda”, dando a Eliane o prêmio Açorianos de Literatura, como autora-revelação.

No Sahara

Essa foi apenas uma das reportagens singulares de Eliane. No texto “O olhar insubordinado”, que encerra o livro, ela faz sua profissão de fé, seu credo no que acredita ser o essencial para o trabalho de repórter – ou o que ela prefere classificar como uma “campanha pela volta dos sapatos sujos”. Algumas dessas pérolas:

** “Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro”.

** “Olhar é um exercício cotidiano de resistência”.

** “Se o telefone e a internet são invenções geniais, não há tecnologia capaz de tornar obsoleto o encontro entre um repórter e seu personagem”.

** “Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento do trabalho do repórter”.

** “O dito é, muitas vezes, tão importante quanto o não-dito, o que o entrevistado deixa de dizer, o que omite. É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio”.

** “Olhar dá medo porque é risco”.

** “Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas”.

** “Tudo o que somos de melhor é o resultado do espanto”.

** “Por mais que você escolha não viver, a vida te agarra em alguma esquina. O melhor é logo se lambuzar nela, enfiar o pé na jaca, enlamear os sapatos”.

** “Ser repórter é um dos grandes caminhos para entrar na vida (principalmente na alheia) com os dois pés e com estilo”.

** “Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói”.

No livro, Eliane Brum relata que, em janeiro deste ano, partiu para mais uma experiência radical. Acompanhada do aventureiro brasileiro Toco Lenzi, percorreu a pé centenas de quilômetros pelo deserto do Saara, tendo como ponto de partida a Mauritânia. Foram 20 dias explorando uma realidade para a qual não fez qualquer tipo de preparação, exceto umas caminhadas no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, cidade onde mora desde que foi trabalhar na revista Época, em 2000. “Fiz o antijornalismo. Não li nada a respeito da Mauritânia nem do deserto, nem sobre a sobrevivência no deserto. Não planejei nada”. O objetivo era entregar-se a uma realidade desconhecida sem pré-julgamentos, um exercício radical do olhar. A experiência será transformada em livro.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias