Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O papa de La Quinzaine Littéraire

Um conhecido psicanalista parisiense que escreve no jornal La Quinzaine Littéraire estava incumbido de criticar um livro sobre Jacques Lacan. Um dia, o telefone toca tarde da noite. ‘E o artigo sobre Lacan?’, pergunta Maurice Nadeau, editor do jornal. ‘Para a semana que vem, sem falta’, responde o psicanalista. ‘Para amanhã’, diz Nadeau, com autoridade, e desliga.

No dia seguinte, a resenha chegava ao computador da Quinzaine. ‘Ele tem o mesmo estilo de Lacan, que sabia se impor quando queria algo’, conta o psicanalista.

Aos 94 anos, o jornalista mantém uma atividade de dar inveja a muito jovem: é editor do selo que tem seu nome e dirige o prestigioso La Quinzaine Littéraire, onde escreve uma crônica quinzenal. Nadeau, um dos críticos literários mais respeitados da França, criou a Quinzaine em 1966. Colaborar no jornal acrescenta prestígio e por isso grandes nomes da literatura, da filosofia, das artes e da psicanálise nele escrevem regularmente, sem nenhuma recompensa a não ser a de assinar artigos no jornal de Nadeau.

Aliás, as reuniões de pauta semanais na Quinzaine mais parecem um coquetel literário. Regadas a uísque, suco de laranja e água mineral Perrier, bebidas devidamente acompanhadas de biscoitos salgados, elas reúnem o comitê de redação que vai examinando os lançamentos e batendo o martelo sobre os livros que devem ou não ser criticados. Sempre com comentários sutis sobre por que devem ou não merecer uma resenha. Os participantes das reuniões de quarta-feira, nomes consagrados da inteligentsia francesa, chegam antes das 18h pois às 18h em ponto começa a reunião que dura uma hora.

Sentado diante de sua grande mesa tendo ao fundo uma parede onde se vêem fotos de grandes escritores, Nadeau ouve a apresentação dos livros e de vez em quando emite uma opinião sobre um livro ou um autor. Os comentários sobre livros e escritores dos integrantes do comitê podem ser ferinos. Alguém menciona uma conhecida filósofa que já colaborou no jornal. Ela se separou do marido ‘porque descobriu que não tinham a mesma concepção do conceito’, conta um filósofo, despertando risos discretos.

Coleção cult

Maurice Nadeau é mais que um editor, é um ícone do jornalismo e da edição francesa e na Quinzaine reina absoluto, tendo como braço direito Anne Sarraute, filha da escritora Nathalie Sarraute. O crítico literário, editor e jornalista revelou aos franceses escritores como Samuel Beckett, Malcolm Lowry, Roland Barthes e George Perec, entre outros. Foi Nadeau quem editou o primeiro romance de Michel Houellebecq, Extension du domaine de la lutte, em 1994, depois de as editoras como Seuil e Gallimard terem recusado o livro.

Na década de 1990, Nadeau escreveu uma autobiografia original (Grâces leur soient rendues, Ed. Albin Michel) na qual conta um pouco de sua vida por intermédio dos grandes escritores que conheceu como crítico literário do jornal Combat, de Albert Camus.

Na função de crítico, ele encontrou os personagens mais importantes da intelligentsia francesa. De alguns, tornou-se amigo. Com André Breton houve um mal-estar pela publicação da História do Surrealismo, que Nadeau produziu durante a guerra e que continua uma referência no assunto. Seu ensaio sobre Flaubert – ‘Gustave Flaubert écrivain’ – ganhou o prêmio da crítica literária, em 1969, quando foi lançado.

Há poucos anos, a marca Louis Vuitton criou com Nadeau uma coleção que logo se tornou cult – ‘Voyager avec’. Neste selo Quinzaine Littéraire-Louis Vuitton já foram publicados textos de viagem de Joseph Roth, Jacques Derrida, Virginia Woolf, D. H. Lawrence e Paul Morand, entre outros.

A seguir, a entrevista de Maurice Nadeau ao Observatório da Imprensa.

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O senhor é um dos raros editores que assinam um livro como autor e editor, como o ensaio sobre Flaubert, por exemplo. Qual a posição que lhe dá mais satisfação, a de jornalista e crítico literário, a de editor ou a de escritor?

Maurice Nadeau – Nunca soube responder a esta questão porque ser crítico literário e jornalista me dá tanto prazer quanto ser editor. O que acontece é que exerci várias atividades ao mesmo tempo. Agora mesmo, acabo de enviar um manuscrito para composição e vou ler artigos para o jornal. Como se pode chamar isso?

Ecletismo?

M.N. – Não acho que seja ecletismo pois não foi uma escolha. Sou desse tipo de gente que quer fazer tudo ao mesmo tempo e fazem mal. Em geral.

O senhor fez um pouco de tudo e fez tudo bem-feito.

M.N. – Isso é outra questão…

O senhor conviveu com grandes nomes da literatura e revelou alguns. Disse a Perec para reescrever Les choses, para retirar o que ele tinha de influência de Flaubert. Como se reconhece um escritor que está nascendo?

M.N. – Você me faz perguntas difíceis! Não há critérios. Sim, há um critério, a escrita, o estilo. Mas o texto fala ou não fala. Tenho um amigo que diz: ‘Sinto o texto’. Há algo que passa entre o texto e você. Agora, o que, em geral é a escrita, a maneira de se expressar? Vê-se imediatamente depois de ler algumas linhas que não passará. Ao mesmo tempo, não é apenas isso porque senão seria uma espécie de formalismo, de estetismo. Não é só isso, é o que passa através da escrita, o fundo. Como dizia Flaubert, o grande mestre, não se pode separar os dois. E um manuscrito é interessante porque ele passa algo do fundo e da forma. Há a escritura, há um problema que lhe toca pessoalmente ou que interessa a muitas pessoas. Existem muitas formas de se sensibilizar com um texto.

O primeiro livro de Michel Houellebecq, Extension du domaine de la lutte, editado pelo senhor, vendeu bem, na época?

M.N. – Não muito, porque passou um tempo até que houvesse matérias sobre ele. Acho que a primeira apareceu no jornal Libération. Eu o tinha convidado ao Salão do Livro para autografar e havia jovens que se aglomeravam ao redor dele. Mas isso não aumentava muito as vendas. Foi pouco a pouco que começou a se vender e agora é um sucesso.

Já é um best-seller.

M.N. – Best-seller mas não exatamente para mim, pois eu o vendi logo à coleção Livro de Bolso para recuperar um pouco de dinheiro; agora já foram vendidos 400 mil exemplares, e eu vendi 25 mil. Mas não me queixo, eles também me pagam e do ponto de vista financeiro não foi um mau negócio.

Vamos mudar um pouco de assunto, passar à política. Os franceses de esquerda hoje procuram um nome de união com vistas à próxima eleição presidencial. Como o senhor, que foi trotskista, vê a situação atual?

M.N. – Vejo a esquerda bem mal. Porque ela começa no Partido Socialista, que nunca foi muito à esquerda, e é cada vez menos, na medida em que existe a sociedade mundial à qual é preciso se integrar. E há a extrema esquerda, que são os antigos trotskistas e os novos, que têm alguém muito brilhante, o jovem carteiro, Olivier Besancenot.

O senhor acha que os trotskistas têm um papel na política francesa atual ou são um anacronismo?

M.N. – Eles são o que nós éramos na época: estávamos certos que as pessoas iam acabar por compreender e nos seguiriam. A gente dizia: ‘É o levedo que faz a massa crescer’. E tínhamos exemplo disso. Eu tinha vivido as grandes greves de 1936, a Frente Popular, eu era um militante. As usinas Renault, as maiores da época, tinham milhares de operários e havia dois ou três trotskistas no meio de milhares de operários. Eles fizeram uma greve geral e isso foi um dos motores da greve de 1936, por exemplo. O levedo faz a massa crescer, mas quando há um momento em que as circunstâncias são propícias. Éramos leninistas, isto é, é preciso também que a situação seja favorável e quando os componentes da situação não são reunidos o levedo não faz a massa crescer, é claro.

Se compreendi bem, o senhor não acha que os trotskistas são um anacronismo na política francesa?

M.N. – Não creio que sejam, mas a formação deles é bem diferente da nossa. Na minha geração, havia alguns intelectuais mas havia também operários, uma classe média que se formava na política. Esses de agora foram formados pelos estudantes a partir de maio de 1968. Não conheço a composição atual do grupo da Liga Comunista Revolucionária, vejo que há sobretudo intelectuais. Eu votaria em Besancenot.

Sua História do Surrealismo continua sendo uma referência insuperável no tema. Mas parece que André Breton não apreciou muito o livro. Por quê?

M.N. – Ele levou um tempo para poder me dizer ou mandar dizer. Eu não lhe mandei o livro quando saiu porque ele estava nos Estados Unidos. Foi durante a guerra, durante a ocupação alemã.

Foi uma encomenda?

M.N. – Não, fiz porque estávamos durante a ocupação e tinha a impressão de que tínhamos vivido um grande movimento, que havia acabado pois todos tinham partido – Benjamin Péret, Breton e os outros. E os jovens que eu conhecia não sabiam o que tinha sido o surrealismo. Então achei que devia escrever como quem diz ‘foi formidável, foi assim’. Eu não era uma testemunha direta, tinha tido amigos no grupo mas não era um artista, não era um poeta, não era pintor. Antes da guerra, eu era apenas professor. Quis escrever para dizer ‘isso existiu, a guerra vai terminar um dia, vocês podem tomar como exemplo esse movimento’.

Não enviei a Breton, que estava nos Estados Unidos, porque me dizia também que ele iria achar o livro ruim. Fiz uma grande pesquisa para o livro, entrevistei os que ainda estavam em Paris – Raymond Queneau, Michel Leiris, Pierre Naville, um dos fundadores do grupo que era meu amigo. Tinha colecionado revistas. Breton ficou encantado de saber que se contava a história do movimento surrealista. Ele demorou a voltar a Paris depois da guerra e fui entrevistá-lo para o Combat. Ele parecia contente com o livro menos com a foto. Ele sempre deu importância à aparência. Era uma foto das de máquinas photomaton, uma novidade na época e ele não estava bem. Mas depois ele mudou e passou a ter raiva de mim e [isso] foi aumentando com o tempo, com o fato de que ele era mais conhecido, já estava coberto de glória.

Compreendo que ele tenha ficado amargo em relação a mim, mas depois ele chegou a me convidar para ir à sua casa mas eu não tinha tempo, estava sempre ocupado como editor e jornalista. Os laços se cortaram – eu lamentava, claro. Mas, no fim da vida, ele se reconciliou com todo mundo, com Artaud, Bataille, Leiris, Queneau, e até mesmo com Aragon que fora seu grande inimigo. A mim, ele me enviou um livro com uma dedicatória dizendo que não fora ele quem começara. O assunto estava encerrado.

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Jornalista