Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Plínio Bortolotti

‘Em junho deste ano O Povo noticiou que a Secretaria do Turismo do Ceará (Setur) bancou viagem de vários prefeitos para Portugal. Sou leitor assíduo do jornal e não vi continuidade do assunto. Pior, fiquei sabendo que a Setur está patrocinando agora uma viagem para os Estados Unidos, na qual estão dois jornalistas do O Povo, além de outras pessoas da própria secretaria, que estão fazendo turismo às custas do nosso dinheiro. Não é muita hipocrisia e falta de ética para um jornal que se diz preocupado com o leitor?’

A crítica acima foi enviada por um leitor, referindo-se a eventos da Setur em três cidades americanas – Fort Lauderdale, Miami e Nova York –, com o objetivo de divulgar rotas turísticas alternativas às praias. De fato, dois jornalistas do O Povo, a editora de Economia Neila Fontenele e o repórter Eliomar de Lima participam da viagem, como também profissionais de outros meios de comunicação locais.

Na edição de quarta-feira, foi publicada a matéria ‘Setur quer atrais turistas dos EUA’. O texto, assinado por Neila Fontenele, é bastante transparente ao revelar detalhes da viagem: ‘Uma comitiva formada por 26 pessoas, entre representantes do governo do Estado e da rede hoteleira, além de jornalistas (…) Aproximadamente US$ 40 mil foram investidos pelo governo na promoção, 70% das despesas foram pagas pelo contribuinte cearense. A TAM Viagens arcou com 30% dos custos’. Ao pé da matéria o leitor ainda tem esta informação: ‘A jornalista viajou a convite da Secretaria do Turismo do Estado do Ceará (Setur)’.

O Guia de Redação e Estilo estabelece as condições em que convites podem ser aceitos: ‘O jornal não se compromete a publicar matéria sobre o assunto objeto do convite (…) Além da assinatura do jornalista, no início da matéria, será informado, no final, o nome de quem fez o convite. O jornalista deve ainda tomar cuidado de permanecer isento em relação ao tema objeto do convite. O Povo não admite qualquer forma de interferência externa no conteúdo editorial: o tamanho e o destaque da matéria ficam sob responsabilidade exclusiva do editor e do repórter.’ É preciso também levar ao conhecimento dos leitores que, principalmente em eventos turísticos, a grande maioria dos jornais aceita convites para participar de viagens. Portanto, os profissionais que acompanham a comitiva do governo do Estado nada estão fazendo de irregular, ainda que se possa questionar o procedimento de empresas e jornalistas ao aceitarem os convites.

Portugal

O noticiário a respeito da viagem a Portugal, sem a presença de jornalistas, foi bastante crítico. Com chamada de capa, a editoria de Política publicava no dia 6 de junho ‘Setur paga viagem de 43 prefeitos’, título sob o qual estava escrito: ‘Uma extensa comitiva de prefeitos cearenses embarcou no último domingo em direção a Portugal. O custo da viagem será bancado pela Secretaria do Turismo do Ceará. Os 43 prefeitos levaram assessores e até mesmo as esposas’. (A atividade da qual os políticos participaram foi o 3º Encontro Luso-Brasileiro de Vocação Turística.) Na mesma edição, a coluna ‘Vertical’, de responsabilidade institucional exclusiva do O Povo, pois não é assinada, abordou o assunto em nota com o irônico título de ‘Vôo da alegria’.

Por duas edições, o jornal voltaria ao tema, devido a ações tomadas a partir da publicação da notícia inicial: ‘Ministério Público Estadual investiga viagem de 43 prefeitos a Portugal’ (7/6) e ‘Tribunal Regional Eleitoral impede Setur de pagar viagens’ (9/6). Nesta matéria, o procurador-geral do Estado, Wagner Barreira, disse que os acompanhantes, sem função nas prefeituras, custearam suas despesas. Quando foi publicada a primeira matéria, fiz o seguinte comentário na crítica interna à Redação: ‘A não ser que haja alguma irregularidade, qual o problema em o Estado mandar a Portugal prefeitos para participarem de uma atividade da indústria turística, uma das áreas econômicas mais importantes do Ceará?’

Duas viagens

Feitos os esclarecimentos e a remissão do assunto, ainda fica o questionamento: por que o jornal participa de uma viagem semelhante àquela que noticiou em tom de denúncia cinco meses antes?

Erick Guimarães, editor de Política, respondendo interinamente pela direção da Redação, diz o seguinte: ‘Há diferença qualitativa entre os dois casos. No primeiro, havia questões eleitorais envolvidas. Na véspera da eleição e pouco antes da Copa do Mundo, o governo bancou a viagem de 43 prefeitos e secretários municipais (alguns deles, esposas de prefeitos). Muitos deles apoiariam o governador logo em seguida, como ficou registrado na cobertura eleitoral. O assunto mostrou-se tão pertinente que o Ministério Público entrou com uma ação e o pagamento da viagem chegou a ser suspenso. No segundo caso, trata-se da cobertura jornalística sobre uma ação da Setur, bastante diferente. O grupo é menor (26 pessoas), o objetivo está bastante definido (apresentar o destino Fortaleza a um grupo de 474 agentes de viagem americanos), o custo do evento será parcialmente bancado por uma empresa privada (a TAM) e a viagem resultou em material jornalístico’.

Há pontos a serem questionados na resposta do editor: 1) não há prova que a data da viagem anterior estava relacionada propositalmente com a Copa do Mundo; no mínimo, o evento tinha de ser combinado com os organizadores europeus; 2) sobre o possível apoio que poderia render ao governador Lúcio Alcântara, o procurador-geral do Estado rebateu o argumento, à época, lembrando que viajaram prefeitos de vários partidos; 3) sobre a ‘pertinência’ do assunto, devido à ação do Ministério Público, o jornal deixou de acompanhar o caso, como reclama o leitor: o governo foi condenado, absolvido ou o processo ainda tramita?; 4) sobre o número menor da comitiva, é uma diferença de grau, não de mérito; 5) o fato de parte da despesa ser paga por uma empresa privada não muda a essência da questão; 6) também não muda o fato de a viagem ter resultado em ‘matéria jornalística’, pois é esse mesmo o objetivo a ser alcançado por quem faz o convite. Fica, portanto, prejudicada a tese de ‘diferença qualitativa’, defendida por Erick.

Se O Povo regulamenta a forma de os jornalistas cobrirem certos acontecimentos com as despesas pagas pelos organizadores – tornando o procedimento transparente –, não deixa de ser questionável participar de um evento análogo ao que condenara recentemente.’