Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vida dura na tribo

“Com raras exceções, o correspondente internacional é prima donna, workaholic, egoísta e solitário, às vezes agressivo, às vezes dissimulado”.

A descrição certamente não tem nada do glamour associado normalmente a uma das mais festejadas atividades da imprensa.

Mas, como retrata o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva em seu livro Correspondente Internacional (editora Contexto, 186 págs., R$ 33), que tem lançamento hoje [segunda, 6/6] em São Paulo, a função é bem mais ampla do que a cobertura de casamentos da realeza ou a assinatura de acordos de paz.

Ex-correspondente da Folha nos EUA e atualmente colaborador do jornal, Lins da Silva intercala na obra anedotas pessoais e vasta referência teórica sobre o tema, reflexo de sua carreira acadêmica (é professor livre-docente da USP).

Segundo ele, ser correspondente exige no mesmo grau tenacidade, coragem pessoal e uma imensa paciência. Não raro, também litros de álcool.

Correspondentes estrangeiros já foram definidos por alguns, como Andrew Marr, ex-editor de política da BBC, como uma “aristocracia” dentro do jornalismo. O autor prefere o termo “tribo”, e é fácil entender a razão.

“Elite da elite”

Afastados de seu país, impondo sacrifícios à família e frequentemente sentindo-se esquecidos (ou rejeitados), tendem a unir-se em grupos onde a divisão companheiro/concorrente é tênue.

É um mundo em que adversários nas páginas dos jornais dividem despesas de hotel, trocam ideias sobre a melhor maneira de abordar uma reportagem, consolam-se e animam-se na mesma medida em que competem e geram desconfiança mútua.

Entre os dilemas da tribo, diz Lins da Silva, talvez o maior para o correspondente seja como não se apaixonar demais pelo país em que está baseado, esquecendo-se de que precisa falar de assuntos de interesse para o brasileiro.

O correspondente, que se sente a “elite da elite” do jornalismo, precisa encarar a realidade de que o noticiário internacional está normalmente longe das preocupações centrais dos leitores, o que se reflete na edição.

Ele lembra com pesar que o Massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, não foi manchete da Folha em junho de 1989, mas sim uma frase hoje desimportante do então presidenciável Ulysses Guimarães.

O livro pode ser lido como um manual para não-iniciados e deve fazer sucesso em escolas de jornalismo.

Seu ponto alto sem dúvida é o relato dos percalços de um correspondente, a mistura da vida profissional com a pessoal, a ginástica para escrever uma reportagem com uma mão e alimentar o filho pequeno com a outra (com gotas de sopa espirrando no laptop, como ele relembra).

Num mundo interconectado, conclui Lins da Silva, correspondentes fazem cada vez mais a diferença para o leitor.

Mesmo se essa “elite” hoje não tem escritórios com poltronas de couro, tapetes orientais e palmeiras, como o americano Daily News oferecia a seus repórteres em Paris e Londres, há cem anos.

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