Monday, 02 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

The Intercept escancara falhas da Lava Jato e lança discussões sobre ética e interesse público

Publicado originalmente por objETHOS

A reportagem do The Intercept Brasil que divulgou mensagens do então juiz Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato caiu como uma bomba no início da noite de 9 de junho. Os chats privados revelam, principalmente, colaboração proibida entre Moro e Deltan Dallagnol. De acordo com o artigo 254, inciso IV, do Código do Processo Penal, “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes se tiver aconselhado qualquer das partes”. Com base nisso, a defesa do ex-presidente Lula quer usar as mensagens para pedir anulação dos processos que o condenaram à prisão.

A publicação da reportagem a partir de informações vazadas por uma fonte anônima — e sem ouvir “o outro lado” — suscita discussões éticas bastante relevantes. Neste texto, vamos nos concentrar nas decisões editoriais do The Intercept, dos outros veículos que repercutiram o fato e no protagonismo do jornalismo, que aparece em diversos trechos das conversas e fica explícito nas partes 2 (“Procuradores da Lava Jato tramaram em segredo para impedir entrevista de Lula antes das eleições por medo de que ajudasse a ‘eleger o Haddad’”) e 3 (“Uma reportagem de 2010 trouxe alívio aos procuradores para levar adiante a acusação — e o PowerPoint — contra o ex-presidente”) da reportagem.

Ao escancarar as falhas da operação que monopolizou a opinião pública na política recente, o veículo abre margens para se discutir a ética do Judiciário e também a do jornalismo. A seguir, trazemos três motivos pelos quais a reportagem já pode entrar para a história do jornalismo.

1. A transparência como método

Um dos discursos mais contundentes assumidos pelos veículos de comunicação, dos tradicionais aos alternativos, é de que o jornalismo teria como tácito um compromisso com a verdade. Não cabe, nesse espaço, fazermos uma longa discussão teórica sobre o tópico, alvo de debates acadêmicos extensos, mas é preciso expô-lo minimamente.

Para reforçar sua credibilidade e convocar a audiência ao consumo de suas notícias, os jornais construíram uma trajetória no debate público que se ampara no conceito de “objetividade”. A socióloga Gaye Tuchman, uma das primeiras a investigar na prática das redações a aplicação desse conceito, descreveu-o como um ritual estratégico para que o jornalismo assegure sua relevância e, os jornalistas, seu papel social.

Conforme essa lógica, no extremo, se Adolf Hitler passasse por um julgamento por seus crimes, os jornais teriam de fazer um esforço retórico para dar a ele um espaço de fala e de defesa, tal como ocorreria nos tribunais, ainda que houvesse incontáveis indícios de sua atrocidade.

Esse ideal, no entanto, mostra-se frágil em momentos de crise institucional. Nas eleições de 2018, por exemplo, levaram jornais tradicionais a assumirem paralelismos entre uma candidatura do campo democrático a uma que deu indícios claros de desprezar a democracia. Esse “isenciocinismo” amparado no apreço pelo conceito de objetividade nos leva a um cenário em que, muitas vezes, o jornalismo se afasta de modo irreversível da verdade no esforço de construí-la a partir de um ponto de vista equânime.

No caso dos vazamentos dos diálogos que desconstroem a operação Lava Jato, The Intercept opta pela subversão dessa lógica, expondo seus procedimentos e posicionando-se no texto que desconstrói uma farsa jurídica. Na reportagem, há a explosão de um valor contemporâneo do jornalismo: a transparência.

No editorial que abre a reportagem, Glenn Greenwald, Betsy Reed e Leandro Demori detalham as decisões éticas a seus leitores, revelando com transparência os procedimentos que adotaram. Vejam as justificativas:

— Divulgação de conversas privadas: “As três reportagens revelam comportamentos antiéticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer”.

— Seleção de quais informações noticiar e quais manter em sigilo: “Empregamos o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas, mas as que são puramente privadas e infringiriam o direito legítimo à privacidade ou outros valores sociais devem ser preservadas”.

— Proteção das informações em off: “Nós tomamos medidas para garantir a segurança deste acervo fora do Brasil, para que vários jornalistas possam acessá-lo, assegurando que nenhuma autoridade de qualquer país tenha a capacidade de impedir a publicação dessas informações”.

– Publicação da reportagem sem ouvir “o outro lado”: “Ao contrário do que tem como regra, o Intercept não solicitou comentários de procuradores e outros envolvidos nas reportagens para evitar que eles atuassem para impedir sua publicação e porque os documentos falam por si. Entramos em contato com as partes mencionadas imediatamente após publicarmos as matérias, que atualizaremos com os comentários assim que forem recebidos”.

Ao optar pela transparência, The Intercept se abre ao escrutínio público. Embora pareça sensato, isso não é algo comum: empresas jornalísticas não costumam explicitar suas decisões editoriais. Neste caso mesmo, temos um exemplo: o Fantástico preferiu não dar a nota da defesa de Lula, mas não disse por que. Simplesmente omitiu. Sendo Lula o principal personagem dos vazamentos, a omissão pode ser questionada eticamente.

2. O jornalismo como notícia

Grandes furos jornalísticos promovem um movimento interessante nas redações: o jornalismo passa a ser notícia, até mesmo por parte dos seus concorrentes. Discutem-se procedimentos éticos, questionam-se métodos e o seu modus operandi como agente político é exposto.

Na década de 1970, o tradicional jornal norte-americano The Washington Post entrou para a história por duas vezes consecutivas: na primeira, em um vazamento de documentos sigilosos que desnudavam ações criminosas dos Estados Unidos na guerra do Vietnã; na segunda, ao apontar, a partir de uma extensa colaboração em off de uma fonte, o então presidente Richard Nixon como responsável por um assalto na sede do Partido Democrata, o que levou à sua renúncia.

Há muitas semelhanças a serem tratadas aqui, inclusive a possível repercussão mundial. No caso do vazamento dos documentos de guerra, o filme The Post mostra a disputa política entre o jornal, que levou o caso a julgamento após diversas tentativas de censura, e agentes políticos norte-americanos interessados em camuflar a verdade. Também aqui, o “vazador” surge como um personagem central: foi um pesquisador pago pelo governo quem copiou os documentos e entregou, primeiro ao The New York Times, depois ao The Post.

No escândalo de Watergate, chama a atenção todo o relacionamento estabelecido entre os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein com “Garganta Profunda”, a fonte do FBI que confirmava ou negava os materiais coletados por eles numa apuração que expunha e incriminava o presidente.

Os jornalistas que trabalharam nas duas apurações também foram alçados quase ao papel de celebridades. Na manhã de segunda (10), no calor dos fatos, Veja publicou um perfil do jornalista premiado Glenn Greenwald, que co-assina a reportagem. Glenn recebeu um Pulitzer, principal prêmio do jornalismo norte-americano, por seus materiais sobre Edward Snowden, que revelou segredos norte-americanos ao mundo.

Relações de off aparecem na reportagem do Intercept, reforçando a importância desse método jornalístico e escancarando sua relevância para desvelar ações que permaneceriam escondidas caso precisassem ser atribuídas a um nome e sobrenome. Em nota publicada logo após a veiculação dos vazamentos, o ministro Sergio Moro, um dos mais atingidos pelo vazamento, demonstra desconhecer a relevância e a legitimidade do off. “Lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores”, argumenta o ministro.

O lamento de Moro sugere desprezo por um dos grandes instrumentos do jornalismo no seu papel de fiscalizar a democracia. O off já derrubou presidentes e também é capaz de derrubar ministros. Além disso, a Constituição Federal assegura o sigilo da fonte (Artigo 5º, XIV), impedindo que qualquer pessoa ou instituição obrigue um jornalista a dizer de quem obteve a informação.

Outra questão é o protagonismo do jornalismo no próprio conteúdo das conversas e, em última instância, em toda a história da Lava Jato. Não à toa Lula colocou a imprensa como parte fundamental na engrenagem de seu processo judicial, como mostramos neste texto. As partes 2 e 3 da reportagem do Intercept ratificam isso. Ao mostrar como os procuradores tramaram para impedir a entrevista de Lula, fica claro o ataque à liberdade de imprensa, outro princípio constitucional. Mônica Bergamo falou sobre isso:

“Qdo a entrevista de Lula enfim foi autorizada, eu afirmei aqui no Twitter que a vitória jurídica da Folha e do El País era um ROMBO na censura. As msgs dos procuradores reveladas por @TheInterceptBr confirmam o pouco apreço que parte do país tem pela PLENA LIBERDADE de imprensa”.

Na parte 3 da reportagem, as conversas revelam como uma matéria do jornal O Globo foi utilizada pelos procuradores como indício de acusação, a ponto de Dallagnol dizer: “Tesao demais essa matéria do O GLOBO de 2010. Vou dar um beijo em quem de Vcs achou isso”. As conversas indicam ainda o desejo dos procuradores de entrar em contato com a jornalista Tatiana Farah para saber a fonte das informações e até levantam a possibilidade de tomar seu depoimento.

Para The Intercept, “a reportagem do Globo não foi um item trivial nesse caso: além de figurar na denúncia como prova de que o triplex era de fato do casal Lula, foi usada na sentença assinada por Sergio Moro. Sobre ela, o juiz escreveu: ‘A matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista probatório’”.

A relação entre jornalistas e fontes é permeada por questões éticas bastante delicadas. Não é possível comprovar se os procuradores entraram em contato com a jornalista de O Globo, mas está clara a intenção. Partindo disso, podemos questionar a pressão que um membro do Ministério Público poderia exercer para que a jornalista revelasse sua fonte. Só essa tentativa já é antiética, pois a fonte não explicitada em uma matéria deve permanecer no anonimato. E é bastante improvável que os procuradores do Ministério Público não saibam disso.

3. Disputa de narrativas

A disputa de narrativas sobre os vazamentos começou pouco tempo depois da publicação da reportagem por The Intercept. O veículo se posicionou de forma transparente, consolidando a versão de que os diálogos indicam desvios éticos nos procedimentos de investigação, acusação e condenação do ex-presidente Lula. Mas nem todos os jornais seguiram por esse caminho.

Da imprensa tradicional, Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, foi a primeira a repercutir, em um tweet, as descobertas do vazamento. “ESCÂNDALO de gdes proporções: procuradores da Lava Jato agiram p impedir entrevista de Lula à Folha, mostram msgs trocadas entre eles e reveladas por @TheInterceptBr. Uma procuradora diz q rezava todos os dias p o PT não ganhar as eleições. Poder do Estado, MPF deve ser imparcial”, escreveu em uma sequência de posts e retuítes que se estenderam até o fim da noite.

Formalmente, os grandes veículos só entraram no páreo após a divulgação de uma nota da força-tarefa que atribuía os vazamentos a um hacker interessado em prejudicar a Lava Jato. Época, do grupo Globo, foi a primeira, às 20h48. Folha de S.Paulo, UOL, O Estado de S. Paulo e até a TV Globo noticiaram na sequência e optaram por diferentes estratégias de construção da notícia.

Época escolheu a coluna de opinião de Guilherme Amado como primeiro lugar da cobertura e deu amplo espaço para as defesas da força-tarefa e de Moro. A nota divulgada pela defesa de Lula não foi divulgada. O veículo parece ter aguardado os envolvidos validarem os fatos para assumi-lo como notícia. “As reportagens do Intercept não dispuseram os arquivos brutos que, segundo eles [a força-tarefa], foram fornecidos por uma fonte anônima. Os trechos publicados pelo site sugerem que houve falta de parcialidade no relacionamento entre Sergio Moro e os procuradores de Curitiba, especialmente em relação ao PT e a Lula”, diz a primeira nota.

No Fantástico, a nota foi reproduzida em um dos últimos blocos. O texto atribui todas as informações ao The Intercept Brasil — uma forma de creditar o trabalho do veículo, mas também de se isentar e de deixar a audiência com doses de desconfiança sobre a credibilidade do que ouve. O texto foi reproduzido também pelo G1, pouco depois de ir ao ar na TV, e posteriormente atualizado com declarações da equipe do ex-presidente.

Enquanto UOL e Folha escolheram uma cobertura mais contundente, com títulos como “Mensagens mostram colaboração entre Moro e Deltan na Lava Jato, diz site” (Folha) e “Mensagens vazadas revelam que Moro orientou investigações da Lava Jato” (UOL), O Estado de S.Paulo optou por um caminho diferente: “PF apura invasão de telefones de Moro e de procuradores”.

A abordagem de Folha e UOL transforma Moro e Deltan em protagonistas de uma narrativa que põe em xeque a ação do Judiciário. Seus textos resumem as descobertas do vazamento. O concorrente, entretanto, posiciona-os como vítimas, desconsiderando, inclusive, que a PF faz parte do Ministério da Justiça, chefiado pelo próprio Moro. Essa vitimização também se apresenta no texto, que pouco diz sobre o conteúdo dos vazamentos.

Causa curiosidade o fato de o juiz Sergio Moro ter vindo a público, pelo Twitter, para enunciar sua nota oficial a partir de uma publicação de O Antagonista, veículo citado em alguns dos diálogos vazados como um lugar seguro para a força-tarefa disseminar suas informações.

Ao assumirem seus enquadramentos, reforçando também questões editoriais, os veículos nos fazem retomar a discussão inicial sobre objetividade, mas não o fazem com transparência. The Intercept informa ao leitor por que optou por não ouvir as partes antes de veicular as reportagens (para proteger-se da censura). A Rede Globo e o Estadão não indicam por que não ouviram a defesa de Lula imediatamente sobre o assunto.

A disputa de narrativas — quem são as vítimas, os vilões e qual será o desfecho da história — está ainda em fase inicial. A repercussão internacional, o comportamento do STF, órgão máximo do Judiciário, as decisões do governo sobre a permanência ou afastamento de Moro e as próximas reportagens do The Intercept (curiosamente chamado genericamente de “site” por seus concorrentes) serão fundamentais para os próximos passos.

Um veículo pequeno, mas corajoso, revelou aquilo que muitos sabiam, mas não podiam provar: seu protagonismo é inestimável, mas é a opinião pública quem deve ditar o desfecho da história. O jornalismo já derrubou ministros e presidentes. Em sua melhor forma, pode dar uma grande contribuição à democracia, recuperando também sua relevância e credibilidade no debate público.

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Amanda Miranda é jornalista, doutora em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pós-doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

Lívia de Souza Vieira é professora de Jornalismo na Faculdade IELUSC e pesquisadora associada do objETHOS.