Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reaprender a ler notícias

Para a maioria das pessoas uma afirmação como esta soa fora de propósito. Afinal ler notícias é um hábito já incorporado à nossa rotina e aparentemente nada mudou a tal ponto que tenhamos que passar por uma re-alfabetização informativa. Mas por incrível que pareça é justamente isto o que muitos começam a descobrir, quando entramos cada vez mais fundo na era da internet.

leitura de jornais 02

Foto Wikimedia /Creative Commons

Não dá mais para ler um jornal, revista ou assistir um telejornal da mesma forma que fazíamos até o surgimento da rede mundial de computadores. O Observatório da Imprensa antecipou isto lá nos idos de 1996 quando cunhou o slogan “Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. De fato, hoje já não basta mais ler o que está escrito ou falado para estar bem informado. É preciso conhecer as entrelinhas e saber que não há objetividade e nem isenção absolutas, porque cada ser humano vê o mundo de uma forma diferente.

Até o advento da internet, a leitura de um jornal era um procedimento linear regido por conceitos absolutos: certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, legal ou ilegal. Não havia meio termo, e quando havia, eram poucas as opções intermediarias. Além disso, éramos movidos por uma confiança quase absoluta nos jornais, revistas e telejornais de nossa preferência. Assumíamos as opiniões do veículo como se fossem nossas.

O reaprendizado a leitura de jornais tornou-se uma necessidade porque a produção de uma notícia é cada vez mais um procedimento de alta complexidade. Quando se trata de um assunto importante, um exército de especialistas entra em campo para influir nos mínimos detalhes sobre como o tema será formatado pelos marqueteiros, publicitários e jornalistas; apresentado por programadores visuais, redatores, fotógrafos, cinegrafistas, designers e ilustradores; e finalmente discutido pelos formadores de opinião, especialistas, políticos e governantes.

Todas estas pessoas interferem, com maior ou menor intensidade, naquilo que vamos ler ouvir ou ver na TV. É muita gente, com muitos interesses e com muito preparo técnico para tentar condicionar nossas percepções e opiniões. Só por isto já dá para ver que só uma boa dose de ingenuidade pode justificar uma atitude passiva diante de tudo o que sai publicado na imprensa.

A disparada do dólar no mercado de câmbio nacional, por exemplo, é uma notícia que pode ser lida de muitas maneiras diferentes, gerando percepções e decisões que podem afetar diretamente o nosso modo de vida. Se você se deixar levar pela excitação das manchetes e dos apresentadores de telejornais, pode acabar achando que caminhamos para uma hecatombe financeira. Mas se você conhecer algum agente de câmbio ele vai te dizer que os investidores estão inseguros porque não sabem o que vai acontecer com o ajuste fiscal e na dúvida compram dólares para se garantir.

Se você for um pouco mais persistente descobrirá que entre os agentes de câmbio há muitos que apostam na especulação, ou seja, quando a cotação passar de um determinado limite eles vendem seus dólares para fazer o que o pessoal do ramo chama de “realizar lucros”. Uma coisa fundamental neste mercado de cambio é a informação confidencial, uma informação que só os grandes investidores e doleiros sabem, mas que você ignora totalmente. Sem entrar em muitos detalhes sobre a alquimia cambial é possível perceber que os interesses de doleiros e investidores levam a taxa do dólar a oscilar continuamente, porque sempre haverá alguém sabendo mais que os outros e aproveitando esta informação confidencial para lucrar. Mas você está fora do jogo porque não tem estes dados.

Assim, hoje em dia, a decisão de informar-se parte do pressuposto de que teremos de ir muito além daquilo que está publicado numa revista ou dito num telejornal. Isto implica não tomar a notícia publicada como uma verdade absoluta. A maioria das pessoas já sabe disto, ou pelo menos desconfia, mas no dia a dia acaba sendo influenciada pelas manchetes impressas ou de telejornais.

É a herança de um comportamento histórico que ainda está impregnado em nossas rotinas e que demora a ser alterado. Ter um pé atrás passou a ser a regra básica número um de quem passa os olhos por uma primeira página, capa de revista ou chamadas de um noticiário na TV.

Há uma diferença importante entre desconfiar de tudo e procurar ver o maior número possível de lados de um mesmo fato, dado ou evento. Apenas desconfiar não resolve porque se trata de uma atitude passiva. É claro, tudo começa com a dúvida, mas a partir dela é necessário ser proativo, ou seja, investigar, estudar, procurar os elementos ocultos que sempre existem numa notícia. No começo é um esforço solitário que pode se tornar coletivo, à medida que mais pessoas descobrem sua vulnerabilidade informativa. Mas isto é assunto para uma nova conversa com você, leitor.