Friday, 13 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Jornalismo científico e mercado do encantamento

Cada época proclama o seu zeitgeist, ou espírito de época, como se referem os alemães. O espírito do século 20 foi em larga medida dominado pelos paradigmas da física. Figuras como a do cientista Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade certamente contribuíram para ampliar esse domínio sobre as demais ciências. O reinado dos físicos, porém, foi substituído pelo dos geneticistas. Hoje é a biologia que ocupa o espaço. Os genes são o novo sujeito da história: os problemas e as respostas estariam na carga genética de cada indivíduo. Esse novo paradigma não leva em conta que somos produtos de relações complexas, que somos sistemas abertos, como a meteorologia. O entorno social das questões não é discutido.

Essa nova ideologia e a forma como tem sido vendida pela imprensa, sob a condição de verdade única, foi o tema exaustivamente estudado pelo jornalista Claudio Julio Tognolli, 40 anos, para sua tese de doutorado em Filosofia da Ciência, defendida na USP em 2002. O trabalho chega agora ao público na forma do livro A falácia genética: a ideologia do DNA na imprensa, recém-lançado pela editora Escrituras. De abordagem interdisciplinar, enfocando temas variados como genética, jornalismo, biotecnologia e filosofia, a obra dialoga com idéias fundamentais que forneceram as bases da ciência moderna.

Claudio Julio Tognolli escreveu O mundo pós-moderno (Scipione, 1997) e O século do crime (Boitempo, 1997), ambos em co-autoria com José Arbex Jr, e Sociedade dos chavões (Escrituras, 2001). Além de jornalista, é músico e mestre em Psicanálise. Atualmente, é professor de Jornalismo no Unifiam-Faam e na ECA/USP, repórter especial da Jovem Pan e do Consultor Jurídico. É também colaborador deste Observatório, da revista Caros Amigos e integrante da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Nesta entrevista por e-mail ele repassa algumas de suas idéias sobre o atual espírito de época e o nível do jornalismo científico que o retrata. A visão não é elogiosa: ‘Medíocre, voltado para o mercado do encantamento’.

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Quando e como se interessou por esse assunto?

Cláudio Júlio Tognolli – Sou músico. Venho de família de músicos e psicanalistas. Desde adolescente eu tinha um estudo sobre clichês na música. Que fui aperfeiçoando ao longo de minha vida, com estudos com o Marcus Rampazzo e o maestro Hans Joachimm Koellreutter. Quando fiz graduação na ECA, fui passando esta visão pro jornalismo. Fiz um dicionário de chavões na imprensa. Isso virou minha tese de mestrado. Mas, quatro anos antes de ela ficar pronta, meu trabalho com os clichês chamou a atenção do Augusto Nunes e do Alberto Dines. O primeiro me pôs na capa do Caderno B do Jornal do Brasil quando eu tinha 22 anos de idade, e o segundo me deu primeiro lugar no Curso Abril. Sabe o que significava isso prum iniciante? Tudo. Com tanto feedback, jamais deixei de ler jornal vendo, nas entrelinhas, o que tentava se vender. Quando começou-se a falar que os genes seriam a resposta final, fiquei com o pé atrás. Esses primeiros arrepios datam de uns 10 anos, eu acho.

Em seu livro, o senhor indica que agora o novo espírito de época é acreditar que a resposta final dos problemas está nos genes, no DNA. Como essa crença se estabeleceu?

C.J.T. – A história da ciência é a história da estética. A Teoria Geral da Relatividade já estava nas entrelinhas do conto ‘Entrevista com uma múmia’, do Edgar Allan Poe, datado do século 19. Acho que foi o T.S. Eliot quem disse que uma nova e grande obra de arte quando aparece afeta, imediatamente, todas as obras de arte que a precederam, obrigando-as a se reorganizar em seu derredor. Às vezes, a estética e a arte saem na frente da ciência. Às vezes, é o contrario. Por exemplo: quando Witelo e Gauss fizeram os primeiros experimentos com lentes e ótica, administrar a luz virou sintoma de modernidade. Por isso na Divina comédia, de Dante, Beatriz é salva pela luz: era Dante sendo influenciado por Witelo. Há quase 60 anos Adorno escreveu: ‘O moderno ficou fora de moda’. A arquitetura pós-moderna desde os anos 50 passou a privilegiar a transparência. Transparência que passou para outras áreas. Isso foi aproveitado no jornalismo: a câmera oculta é a transparência do não-autorizado. Temos isso no corpo, também: vende-se a idéia de que o corpo ‘virou’ transparente, com o mapeamento do genoma.

Por que a ‘febre do biologismo’, como o senhor se refere no livro, torna-se determinante neste século?

C.J.T. – Subirats aponta que a máquina desempenhou no início do século 20 o mesmo papel que a natureza no século 18 ou o gênio no período romântico: era o verdadeiro sujeito da história. Hoje, o gene é o sujeito da história. A imprensa coloca a resposta final dos geneticistas. A física chegou a limites que a biologia alcança apenas agora. O ‘gênio’ sai da física e vai para a biologia.

Por que se trata de uma falácia?

C.J.T. – O termo falácia genética, que intitula o livro, é um verbete clássico de filosofia. Usei-o para um livro de biologia. O fato de a bicicleta ter sido inventada na França (ou talvez na Escócia) não significa que bicicletas sejam um meio de transporte inadequado na China. Na Lógica, o erro de se confundir a origem de uma idéia, teoria ou crença com os próprios fundamentos de sua legitimidade é chamado de ‘falácia genética.’ Então, se a origem do homicídio está nos genes homicidas, isto é uma falácia. Porque somos sistemas abertos, como a meteorologia e a economia. Mas vende-se que somos sistemas fechados, como computadores, em que gene vira chip. Falar que somos sistemas fechados, o que a imprensa tem feito, é portanto uma falácia.

Que razões ideológicas estariam por trás desse determinismo? E com que conseqüências sociais?

C.J.T. – No século 19 o Times londrino satanizava o bacilo de Koch. Dizia que era ele o ‘culpado’ pela febre de tuberculose. Omitiam-se as condições sociais miseráveis que levavam à contração da doença. No princípio do século 20, John D. Rockefeller ponderava que ‘o desenvolvimento de vastos negócios equivale muito simplesmente à sobrevivência dos mais aptos’. Ao que o magnata das ferrovias dos EUA, James Hill, acrescentou em 1910: ‘A sorte das companhias de ferrovia é determinada pela lei da sobrevivência dos mais aptos’. Portanto: as conseqüências sociais são que teremos logo, logo a horda dos que trazem o ‘gene do homicídio’ em si, e não podem ser contratados…

Por que motivo a imprensa encampa essa novidade?

C.J.T. – Porque isso é novidade. E porque as maiores assessorias de imprensa do mundo são contatadas pelos grandes laboratórios de implementos biotecnológicos, que estarão dominando as bolsas de valores em 10 anos.

De que modo essa postura da imprensa vai se refletir na qualidade da informação?

C.J.T. – Bem, passaremos a acreditar que pessoas detentoras desse ou daquele gene podem mesmo ser aquilo que o gene determina.

Como a imprensa pode separar o joio do trigo, no caso da divulgação das notícias científicas?

C.J.T. – O Adlai Stevenson falava que a imprensa separa o joio do trigo e publica o joio. Com raras exceções, ela não separará.

Quais são as revistas que fazem um trabalho sério de divulgação científica no Brasil? Por quê?

C.J.T. – Só a Scientific American, porque não visa o lucro em cima de novidades.

E na área dos jornais impressos? Por quê?

C.J.T.Folha de S. Paulo. Porque o Marcelo Leite, bem como o Ulysses Capozzoli, na Scientific American, são muitíssimo bem preparados. Mesmo assim, analisei, 95% do que sai na Folha sobre o assunto vêm sem comentários, e portanto só se publica o que as agências internacionais mandam.

Que avaliação o senhor faz do nível do jornalismo científico praticado hoje no Brasil?

C.J.T. – Medíocre, voltado para o mercado do encantamento.

O debate sobre os transgênicos tem oscilado entre a sua aprovação e a sua condenação. O senhor acha que a imprensa tem esclarecido o suficiente sobre esse assunto?

C.J.T. – Nesse ponto, eu acho que muito.

Será que podemos identificar no caso dos organismos geneticamente modificados a ‘febre do biologismo’ de que o senhor fala?

C.J.T. – Claro. É o mesmo processo levado ao paroxismo.

Experiências como as de congelamento de corpos nos Estados Unidos, visando uma ressurreição no futuro, apontam para uma fé desmedida na ciência. A ciência estaria ocupando a função de uma nova religião?

C.J.T. – Sempre foi assim. Pena que a fé dos cientistas seja complexa para as massas, que preferem o Deus antropomórfico. A religião do futuro será a que Einstein previu: não antropomórfica. Mas toda forma de poder vira ideologia, a ciência não fica de fora.

Em sua opinião, que interesses existem por trás de projetos como o mapeamento do genoma humano?

C.J.T. – Curar doenças, o ponto genial da coisa. Mas não de graça: levaremos ideologia de brinde.

O senhor acredita que o mapeamento pode levar a uma tentativa de controle eugênico, no futuro, separando os genes bons dos ruins, as pessoas ‘boas’ das pessoas ‘ruins’?

C.J.T. – O genoma humano contém mais de 3 bilhões de letras e, caso impresso, preencheria 7 mil volumes de livros de 300 páginas. Dizem uns que o Projeto Genoma Humano vai transformar a medicina e mitigar o sofrimento humano no século 21 – como afastar as possibilidades de câncer, de cardiopatias, de doenças auto-imunes como a artrite reumatóide e algumas enfermidades psiquiátricas. Para outros, no entanto, o projeto poderá abrir a possibilidades para um mundo ‘povoado por Frankensteins e desfigurado por uma nova eugenia’.

Como o senhor avalia posturas como a do físico Fritjof Capra, que hoje assumiu novos paradigmas após anos de aproximação da ciência com as filosofias orientais?

C.J.T. – Isso do Capra não é novo. É dos anos 70. O Dr. Timothy Leary, de quem fui amigo, admitiu o Capra e o movimento ‘Tudo num só’, mais iogues, swammies, dentro de tudo o que a contracultura tentou abarcar. Tive muitas aulas com o maestro Koellreutter, mestre do Tom Jobim, que ficava me buzinando pra eu estudar o Capra. O maestro Koellreutter criava as suas peças, como Akronon, em cima das teorias do Caos e do Princípio da Incerteza do Niels Bohr e do Werner Heisemberg. Esse pessoal do Capra é o do Niels Bohr, cujos estudos foram patrocinados pelas Cervejarias Carlsberg. Quando ele ganhou o Nobel, botou o símbolo do Tao em cima da medalha. O Capra tirou sua idéia daí. Essa história tem a ver com neoliberalismo. Porque se o substrato da natureza é o caos, dizem esses caras, não podemos alterar nada. Basta-nos meditar. Isso é o substrato do neoliberalismo: a ‘mão invisível’ da teoria do caos é a mesma mão invisível que Adam Smith via no mercado. Esse pessoal new age, do Capra, é no fundo um bando de gente que defende o neoliberalismo. Capra é uma ideologia neoliberal refinada. Por que são os grandes milionários como os Marinho, o príncipe Charles que apóiam os movimentos como Greenpeace ou WWF? Porque essa gente quer ver países de Terceiro Mundo em seu lugar de exportadores de matéria-prima. Só isso. O movimento ecológico tem muito de ideologia neoliberal antidesenvolvimentista, mas apenas para o Terceiro Mundo. Nesse sentido, Capra é um demônio. Mas que jornalista vai querer estudar essas coisas? Como diz o vulgo, são ‘coisas de louco’. Jornalista é basicamente preguiçoso e egocêntrico. Tem medo em geral de ir buscar explicações nas ciências duras. Vai buscar explicação para a comunicação nas teorias da comunicação, todas falhas, superficiais, ultrapassadas. Ou busca explicações no seu ego. E ganha a vida dando adjetivos às situações. Esse é o espírito do comentarista político, por exemplo. Prefiro um repórter de polícia iniciante a um colunista político. O primeiro, em sua humildade, busca fatos, sobre os quais, se erra, é processado. O segundo, busca adjetivos no fundo de copos de uísque. Estudar ciência é um ato de humildade. O adjetivo é a metafísica do verbo. Não serve para jornalismo. E a memória é a fonte do jornalista em fim de carreira.

Quem ganha e quem perde com a ideologia do DNA?

C.J.T. – Vamos ganhar muita saúde com as novas descobertas. Mas vamos levar de brinde a ideologia de que os genes são a resposta final.

Estamos à mercê da ciência e dos cientistas?

C.J.T. – A ciência é libertária. Mas o uso que se faz dela não de todo. Infelizmente. O preço da metáfora é a eterna vigilância. Vivemos agora a metáfora de que o corpo é transparente. Não tenho dúvidas de que, se por um lado muita coisa será curada, teremos também um novo e poderoso instrumento eugênico nas mãos. Com a imprensa chancelando tudo, graças aos jornalistas preguiçosos que lêem apenas orelhas de livros, têm preguiça de estudar, não sabem se impor porque não têm cultura, ou porque levam o jornalismo como emprego, não como missão. Ou porque se rendem às novidades para se manter vivos, porque a novidade bombeia vida nas veias de gente que há muito se sente morta, coisificada. Estamos à mercê de jornalistas que acham que entendem das coisas e vivem de adjetivos. Nesse sentido, ser repórter é uma profissão de fé.

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Estudante de Jornalismo e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)