Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lições da fraude dos clones

No dia de Natal deste ano, o repórter Nicholas Wade afirmou no jornal The New York Times que a comunidade científica passou a ficar na defensiva com a confirmação de fraude no estudo que mais esperanças trouxe em 2005 para os pesquisadores da área de biotecnologia. No entanto, a divulgação da falsa clonagem de células-tronco embrionárias humanas pelo sul-coreano Hwang Woo-suk, da Universidade Nacional de Seul, precisa também ser motivo de reflexão e de preocupação por parte da imprensa que cobre a área de ciência.


A repercussão mundial do relatório divulgado por Hwang na revista científica norte-americana Science havia estimulado o Ministério da Ciência e Tecnologia sul-coreano a investir 65 milhões de dólares no laboratório do pesquisador, guindado à posição de herói nacional e de celebridade internacional. Para 2006, já haviam sido prometidos mais 15 milhões de dólares pelo Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social para a criação do Centro Mundial de Célula-Tronco, no qual técnicos de Hwang clonariam células humanas para clientes científicos no exterior, como destacou Wade na reportagem ‘Clone Scientist Relied on Peers and Korean Pride‘(The New York Times, 25/dez/2005).


As importantes revistas científicas que estavam em disputa pela publicação dos trabalhos de Hwang estão agora reexaminando seus procedimentos de avaliação, afirmou Wade. Mas, no que se refere à imprensa, outros procedimentos vinham sendo adotados por líderes da pesquisa nessa área, como bem mostrou na véspera de Natal, em seu comentário ‘Células de decepção em massa‘, na Folha de S.Paulo, e em seu blog Ciência em Dia o jornalista Marcelo Leite:




‘Nos mesmos dias em que pipocava o escândalo, um grupo de bambambãs da biotecnologia publicou uma carta no sítio www. sciencexpress.org defendendo, com palavras escolhidas a dedo, o afastamento da imprensa leiga.


‘Acusações feitas pela imprensa sobre a validade dos experimentos publicados na Coréia do Sul são, em nossa opinião, mais bem-resolvidos na comunidade científica’, escreveram os oito autores da correspondência. Entre eles estão Ian Wilmut e Alan Colman, dois dos ‘pais’ da ovelha Dolly.’


Respostas absolutas


Essa aplicação da Lei de Ricupero (‘o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde’) no plano da divulgação científica, como bem destacou Leite, mostra mais uma vez a necessidade de os profissionais do chamado jornalismo científico refletirem sobre a ênfase que geralmente dão ao papel de tradução que atribuem à sua atividade.


Essa comparação com personagens do noticiário de outras áreas do jornalismo pode, para muitos pesquisadores, parecer injusta e até ofensiva, principalmente no Brasil, onde são muitas as atividades de pesquisa que só têm continuado graças à persistência e à abnegação de suas equipes. Mas não há como deixar de lado o fato de que há conflitos e disputas acirradas entre os diversos grupos de pesquisa, principalmente quando estão envolvidos recursos financeiros.


Reflexões sobre esse tema já haviam sido propostas há algum tempo no Brasil por Mônica Teixeira [‘Pressupostos do Jornalismo de Ciência no Brasil’. in MASSARANI, L. ET AL (orgs.) Ciência e Público: Caminhos da divulgação científica no Brasil. Casa da Ciência, UFRJ. Rio de Janeiro. 2002. pp. 133-141] e por mim (‘O fogo cruzado no jornalismo de ciência‘, ComCiência, 10/7/2003). Recentemente, o assunto foi muito bem colocado por Martha San Juan França em seu artigo ‘Divulgação ou jornalismo?’ [in VILAS BOAS, S. (org.), Formação e informação científica: Jornalismo para iniciados e leigos. Summus Editorial. São Paulo. 2005. pp. 31-47]:




‘Enquanto repórteres de política e economia freqüentemente vão além dos releases oficiais para comprovar a veracidade das notícias, os colegas de ciência se contentam com a informação autorizada, os papers (relatórios científicos), entrevistas coletivas e revistas especializadas. Enquanto as notícias de outras áreas são normalmente objeto de crítica, a ciência e a tecnologia são poupadas – até que ocorram acidentes trágicos. Se bons jornalistas são reconhecidos – e temidos – por suas análises críticas, no caso de ciência, a investigação e a crítica costumam passar longe.


Em grande parte das notícias de ciência, não existe o contraditório. Ao se divulgar um trabalho científico sem citar outras conclusões ou visões sobre o mesmo assunto dá-se a impressão ao leitor de que aquele constitui uma verdade absoluta. O papel do jornalista acaba não sendo muito diferente daquele que seria de um assessor de imprensa do pesquisador que deu a entrevista. E o resultado confunde e lança dúvidas na própria pesquisa. Café faz bem ou faz mal? A dieta A é melhor do que a dieta B? O mundo está ficando mais quente? Cada pesquisa diz uma coisa diferente, mas todas são divulgadas como respostas absolutas para a questão.’


A questão está colocada novamente. E, desta vez, de forma muito preocupante.


[Postado em 27/12/2005]

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Jornalista