Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mato Grosso e o jornalismo grosseiro

É um longa-metragem de terror, o massacre da serra elétrica com mais de 15 dias de duração. Acharam que era coisa de trogloditas verdes e de pandas do WWF. Antes de a Polícia Federal aparecer na história, a denúncia de desmatamento por veículos estrangeiros, segundo os jornais de Mato Grosso, era somente pretexto para reeditar a internacionalização da Amazônia. Atiraram para todos os lados: pouparam acusados e fulminaram o jornalismo.

Apertem os cintos para ingressar numa viagem aos porões da imprensa brasileira. São as veias abertas da imprensa regional, varizes provocadas pela circulação indevida de interesses políticos e econômicos nas páginas dos jornais. Os três maiores periódicos de Mato Grosso – A Gazeta, Diário de Cuiabá e Folha do Estado – fizeram uma cobertura, no mínimo, medíocre, com raros momentos de exceção. Parece ser um caso real de cegueira coletiva de jornalistas, tal como aconteceu aos personagens fictícios do ensaio de Saramago.

A viagem começa no dia 20 de maio com uma matéria do diário britânico The Independent, logo seguida por reportagens e artigos publicados por The Guardian, The Economist, Financial Times, Le Monde, El País e The New York Times.

Noves fora o apelo do ‘estupro’ da floresta num dos títulos, a reportagem do jornal britânico tem o mérito de relacionar pautas comuns e fontes mais conhecidas ainda. Para o Brasil e para o mundo, Mato Grosso só é notícia com o exótico, com a tragédia e com o agribusiness. Relacionar a tragédia do desmatamento ao avanço do agronegócio é assunto caro demais para a imprensa regional.

Aliás…

A relação do desmatamento com as monoculturas de commodities, e suas eventuais promiscuidades, não ocorre à inteligentsia da revista Veja, que há dois anos dedicou capa ao desempenho econômico mato-grossense, trazendo o governador Blairo Maggi (o estuprador, conforme terminologia britânica) como protagonista de sua animada reportagem de mercado.

Nenhuma reportagem

Na edição desta semana, Veja estabelece o limite para comentar a pole position mato-grossense no ranking da destruição. ‘Maggi é a síntese do paradoxo vivido pela Amazônia’, afirma. A soja traz riquezas e a pobre floresta está no meio do caminho. É a sina nacional. Nosso primeiro ciclo econômico, a extração do pau-brasil, batizou o país e depois sumiu do mapa.

‘Até a semana passada, os ambientalistas imputavam essa triste liderança [desmatamento] ao cultivo da soja no estado – primeiro produtor nacional do grão. Neste momento, sabe-se que há uma praga muito mais devastadora dizimando as florestas: a corrupção’. Decerto, Veja nem imagina quem são os corruptores de sua reportagem de capa. Há apenas corrompidos. Alguém viu o autor do vídeo da propina por aí?

The Independent deu ao público inglês uma dimensão do problema que os jornais de Mato Grosso nem pensaram em oferecer a seus leitores. Sequer repercutiram à altura. Os jornalistas, grosseiramente, fizeram apenas graça e politicagem, com algumas aspas e nenhuma profundidade.

Durante mais de 15 dias, nenhum dos jornais mato-grossenses fez nenhuma reportagem nas áreas indicadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Tampouco deram espaços dignos a fontes independentes em suas matérias. Não interpretaram nenhum quilômetro quadrado de devastação. Preferiram tons declaratórios ou a troca de acusações de adversários políticos. Em resumo, foi assim.

O nariz dos gringos

Exemplo? No dia 21 de maio, as bancas de Mato Grosso leram as seguintes repercussões do jornal The Independent:

1) No Diário de Cuiabá, o título da página interna é ‘Jornal acusa; governo rebate’. Não há chamada de capa. A matéria tem um lead sucinto sobre a publicação britânica, mas dedica sete parágrafos à defesa do governador, que afirma orientar seus amigos produtores rurais para que tenham cuidado ambiental. ‘Dentro do que a lei brasileira permite, nós somos livres para fazer o que quisermos. Será que até para plantar mandioca no quintal de casa teremos que ter a concordância dos gringos?’, questiona Blairo Maggi.

2) Em A Gazeta, o título é ‘Governador reclama por ter sido escolhido o vilão do desmatamento’. A chamada de capa explica que ‘Maggi emite nota, reclama de ambientalistas e revela que as pressões não o impedirá (sic) de consolidar o desenvolvimento de Mato Grosso’. Na coluna política, uma nota afirma que ‘sobre o governo Maggi, Dante (ex-governador Dante de Oliveira, adversário político) adianta que haverá críticas no programa do PSDB. Um dos ataques virá na área ambiental’.

3) A Folha do Estado traz o editorial ‘Maggi rechaça a acusação de diário britânico’. O texto assevera que ‘mesmo que em meio à tempestade, a coletiva dada ontem pelo governador, quando nada, mostrou que Blairo não foge às respostas’. Na coluna política, lê-se que ‘depois de acabar com suas florestas e com seus índios, os gringos se voltam para o Brasil, para meter o nariz onde não é da conta (…) querem ditar normas. Vão catar coquinho!’. O jornal reproduz ainda matéria intitulada ‘Serys diz que desmatamento aumentou 6%’, da Agência Senado, na qual a senadora petista, também adversária de Maggi, acusa responsabilidade do governador.

Manobras hediondas

Em comum, nos três jornais, percebe-se a tal conspiração planetária contra o desenvolvimento de Mato Grosso, ou o principal argumento de Blairo Maggi. Ressalte-se que a internacionalização da Amazônia não é tema novo na imprensa mundial e merece, sim, a ressalva dos críticos jornalistas mato-grossenses. Jamais, no entanto, poderia ser uma cortina de fumaça a intoxicar os leitores e, pior ainda, a ocultar detalhes e nuances de um problema sabidamente real.

A defesa dos trabalhos desenvolvidos pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fema), feita por Blairo Maggi, também freqüentou os três jornais no dia 21 de maio. Segundo o governador, a Fema é responsável pela fiscalização de áreas com mais de 300 hectares – em outras palavras, pelas propriedades de seus amigos produtores rurais. Todos os jornais mato-grossenses sequer pautaram a fundo a existência de leis estaduais formuladas sob medida para o avanço do agronegócio.

A despeito dos esforços da ministra Marina Silva, que até então costumava perder todas para o companheiro do agronegócio, o igualmente ministro Roberto Rodrigues, The Independent sentiu corpo mole do governo Lula na matéria do dia 20 de maio. A soja, afinal, é a salvação da lavoura da balança comercial brasileira. Mato Grosso é líder na colheita do grão mágico. Graças às exportações agrícolas, a desaceleração do PIB do país não está maior.

Acuado pelas denúncias de corrupção nos Correios e valendo-se de manobras hediondas para enterrar a CPI, os resultados da Operação Curupira vieram em boa hora para o governo federal, ainda que tenham custado a ‘navalha na carne’, expressão cunhada pelo atual interventor do Ibama em Mato Grosso, Elielson Ayres de Souza.

Nas manchetes

No dia 2 de junho, a Polícia Federal começou a colher resultados de uma investigação gestada, oficialmente, há nove meses. Mais de 100 pessoas tiveram prisão decretada. A maioria é de Mato Grosso. Entre os presos, estão petistas graduados na administração pública, um secretário de estado e dezenas de servidores do Ibama.

A Polícia afirma ter descoberto um esquema com a venda de ATPF (Autorização para Transporta de Produtos Florestais). Hugo José Werle, gerente executivo do Ibama em Cuiabá, também foi preso. A PF afirma que ele, sozinho, acumulou patrimônio de R$ 426 mil em dois anos. Werle é filiado ao PT e foi indicado ao cargo pelo deputado federal Carlos Abicalil (PT) e por Alexandre Cesar, presidente do Diretório Regional do PT.

Candidato derrotado à Prefeitura de Cuiabá em 2004, Alexandre Cesar teve, entre outros, Werle como doador de campanha, com depósito de R$ 5 mil. Exonerado do cargo, o ex-gerente aparece em gravações legais nas quais negocia outras adesões financeiras à campanha petista. Madeireiras envolvidas nos ilícitos investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal chegaram a doar R$ 30 mil a Alexandre Cesar. No total, foram R$ 60 mil da turma da moto-serra.

As ligações do PT com os acusados pela Operação Curupira subiram às manchetes dos três jornais de Mato Grosso no domingo, dia 5 de junho. O PT regional, em nota, manifesta apoio às investigações da Polícia Federal. O tesoureiro da campanha de Alexandre Cesar não nega o recebimento do dinheiro, declarado à Justiça Eleitoral. Afirma-se a legalidade da doação e que o partido desconhecia os esquemas que, segundo Marina Silva, existem há 14 anos.

Primeiro escalão

Curiosidade esquecida até agora pela imprensa: contrariando aliados de primeira hora, Maggi apoiou Alexandre Cesar na disputa do segundo turno em Cuiabá.

Outra medida

A Operação Curupira também prendeu o ex-presidente da Fema, Moacir Pires (PFL). Com status de secretário de estado, ele foi exonerado no mesmo dia de sua prisão. A Fema foi extinta, está fechada para balanço e, quando reabrir, diz o governo, será uma secretaria maiúscula.

Segundo a revista Veja desta semana, Pires é ‘o braço direito do governador Blairo Maggi na área ambiental’ e é apontado pelo Ministério Público Federal como ‘participante da quadrilha’. Ponto com, ponto br. Isso é tudo o que se sabe de Moacir Pires em quase 10 páginas de apuração da Veja em (ou sobre) Mato Grosso.

É isso mesmo: existem acusações sobre a gestão de quem conduzia a política ambiental de Blairo Maggi. Moacir Pires era, em Mato Grosso, o equivalente ao que Marina Silva ainda é no Brasil: primeiro escalão. Ele pode ser inocente, é claro. Ex-deputado estadual, pela régua política ele é um peixe mais graúdo que Hugo José Werle, ou mesmo Alexandre Cesar, que nunca ocupou cargo eletivo.

‘Juiz petista’

Por que foi Pires foi exonerado? O governo estadual admite irregularidades na gestão do ex-presidente da Fema? Moacir Pires tinha autonomia de vôo, ou apenas executava as idéias de seu chefe? Os três jornais de Mato Grosso, se perguntaram algo semelhante, não publicaram as respostas. Apenas a Folha do Estado, antes de saber da nota oficial, comentou o silêncio sepulcral de Maggi. Assim também fez a Veja.

A prisão de Moacir Pires teve uma cobertura bem mais discreta. Em alguns momentos, chegou às raias do risível. A Operação Curupira começou na manhã do dia 2 de junho, com a prisão de servidores e de ocupantes de cargos de confiança do Ibama. A cobertura online do Diário de Cuiabá acompanhou o caso só até aí. Pires foi preso por volta de 15h. Um secretário de estado foi preso, mas isso não apareceu nas ‘últimas notícias’. A prisão do secretário apareceu no noticiário online da Folha do Estado e de A Gazeta.

Os advogados de Moacir Pires acusaram – e os jornais de Mato Grosso publicaram – a suposta ilegalidade da prisão, mas o pedido de hábeas corpus foi negado pela Justiça logo em seguida. A seccional mato-grossense da OAB chegou a manifestar preocupação com os procedimentos da Polícia Federal, que teria impedido o acesso de advogados ao ilustre cliente.

Das três, uma: ou a prisão de Moacir Pires foi um espetáculo da operação policial, ou será relaxada brevemente por falta de provas, ou… os jornais de Mato Grosso e a Veja têm dois pesos e duas medidas ao reportar a Operação Curupira.

As prisões da Operação Curupira foram decretadas pelo juiz federal Julier Sebastião da Silva, um ‘juiz petista’ na opinião do senador tucano Antero Paes de Barros (licenciado do cargo para tratamento de saúde). Julier já foi filiado ao PT, mas, oficialmente, tirou a estrela do peito antes de assumir a magistratura. Em entrevista concedida à TV Gazeta, em 2004, ele reagiu ao ataque: disse que Antero era ‘o senador do Arcanjo’.

Título outorgado

Trata-se, portanto, do mesmo magistrado que condenou, em primeiro grau, o chefe do crime organizado do estado, João Arcanjo Ribeiro, que está preso no Uruguai. Antero foi presidente da CPI do Banestado, que também deveria investigar as remessas de dólares de Arcanjo para o exterior. Ainda pendente o recurso apresentado pelo deputado federal José Mentor (PT/SP), a CPI foi encerrada por Antero Paes de Barros sem a votação de um relatório final.

Em outra operação, denominada Arca de Noé, a Polícia Federal encontrou cheques da campanha do PSDB nas factorings do comendador (Arcanjo comandava o jogo do bicho, daí o nome da operação). Antero foi candidato derrotado ao governo do estado.

Cheques assinados pelo presidente e pelo primeiro-secretário da Assembléia Legislativa de Mato Grosso também apareceram nos rastreamentos determinados pela Justiça, mas os deputados estaduais não permitiram a quebra de imunidade dos colegas da Mesa Diretora, José Riva (ex-PSDB, hoje PTB) e Humberto Bosaipo (ex-PL, hoje PFL). O processo está suspenso.

Comendador, prezados leitores, não é apelido. É título outorgado por parlamentares de Mato Grosso. Arcanjo, para quem não se lembra, também é acusado de ser o mandante do assassinato do empresário Sávio Brandão, fundador do jornal Folha do Estado, crime ocorrido em 2002.

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Ex-repórter de A Gazeta e da Folha do Estado (Mato Grosso), hoje em Porto Alegre